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Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Quem cuida dos cuidadores? A assistência social em tempos de pandemia

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Por Redação
Atualização:

Giordano Magri, mestre em administração pública e governo pela FGV e pesquisador do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB) 

Fernanda Lima-Silva, pós doutoranda em administração pública e governo pela FGV e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB)

Gabriela Lotta, professora de administração pública e governo da FGV e coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB)

Ceninha Francisco, assistente social e trabalhadora da rede direta da cidade de São Paulo

Taciana Barcellos Rosa, mestra e doutoranda em Políticas Públicas pela UFRGS e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB)

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Mariana Costa Silveira, doutoranda em administração pública e governo pela FGV e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB)

 

A pandemia da COVID-19 tem submetido o mundo a uma crise de saúde pública e econômica sem precedentes na história recente, e que produz efeitos graves sobre as pessoas mais pobres e já expostas à maior vulnerabilidade social. No Brasil, essa crise ganha contornos mais drásticos, não só pela postura do Governo Federal, mas também porque a quarentena atinge em cheio as famílias dos mais de 38 milhões de trabalhadores informais do país, ou seja, 40% da população ocupada. Do ponto de vista político, embora o foco do enfrentamento à COVID-19 esteja nas áreas de saúde e economia, a política de assistência social tem um papel estratégico para minimizar os danos da crise aos mais pobres e viabilizar medidas econômicas e sociais criadas para enfrentar a pandemia.

A política de assistência social no Brasil vem se fortalecendo a partir da Constituição de 1988, quando passou a compor o espectro da seguridade social, junto com saúde e previdência, reconhecidas como direitos de todo cidadão e deveres do Estado. Desde então, houve um processo gradual de estruturação da área socioassistencial no país, que inclui a criação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), consolidando uma institucionalidade com base nos princípios da coordenação federal e descentralização no território brasileiro. Esse processo está atrelado ao desenvolvimento de capacidade estatal municipal nessa área, que varia em função de cada contexto local e do nível dos recursos disponíveis. Mesmo em municípios com maiores capacidades institucionais, como São Paulo, os recursos existentes - em termos financeiros, de equipe, e também de articulação com outras políticas sociais - são escassos frente à elevada demanda pelos serviços e à complexidade requerida para sua efetividade.

Olhando para a implementação, os diversos e variados serviços tipificados pelo SUAS são geridos por uma rede composta por órgãos da administração direta municipal e Organizações da Sociedade Civil (OSC´s). Nas grandes cidades, como São Paulo, uma parte significativa desses serviços é executada de maneira indireta por OSCs e, portanto, por trabalhadoras - a maioria mulheres - com baixos salários, vínculos de emprego fragilizados e quase sempre em condições de trabalho também precárias. Enquanto o colapso estatal da rede de saúde e até do serviço funerário vem ocupando o noticiário em todo o país, pouco se fala das condições às quais estão submetidas as milhares de profissionais da assistência social que atuam na ponta, em contato direto com a parcela mais vulnerável da população.

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Em primeiro lugar, essas trabalhadoras estão enfrentando um aumento da demanda de trabalho. Cidadãos mais vulneráveis à crise, como a população em situação de rua e as pessoas em condições mais precárias de habitação, trabalho e renda, requerem cuidados adicionais. Além disso, essas profissionais também precisam dar suporte ao cadastramento na renda básica emergencial, por meio do Cadastro Único, cujo grande desafio é alcançar um contingente de mais de 42 milhões de pessoas que não estão presentes em nenhum cadastro público e que, muitas vezes, sequer têm acesso à internet. Em segundo lugar, além do aumento da demanda, estas profissionais estão expostas, pela própria natureza do trabalho, a dificuldades na operacionalização de suas tarefas dado o contexto de isolamento social. Um exemplo é a dificuldade em garantir o funcionamento dos Núcleos de Convivência para Adultos em Situação de Rua, que são cada dia mais procurados. Por fim, por causa dos contatos cotidianos com a população, as trabalhadoras estão fisicamente expostas à doença e precisam enfrentar seus medos, ansiedades e preocupações para garantir o cuidado e o acesso a direitos à população mais vulnerável. De fato, como mostra Roberto Pires em pesquisa recente do IPEA, a pandemia cria uma exacerbação das fragilidades já vivenciadas pelas trabalhadoras da rede de assistência.

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Respostas governamentais tímidas, lentas e pouco coordenadas estão presentes de forma marcante na história da assistência social. Infelizmente, isso não é diferente neste momento de pandemia. Com uma rede estruturada majoritariamente por OSCs, a cidade de São Paulo é um caso didático. Até agora, as medidas apresentadas pela Prefeitura se restringem (i) à distribuição irrisória de cestas básicas, por meio do programa municipal Cidade Solidária, coordenado pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano e não pela Secretaria de Assistência, que só agora começa a efetivar a entrega de alimentos a algumas comunidades mais pobres, mas sem integrar o programa à rede de Proteção Social já existente na cidade; e (ii) à oferta de vagas emergenciais de acolhimento pela Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), esforço que garante cumprimento de metas quantitativas para a Prefeitura, mas que não viabilizam uma resposta adequada às necessidades das OSC´s parceiras e, principalmente, das profissionais da ponta.

Tampouco temos visto cuidados adicionais em alinhar informações e novos procedimentos de trabalho para os tempos de pandemia. Segundo o gabinete de SMADS, ainda está sendo elaborada a nota técnica conjunta com a Secretaria de Saúde com orientações relativas ao acolhimento durante o isolamento social ainda. Durante o primeiro mês da quarentena, grande parte das medidas emergenciais que poderiam ter sido adotadas em serviços da rede, como a compra de cestas básicas, não foi viabilizada por falta de autorização jurídica da Secretaria no remanejamento interno de gastos nos convênios com as OSC's. Além da falta de diretrizes para o funcionamento da rede, as trabalhadoras da ponta tiveram que se informar por conta própria sobre como se proteger durante a crise e como superar as dificuldades de implementação da política em condições tão adversas.

Ainda mais grave é o cenário relativo a equipamentos de proteção individual (EPI's) necessários para a proteção destas trabalhadoras. Segundo relato de profissionais da rede, os EPI´s só foram disponibilizados mais de um mês depois do início da quarentena, após a resolução de um conflito entre as OSC´s e a Prefeitura sobre quem teria a responsabilidade de oferecer esses insumos. Embora agora alguns EPI´s comecem a chegar, parte dos trabalhadores dos serviços segue totalmente desprotegida. São terceirizados responsáveis pela vigilância predial, limpeza e realização do Cadastro Único que continuam invisibilizados e expostos.

Como consequência, relatos de mortes e afastamentos de trabalhadores da rede socioassistencial por conta do COVID-19 começam a aparecer, como denunciado pelo Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo (Sindsep). Segundo a própria SMADS, são cerca de 350 trabalhadores da rede direta afastados, preventivamente ou por suspeita de contaminação. Até este momento, a Secretaria só tem acompanhado a rede direta, o que faz com que ainda não exista esse mesmo mapeamento em relação às trabalhadoras da rede conveniada.

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Este cenário preocupante se confirma em pesquisa que vem sendo realizada pelo Núcleo de Estudos da Burocracia da Fundação Getulio Vargas (NEB/FGV-EAESP), com profissionais da área da assistência social de várias cidades do país para analisar os impactos da Covid-19 na atuação dos trabalhadores da ponta. Resultados preliminares, de 407 respondentes, apontam que 44% deles não receberam orientação da chefia sobre como atuar em momentos de crise; e 58% não sentem suporte dos superiores para enfrentar a pandemia. Além disso, 63% dos participantes não receberam os equipamentos necessários para se proteger do vírus, e 86% não tiveram treinamento para lidar com a COVID-19. Quase a metade desses profissionais (45%) conhece companheiros de trabalho que foram contaminados ou apresentam sintomas. A mesma pesquisa também indica a escala do medo e da falta de apoio, com 91% dos respondentes (370) afirmando terem medo do Coronavírus.

Para fazer frente a estes imensos desafios na implementação dos serviços socioassistenciais em tempos de pandemia, é preciso reduzir a distância entre os responsáveis pelas decisões políticas e os trabalhadores que estão na linha de frente. Além de defenderem a contenção da disseminação do vírus entre a população como um todo, esses profissionais indicam que a crise só poderá ser superada com (i) a criação e o fortalecimento de canais de comunicação da rede socioassistencial com o público beneficiário; (ii) a imediata disponibilização de EPI´s e de diretrizes claras de atuação para todos os trabalhadores da rede, inclusive os terceirizados; (iii) o controle das condições de saúde dos trabalhadores das redes direta e conveniada, com a realização de testes da COVID-19 nesses profissionais, quando disponíveis; e (iv) a maior integração intersetorial, como forma de responder de maneira articulada à complexidade da atuação na pandemia.

Em suma, ainda que a política de assistência social brasileira tenha avançado nos últimos 15 anos, sua implementação permanece marcada por inúmeros problemas - que se agravam com a chegada de uma pandemia, cujos impactos incidem de maneiras muito distintas na população brasileira em razão das desigualdades sociais históricas. Nesse cenário, a rede de assistência social faz parte de um conjunto essencial de ações de enfrentamento à COVID-19, mas faltam o suporte institucional e os recursos necessários à realização deste trabalho de forma adequada. Isso expõe não apenas estas profissionais da ponta, como, acima de tudo, os cidadãos e cidadãs em situação de vulnerabilidade que dependem tanto do trabalho destas profissionais para terem condições mínimas de sobrevivência. Em tempos de pandemia, quem cuidará dos cuidadores?

 

Este artigo foi produzido a partir dos debates realizados pelo Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB-FGV) sob coordenação da professora Gabriela Lotta.

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