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Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Quem planeja a cidade para tantas Marias? O reflexo do patriarcado no urbanismo paulistano

Por REDAÇÃO
Atualização:

Bianca Mendes Pires Ji, Graduanda em Administração Pública na FGV EAESP

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Carolina Mazzacoratti Mindlin Loeb, Graduanda em Administração Pública na FGV EAESP

Considerada a cidade mais rica da América Latina, São Paulo passou a ser de interesse econômico para o Brasil na segunda metade do século XIX, a partir da expansão cafeeira e da instalação de uma ferrovia que ligava as regiões produtoras com o porto de Santos. Com o aumento da industrialização até 1930, o processo de urbanização foi marcado pela construção de infraestruturas de saneamento básico, bondes elétricos, iluminação pública e pavimentação das vias, resultado de espaços públicos e políticos majoritariamente ocupados por homens brancos e alfabetizados.

Nesse contexto, o processo de urbanização foi também manifestação viva e material de valores de uma sociedade conservadora e patriarcal. Há quem pense que São Paulo, uma cidade tão diversa, assumiu horizontalidade e neutralidade em sua constituição, sem considerar que cresceu e se expandiu como decorrência de sucessivas decisões políticas, tomadas por aqueles que estão em posições sociais e econômicas historicamente privilegiadas, sobretudo homens integrantes de uma elite do poder.

Para compreender essa discussão e a luta pelo direito à cidade a partir de uma perspectiva que olhe para as mulheres, é necessário problematizar os principais moldes que fundamentam a produção acadêmica e as políticas urbanas. Tanto a produção acadêmica como as políticas urbanas, em grande medida, resultam da ação de homens que não reconhecem as demandas apontadas pelas mulheres em suas lutas cotidianas, em suas histórias de vida nas cidades, como relembra Ana Luiza Oliveira (2018).

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 Foto: Estadão

Autoras protestam na Av. Paulista, em São Paulo (SP), em 8 de março de 2022 - Crédito: Alessandra Anselmi

Paula Villagrán afirma que "a cidade é um agrupamento de normas urbanas de gênero onde a lógica patriarcal pode produzir e reproduzir formas de coerção e dominação masculina" (Villagrán, 2014, p. 204), e o mesmo pode ser percebido de uma perspectiva interseccional de raça e classe,  a partir da desigualdade em que o planejamento urbano se apoia, e reforça. 

Um modelo urbanístico construído por homens brancos está distante de um plano coletivo e democrático de cidade, especialmente para mulheres negras e periféricas que, quando mães, precisam levar e buscar seus filhos às escolas e creches em calçadas estreitas, ruas mal iluminadas e necessitam cruzar a cidade para chegar em seus trabalhos. 

O Grajaú, por exemplo, um dos bairros mais populosos de São Paulo e com predominância da população negra, sofre com questões alarmantes em relação ao acesso à serviços públicos e qualidade de vida: para registrar uma denúncia uma mulher caminha cerca de 15 km até uma delegacia, segundo o Mapa da Desigualdade de 2022.

Assim, o sistema de mobilidade também é uma questão a ser debatida. Por ser fundamentado em um modelo linear, elaborado para setores do mercado majoritariamente compostos por homens  (Harkot, 2018), o desenho do transporte público desconsidera que, as mulheres, historicamente condicionadas à lógica do cuidado, possuem uma jornada que vai muito além do trajeto casa-trabalho, e por isso necessitam de um modelo adaptado às suas necessidades.

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Além dessa desarticulação, é notável a insegurança do ambiente do transporte público para meninas e mulheres. Infelizmente, não é incomum abrir os jornais e ler sobre casos de assédio sexual e até mesmo homens ejaculando em mulheres dentro do ônibus, como ocorreu em 2017 em um ônibus na região do Tatuapé[1].

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Nesse enfoque crítico, é visível como as cidades são capazes de exercer diversas opressões de gênero, deixando mulheres vulneráveis às violências urbanas. A partir dessa realidade, percebe-se uma "recomendação" silenciosa para que estas deixem de circular e frequentar certos lugares, a rigor transformando o direito à cidade em privilégio.

No seu texto Direito à Cidade: uma trajetória conceitual,  Bianca Tavolari (2016), afirma: "Cada vez que a tarifa sobe, aumenta o número de pessoas excluídas pelo transporte coletivo. Com menos gente circulando, novos aumentos serão necessários, numa espiral que diminui cada vez mais o direito à cidade da população". Destarte, a dicotomia entre privilégio e exclusão é alimentada por essa relação cíclica, e às classes mais pobres restam ônibus lotados com tarifas inalcançáveis. 

Ainda nessa lógica de manutenção de privilégios e privação do direito à cidade, multiplicam-se os processos de gentrificação, em conjunto com a elitização de espaços urbanos e a segregação de comunidades inteiras. O processo é notado não só pela clivagem de classes, mas por mais uma violação de direitos da minoria retratada, dado que ao menos 15 milhões de moradias inadequadas são ocupadas por mulheres, segundo levantamento da Fundação João Pinheiro sobre o déficit habitacional no país, em 2021 (Nunes, 2022).

Tudo isso nos remete à questão crucial: Quantas Marias participam do planejamento urbano? O direito à cidade também lhes pertence? Tendo em vista que, atualmente, a Câmara Municipal de São Paulo é composta apenas por 13 vereadoras entre os 55 parlamentares com mandato, percebe-se a urgência da representação das mulheres nos processos decisórios de políticas públicas, para que assim o direito à cidade saia do papel e seja realidade.

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Enquanto as cidades forem planejadas e construídas para o continuado privilégio dos homens brancos, seguiremos com milhões de Marias enfrentando a enorme selva de pedra chamada São Paulo. E na selva a lei é clara: manda e sobrevive quem está no topo.

Nota

"'Pingou no meu pé, nojo', diz vítima de homem que ejaculou em ônibus em SP. G1, São Paulo, 27 de setembro de 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/google/amp/sao-paulo/noticia/pingou-no-meu-pe-nojo-diz-vitima-de-homem-que-ejaculou-em-onibus-em-sp.ghtml  Acesso em: 22 dez 2022

Referências

CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. VEREADORAS. São Paulo, 2022. Disponível em: https://www.saopaulo.sp.leg.br/mulheres/vereadoras/ Acesso em: 22 dez 2022

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HARKOT, Marina Kohler. A bicicleta e as mulheres: mobilidade ativa, gênero e desigualdades socioterritoriais em São Paulo. 2018. 192f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018

REDE NOSSA SÃO PAULO. "MAPA da Desigualdade". São Paulo, 2022. Disponível em: https://www.nossasaopaulo.org.br/campanhas/#13. Acesso em: 22 dez. 2022.

NUNES, Caroline. Mulheres ocupam 60% das moradias precárias no Brasil. Alma Preta, [S. l.], p. 1, 16 mar. 2022. Disponível em: https://almapreta.com/sessao/cotidiano/mulheres-ocupam-60-das-moradias-precarias-no-brasil. Acesso em: 10 out. 2022.

OLIVEIRA, Ana Luiza.. Mulheres e ação política: lutas feministas pelo direito à cidade. PerCursos, Florianópolis, v. 19, n. 40, p. 111 - 140, 2018. 

TAVOLARI, Bianca. Direito à cidade: uma trajetória conceitual. Novos Estudos CEBRAP, Brasil, v. 35, n. 1, p. 93-109, outubro de 2016.

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VILLAGRÁN, Paula Sotto. Patriarcado y Orden Urbano: nuevas y viejas formas de dominación de género en la ciudad. Revista Venezolana de Estudios de La Mujer, Caracas, v.19, n.42, p.199-214, jan. 2014

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