EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Disputas de poder e o debate político-cultural brasileiro

Opinião|A linha tênue entre a solidariedade e a vaidade autocongratulatória frente à tragédia no RS

Ações como da primeira-dama Janja ou do youtuber Felipe Neto seriam condenadas por certas correntes de filosofia ética.

PUBLICIDADE

Foto do author Fabiano Lana
Atualização:

Quatro séculos antes de Cristo, o filósofo Aristóteles sentenciou que todo homem seria um animal político. Descontada a misoginia da época, o que o pensador quis dizer em sua obra “Ética a Nicômano” é que os habitantes das cidades, das polis (de onde vem o termo política), de qualquer gênero, não teriam condições de ter opiniões e análises neutras sobre os fenômenos que observam e participam. O que chamaríamos de “fatos”, na verdade, só seriam compreendidos por nós dentro de alguma linha de pensamento político. Em palavras mais simples: politizamos tudo, até porque não temos condições de agirmos de maneira diferente. As enchentes no Rio Grande do Sul são o palco atual desse traço da natureza humana.

A gente sempre dá um jeito de acochambrar os chamados fatos em nossas linhas políticas ou pessoais de preferência. Frente aos acontecimentos, damos destaque ao que interessa, desprezamos o que nos desagrada. Montamos as peças que queremos e juntamos numa versão condizente com o que acreditamos. O resultado é a batida palavra: narrativa (termo que deveria ser voluntariamente banido por uns anos por excesso de uso).

Primeira-dama Janja prova água purificada no Rio Grande do Sul. Diante da escassez de água potável no Estado, 220 purificadores de água foram doados  Foto: Claudio Kbene/PR

PUBLICIDADE

Isso ocorre em como vemos a guerras (veja o caso de Gaza), em linhas econômicas (keynesianos x liberais x socialistas, etc), na maneira como entendemos a história de nosso país. Até mesmo nas relações interpessoais e profissionais fatos são cuidadosamente selecionados para fortalecer o nosso lado da história.

Nesse quebra-cabeça pessoal, a nossa versão de preferência é a que temos razão, por óbvio – nas quais imaginamos estar do lado do bem. Ou seja, mais do que politizamos, nos moralizamos. Colocamos as coisas como sendo do bem ou do mal. A neutralidade, a possibilidade de os eventos terem mais causas do que culpas, não nos satisfaz. Desprezamos o acaso, o imprevisível, o imponderável, o caos. “Nós nos rendemos às narrativas porque é assim que a mente funciona – um vagar interminável por cenas do passado e projeções possíveis do futuro”, afirmou o biólogo e filósofo Edward O. Wilson, na obra prima “O sentido da existência humana”, de 2018.

Essa estrutura mental não tem como atuar de maneira diferente até mesmo nas enchentes que devastam parte do Rio Grande do Sul. Resolvemos politizar a tragédia. De um lado, despreza-se o papel do Estado e se valorizam todas as ações voluntárias das pessoas que buscam ajudar. De outro, condena-se e ironiza-se que eleitores que votaram contra o Estado forte agora precisarem do governo para serem socorridos. As discussões políticas seguem até debaixo d’água. Repete-se a luta petismo x bolsonarismo na confusão. Há até um prefeito (que se veste como Elvis Presley) a condenar o governo de maneira desvairada. Houve também um tradicional colaborador do petismo a escrever que os gaúchos mereciam estar debaixo d’água por votarem na direita (era um ataque ao governador Eduardo Leite, que não é considerado um direitista pelos que se orgulham de serem dessa corrente). Quem teria razão? Quem estaria do lado do bem e de fato ajudado as pessoas?

Publicidade

Se pedirmos socorro à filosofia, algo, talvez possa ser um pouco esclarecido, apesar de que escolas de pensamento também serem um ramo que, assim como a política, alimenta-se da controvérsia.

Por exemplo, se partimos de uma linha da chamada Ética de Princípios, que tem como nome de maior destaque o filósofo Immannuel Kant, quem costuma dar bastante publicidade para as ações benéficas que costuma fazer não age de maneira ética. Suas ações estariam próximas à vaidade. Teria mais a ver com alimentar o próprio ego do que a preocupação com quem precisa. Kant não veria com bons olhos, por exemplo, os posts na internet da primeira-dama Janja da Silva ou do Youtuber Felipe Neto sobre doações ou salvamento do cavalo Caramelo, o animal que ficou dramaticamente sobre um telhado por dias à espera de resgate. Seria apenas vaidade. Essa linha, é preciso esclarecer, se interessa pelos princípios que movem as pessoas, não o resultado de seus atos.

Outro filósofo, Nietzche, diria que Janja e Felipe estariam agindo assim apenas para se sentir mais poderosos frente aos que não têm nada – esse raciocínio sobre a falsa solidariedade está no livro A Genealogia da Moral.

Enchentes no Rio Grande do Sul geram onda de apoio, mas também desejo de aparecer em meio à tragédia Foto: Carlos Fabal/AFP

Porém nem todas as linhas éticas são rigorosas como a de Kant ou céticas como as de Nietzche. Existe a chamada ética de consequências, de pensadores como o britânico Stuart Mil. Nessa escola, se deve olhar não as intenções das pessoas, mas o efeito prático do que elas fazem.

Nesse sentido, você pode fazer doações porque é um vaidoso e só quer reconhecimento público. Não está nem aí para os que precisam e é viciado em autopromoção (desconfio que há muita gente assim, inclusive que vive em palácios). Porém, como sua ação, além de ajudar, tem estimulado muitos outros a doarem, ela se torna ética. Ou seja, pessoas vaidosas, egocêntricas, e com as intenções sob suspeita, podem estar estimulando outras pessoas - que doam discretamente aos desabrigados, sem autocongratulação - a realizarem uma verdadeira ação moral.

Publicidade

Os que precisam, agradecem porque nesse momento estão indiferentes às visões filosóficas sobre o amparo. Só querem ajuda para seguir com suas vidas – mesmo que seja de gente imoral de acordo linhas consolidadas das escolas de pensamento.

Opinião por Fabiano Lana

Filósofo e consultor político

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.