José Celso Cardoso Jr., Doutor em Desenvolvimento pelo IE-Unicamp, desde 1997 é Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA e professor dos Mestrados Profissionais em Políticas Públicas e Desenvolvimento (IPEA) e Governança e Desenvolvimento (ENAP). Atualmente, exerce a função de Presidente da Afipea-Sindical e nessa condição escreve esse texto
Neste terceiro e, por ora, último artigo dessa série sobre reforma administrativa, gostaríamos de abordar um dos temas mais complexos, polêmicos e mal compreendidos do momento atual, para tentar explicar um pouco melhor o fenômeno do desempenho institucional no setor público.
Como já foi dito antes,[2] as propostas em curso de reforma administrativa que visam, quase que exclusivamente, reduzir gastos correntes por meio da quebra da estabilidade funcional para fins de demissão, forjando para baixo as remunerações dos atuais servidores e os futuros salários de entrada das novas contratações, possuem teor altamente questionável. Não apenas porque são medidas sem fundamentação técnica razoável, como porque serão ineficazes para se obter ajuste fiscal estrutural nas contas públicas. Os custos econômicos, sociais, ambientais, políticos e institucionais de uma reforma administrativa que falsamente se vende como solução, serão muito maiores que a alegada economia fiscal que se espera obter dela. Linhas gerais, elas mal escondem o viés ideológico, negativista do Estado e dos servidores, que está na verdade por detrás da aparente tecnicidade fiscal, passando longe de qualquer proposta crível de melhoria do desempenho estatal.
O desempenho no setor público, devido à amplitude e complexidade de temas e novas áreas programáticas de atuação governamental, depende, fundamentalmente, de processo permanente e necessário de profissionalização - ao invés de sucateamento! - da burocracia e dos serviços públicos. Qualificação elevada desde o início nas carreiras, processo contínuo de capacitação pessoal e organizacional, e cooperação- ao invés de competição - nos locais e processos de trabalho, são exigências do mundo atual aos Estados nacionais soberanos.
É claro que as exigências citadas colocam desafios imensos às políticas públicas de pessoal e sugerem atrelamento de fases e tratamento orgânico aos novos servidores, desde a seleção por concurso, trilhas de capacitação e alocação funcional que combinem as vocações e interesses individuais com as exigências organizacionais de profissionalização da função pública. Tal política de pessoal no setor público, porque abrangente e complexa, apenas pode ser realizada sob a égide de abordagens holísticas, visando formar servidores críticos e conscientes da realidade brasileira em suas diversas dimensões.
Neste particular, os dados mostram que a força de trabalho ocupada no setor público brasileiro já vem se escolarizando e se profissionalizando para o desempenho de suas funções. Segundo dados do Atlas do Estado Brasileiro (https://www.ipea.gov.br/atlasestado/), a expansão, em termos absolutos e relativos, ocorreu com vínculos públicos que possuem nível superior completo de formação, que passaram de pouco mais de 900 mil para 5,3 milhões, de 1986 a 2017. Percentualmente, este nível saltou de 19% do contingente de vínculos em 1986 para 47% em 2017.
Nos municípios, onde está concentrada a maior parte dos servidores públicos, em áreas finalísticas de atendimento direto à população, tais como saúde, assistência social, ensino e segurança pública, a tendência de aumento de escolarização foi também bastante acentuada. A escolaridade superior completa aumentou de 10% para 40% entre 1986 e 2017. A do ensino médio completo ou superior incompleto aumentou de 22% para 39% no mesmo período. Já a escolaridade de nível médio incompleto e nível fundamental caíram, respetivamente, de 14% para 10% e 53% para 9% do total.
Esses dados servem para desmistificar afirmações infundadas sobre eficiência, eficácia e desempenho estatal na implementação de políticas públicas e na prestação de serviços e entregas à população. Pois a qualidade das políticas públicas, bem como os graus de institucionalização e profissionalização do Estado em cada área de atuação governamental, é tributária da escolarização que os servidores trazem consigo ao ingressarem no setor público e daquela obtida ao longo de seu ciclo laboral. Embora outros fatores influenciem o sucesso e a qualidade das políticas, tais como a disponibilidade de recursos, as regras institucionais etc., sabe-se que recrutar pessoas com maior e melhor formação é desejável, e indicativo de aprimoramento dos quadros que manejam a entrega de bens e serviços aos cidadãos.
Nestas condições, a cooperação interpessoal e intra/inter organizações emerge como corolário dos atributos e fundamentos anteriores (isto é: as questões aqui antes tratadas da estabilidade, remunerações e capacitação dos servidores), colocando-se como método primordial de gestão do trabalho no setor público e critério substancial de atuação da administração pública. No setor privado, a competição, disfarçada de cooperação, é incentivada por meio de penalidades e estímulos individuais pecuniários (mas não só) no ambiente de trabalho, em função da facilidade relativa com a qual se pode individualizar o cálculo privado da produtividade e os custos e ganhos monetários por trabalhador.
No setor público, ao contrário, a operação de individualização das entregas (bens e serviços) voltadas direta e indiretamente para a coletividade é tarefa estatística e metodologicamente difícil, ao mesmo tempo que política e socialmente indesejável, simplesmente pelo fato de que a função-objetivo do setor público não é produzir valor econômico na forma de lucro, mas sim gerar valor social, cidadania e bem-estar de forma equânime e sustentável ao conjunto da população por todo o território nacional. Por esta e outras razões, portanto, a cooperação é que deveria ser incentivada e valorizada no setor público, local e ator por excelência da expressão coletiva a serviço do universal concreto.
Esse é, por sua vez, um dos desafios centrais e perenes para a gestão de burocracias: equacionar o dilema entre o controle da atuação de seus funcionários e a flexibilidade, criatividade e expansão de suas capacidades (reflexivas) necessárias para a resolução de problemas nos momentos de provisão de serviços, implementação de políticas públicas e regulação de atividades econômicas.
Além disso, a abordagem reflexiva aqui defendida rejeita os pressupostos simplificadores do comportamento humano nos quais se baseiam sistemas de incentivo para o desempenho, tal como proposto pela abordagem gerencialista - i.e. percepção de que indivíduos (ou grupos e organizações) são motivados, fundamentalmente, pelo desejo de obter recompensas (como dinheiro ou status) e evitar sanções. Assim, em nossa abordagem, a tarefa de gestão do desempenho envolve o estabelecimento de rotinas que possibilitem aos agentes envolvidos a reflexão e revisão contínua das atividades e ações burocráticas, de modo que tanto o princípio da cooperação no ambiente de trabalho, como o monitoramento do desempenho sejam, em si, parte de um processo - contínuo, coletivo e cumulativo - mais amplo de aprendizagem e inovação institucional.
Mecanismos de revisão qualitativa do desempenho, em contraposição a sistemas de aferição de resultados quantitativos, criam relacionamentos diferentes entre funcionários na linha de frente e os supervisores ou centros administrativos. Ao invés de serem objeto da aferição de metas numéricas pré-determinadas, os profissionais passam a ser participantes ativos na reconstrução de metas, procedimentos e estratégias de atuação, com base nos resultados advindos de suas operações.
Diante do exposto, entende-se melhor porque é que a ocupação no setor público veio, historicamente, adotando e assumindo a forma meritocrática como critério fundamental de seleção e acesso, mediante concursos públicos obrigatórios e exigentes, sob a guarida de um regime estatutário e jurídico único (RJU), como no caso brasileiro desde a CF-1988. Sabemos, não obstante, que o critério weberiano-meritocrático de seleção de quadros permanentes e bem capacitados (técnica, emocional e moralmente) para o Estado depende de condições objetivas ainda longe das realmente vigentes no Brasil, quais sejam: ambiente geral de homogeneidade socioeconômica, republicanismo político e democracia social.
O ambiente geral de homogeneidade econômica e social é condição necessária para permitir que todas as pessoas aptas e interessadas em adentrar e trilhar uma carreira pública qualquer, possam disputar, em máxima igualdade possível de condições, as vagas disponíveis mediante concursos públicos bem planejados, plenamente abertos e acessíveis a todas elas. Por sua vez, o republicanismo político e a democracia social implicam o estabelecimento de plenas e igualitárias informações e condições de acesso e disputa, não sendo concebível nenhum tipo de direcionamento político-ideológico nem favorecimento pessoal algum, exceto para aqueles casos (como as cotas para pessoas portadoras de deficiências ou necessidades especiais, e as cotas para gênero e raça) em que o objetivo é justamente compensar a ausência ou precariedade histórica de homogeneidade econômica e social entre os candidatos a cargos públicos.[3]
Portanto, apenas diante das condições citadas é que, idealmente, o critério meritocrático conseguiria recrutar as pessoas mais adequadas (técnica, emocional e moralmente), sem viés dominante ou decisivo de renda, da posição social e/ou da herança familiar e/ou da influência política. E entende-se, finalmente, como é que, historicamente, a meritocracia tem sido utilizada como mecanismo de discriminação e injustiça, uma vez que o sucesso individual é, sempre, resultado do esforço coletivo, e do contexto econômico e social do país e do mundo. Portanto, individualizar a responsabilidade pelo resultado, mesmo em empresas privadas que usualmente assim o fazem, é uma pressão violenta que adoece e desestimula a solidariedade e a colaboração entre os seres e suas organizações.
De todo modo, mesmo operando em condições adversas em nosso país, o critério meritocrático aplicado ao setor público evita, justamente, que sob qualquer tipo de comando tirânico ou despótico (ainda que "esclarecido"!), se produza qualquer tipo de partidarização ou aparelhamento absoluto do Estado. No caso brasileiro, sob as regras vigentes desde a CF-1988, há garantia total de pluralidade de formações, vocações e até mesmo de afiliações políticas, partidárias e ideológicas dentro do Estado nacional, bem como garantia plena do exercício de funções movidas pelo interesse público universal e sob controle tanto estatal-burocrático (Lei nº 8.112/1990, códigos de ética e controles interno e externo dos atos e procedimentos de servidores e organizações), como controle social direto, por meio da Lei de Acesso a Informações (LAI), entre outros mecanismos.
Ou seja, nos regramentos já existentes para delimitação da ocupação no serviço público, estão previstas possibilidades de avaliação e de monitoramento da atividade do agente público, além da aplicação de um amplo rol de sanções administrativo-disciplinares, que podem culminar com a expulsão de servidores estatutários da administração pública federal, em amplo espectro. Entre 2003 e julho de 2019 estão contabilizadas 7.588 punições expulsivas aplicadas a servidores estatutários do Poder Executivo Federal, cerca de 500 ao ano. Quanto às suas fundamentações, 64% dessas expulsões devem-se a atos relacionados à corrupção; 26% por abandono de cargo, inassiduidade ou acumulação ilícita de cargos; os demais 10% estão divididos entre desídia (3%), participação em gerência ou administração de empresas (1%) e ainda outras razões e motivos variados (6%).
Em suma: o aumento de produtividade e a melhoria de desempenho institucional agregado do setor público será resultado desse trabalho custoso, permanente e necessário, de profissionalização da burocracia pública ao longo do tempo, para a qual importam, sobremaneira, a estabilidade funcional dos servidores nos respectivos cargos públicos, remunerações adequadas e previsíveis, qualificação elevada e capacitação permanente, e a cooperação nos locais e processos de trabalho, tudo amparado e guiado por modelos reflexivos de gestão de pessoas e do desempenho institucional nos moldes em que foi aqui tratado. Não há, portanto, choque de gestão, reforma fiscal, ou reforma administrativa contrária ao interesse público, que supere ou substitua o acima indicado.
[1] Agradeço os comentários e contribuições do colega Roberto R. Pires do Ipea, isentando-o pelos erros e opiniões presentes no texto.
[2] Ver artigos anteriores dessa série em: 1) https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/reforma-administrativa-bolsonaro-guedes-decifra-me-ou-te-devoro/; 2) https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/estabilidade-funcional-e-remuneracoes-adequadas-sao-determinantes-do-desempenho-institucional-no-setor-publico-brasileiro/
[3] De outra maneira, quanto mais heterogênea e desigual forem as condições econômicas e sociais de uma dada população, mais os processos ditos meritocráticos tenderão a sacramentar - ou até mesmo ampliar - as desigualdades e heterogeneidades previamente existentes nessa sociedade. A respeito, ver João Soares, O Mito da Meritocracia: a piada que se transformou num dogma. Disponível em: https://www.scimed.pt/geral/o-mito-da-meritocracia-a-piada-que-se-transformou-num-dogma/
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