O liberalismo é uma doutrina otimista com as pessoas. Parte do princípio que basta dar liberdade para o indivíduo que o mundo funcionará da melhor maneira possível. Claro que há gradações entre os liberais, mas para essa concepção, quanto menos interferência do Estado seja em proibições, obrigações, ou regulações, sempre melhor. O Bolsa Família, por exemplo, é um programa liberal, porque oferece a possibilidade para o beneficiário utilizar os recursos como bem entender – e nos seus primórdios foi bastante criticado por essa qualidade.
A revelação de que 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família enviaram R$ 3 bilhões em empresas de apostas apenas em agosto de 2024 reacendeu os clamores de proibição. Afinal, se não houver um controle de algum nível do Estado, alegam os antiliberais, a tendência é todos nós, em algum momento, cometermos algum tipo de besteira. É inevitável que haja uma classe controladora da sociedade.
Fazer mal a si mesmo deveria ser um direito? Afinal, em tese, somos donos das próprias vidas. No máximo deveríamos ser responsáveis pelas consequências externas de nossas atitudes, como pagar por remédios quando temos certo estilo de vida que leve a uma série de medicações. Mas o mundo não funciona assim.
Proibir que as pessoas apostem, no fundo, é uma espécie de falência das posições otimistas sobre a sociedade. Como a evidência de que precisamos nos render ao fato de que propagandas sobre apostas são capazes de afetar a autonomia racional dos humanos em suas decisões. Que todos, sobretudo os mais pobres, são incapazes de resistir ao canto da sereia das promessas de enriquecimento rápido via bets. Que o brasileiro, ou mesmo o humano, é facilmente manipulável e só resta ao Estado retomar o controle.
O mesmo aconteceu com os que de alguma maneira comemoraram a suspensão do Twitter. Alegaram que nós brasileiros não conseguimos resistir aos algoritmos “malignos” da empresa de Elon Musk a alterar a consciência e nos levar a má decisões. Empresas se não forem controladas, é possível pensar, irão aniquilar o corpo social. É, de certa maneira, uma visão pessimista sobre a natureza humana.
Mas, percebam, no Brasil, o Estado não consegue resolver as causas e acaba atuando nas consequências, seja nas cotas nas universidades ou nos gastos com saúde para quem se alimenta mal – por exemplo. Somos um dos países do mundo que mais gasta com adultos em relação aos investimentos nas crianças. É uma espécie de distorção. Agora, o novo dilema é que as bets têm ajudado na arrecadação, logo enfraquecê-las vai criar outra externalidade negativa: o aumento do déficit público. A gente fica muito na superfície não às profundezas da situação. O que é o humano? É um ser de tal maneira desesperado e sugestionável que não pode nem mesmo ter liberdade para fazer apostas ou ler informações deletérias em rede social? Quem sabe essa resposta?
Leia também
O Brasil é um país intrinsecamente antiliberal. São raras as pessoas que, por exemplo, são a favor da liberação das drogas, do aborto, das armas, das empresas, e da liberdade irrestrita de expressão ao mesmo tempo. Anarquia é uma palavra temida tanto pela esquerda como pela direita. Sempre queremos que o Estado faça as coisas para nós e para os outros.
Em muitas gradações do liberalismo, inclusive, é dever do Estado, por exemplo, oferecer formação e segurança a todos para que tenham condições igualitárias para seguir em frente. Mas a angústia da liberdade atemoriza e sempre queremos voltar para a tranquilidade imóvel da vida entre as cercas da tutela governamental.