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Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Reforma Tributária: reflexões sobre a necessidade de um sistema mais justo e que resguarde o pacto federativo

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Por Redação
Atualização:
 Foto: arquivo pessoal.

Juan Rodrigues Penna da Costa, Mestre em Direito Público pela UERJ, especialista em Direito Fiscal pela PUC-RJ e graduado em Direito pela UFRJ. Auditor Fiscal de Carreira, desde 2021 é Subsecretário de Receita de Niterói

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Marília Ortiz, Mestre em Administração Pública e Governo pela EAESP-FGV, especialista em Finanças Públicas e Auditoria pela FACC-UFRJ e graduada em Gestão de Políticas Públicas pela USP. Desde 2021 é Secretária de Fazenda de Niterói

A tônica dos discursos na Câmara dos Deputados foi clara. Nas palavras de seus defensores, entre parlamentares, políticos, representantes de segmentos do mercado e da academia, se dizia que "esta reforma tributária não é a ideal, mas é a possível". É este o sentimento que toma conta de boa parte da sociedade após a aprovação na Câmara. A reforma possui importantes pontos em aberto. Porém, seus benefícios para o Brasil são grandes. O atual sistema remonta ao início da ditadura militar e já não é, há muitos anos, capaz de atender às demandas da economia e da sociedade.

Os principais benefícios da reforma vêm sendo amplamente noticiados na imprensa. A população, aos poucos, começa a compreender os "porquês" de sua importância. A complexidade da legislação tributária sobre o consumo, com quase 5600 legislações diferentes, regimes especiais, isenções e benefícios fiscais em profusão, torna impossível a qualquer especialista em tributação no mundo compreendê-la por completo. São livros e livros de normas que explicam como calcular o ICMS, ISS, PIS/COFINS e IPI. A cada artigo da legislação, encontram-se ambiguidades e indeterminações que contaminam a segurança de uma empresa para avançar em determinado empreendimento, ao mesmo passo que prejudica o setor público, que vê suas receitas serem alvo de um elevadíssimo número de riscos contingentes decorrentes de litígios. A complexidade do sistema tributário como um todo se reflete em 3,4 trilhões de reais, mais de 50% do PIB nacional, acumulados em disputas entre os fiscos e contribuintes.

Não é à toa que a legislação tributária brasileira é tão complexa. Ela exige muito esforço dos contribuintes para sua conformidade. Este intrincado de normas vem de um sistema que permite a criação de muitas exceções por cada ente federado. A liberdade para introdução de exceções favorece lobbies, o que resulta em vantagens tributárias para os mais diversos setores ao longo de quase 60 anos desde a promulgação da Emenda Constitucional nº 18/1965. Os atalhos criados pelos lobistas favorecem reações das Administrações Tributárias que, nesse jogo de gato e rato, fazem com que as entrelinhas da lei falem mais alto do que as linhas. Uma guerra travada até mesmo entre os entes federados: uns contra os outros, cada um considerando o seu interesse e, na ponta da linha, com prejuízo para todos.

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Nestas condições, a reforma tributária vem como um freio de arrumação. Em um apertadíssimo resumo, ela transforma cinco tributos (ICMS dos estados, ISS dos municípios, PIS/COFINS e IPI da União) em três: o Imposto Sobre Bens e Serviços (IBS), compartilhado entre estados e municípios, a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e um Imposto Seletivo, estes últimos pertencentes à União. O IBS e a CBS são um IVA, um imposto sobre valor agregado, e possuem praticamente as mesmas regras. A simplificação vem pelo fato de as regras deste IVA serem uniformes e densamente descritas na Constituição, transformando as legislações sobre consumo em apenas uma (duas, se considerada a possibilidade de pequenas diferenciações entre o IBS e a CBS). Já o imposto seletivo será pontual para determinadas atividades prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, com regras similares às do atual IPI.

É um remédio amargo que retira de estados e municípios parte da autonomia para tratar de seus principais impostos. Até por isso, houve muita resistência, com propostas alternativas que melhor preservam essa liberdade. Entre estas, se destacou a proposta do "Simplifica Já", defendida pela Frente Nacional dos Prefeitos (FNP), que mantinha o ICMS e o ISS. No fim, a Câmara dos Deputados, apoiada pelo Poder Executivo, optou pela proposta mais arrojada, na convicção de que a fusão destes dois impostos seria essencial para a coleta dos benefícios de simplificação que a reforma propõe.

A seguir destacamos três pontos centrais que, em nossa avaliação, são avanços importantes da proposta de reforma tributária aprovada na Câmara dos Deputados.

1. Uma reforma que preza pela sustentabilidade ambiental e social

É inegável que o mundo mudou entre a década de 60 do século XX e a de 20 do século XXI. Os desafios de uma economia sustentável que preserve as gerações futuras são prementes e endereçados nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU e nas políticas de governança ESG. Não há como dissociar as atividades dos setores público e privado da baliza da sustentabilidade.

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A reforma tributária não passou à margem do tema e inseriu o princípio do equilíbrio e da defesa do meio ambiente como informador do sistema tributário nacional. O texto prevê a progressividade do IPVA em função do impacto ambiental do veículo automotor, estabelece critérios de preservação do meio ambiente para concessão de incentivos regionais e insere a taxação de atividades que envolvem impacto ambiental pelo imposto seletivo da União.

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Outro assunto que não pode ser ignorado é o combate à desigualdade social. Se não é um tema novo, é um dos mais prioritários desafios para a sociedade brasileira. A concentração de renda, a precarização das relações de trabalho e a redução do número de vagas de emprego, como consequência da digitalização da economia, colocam a tributação como uma das mais importantes ferramentas para reduzir desigualdades.

A reforma introduz regras que corrigem distorções do sistema e reduzem a regressividade, tributando os mais ricos em detrimento dos mais pobres. O IPVA passa a incidir sobre aeronaves e embarcações privadas, jatinhos, iates, jet skis etc. O imposto também pode ter alíquotas maiores para veículos de luxo. O ITCMD (sobre doações e heranças) passa a ser necessariamente progressivo em função do valor da transmissão. O contribuinte de baixa renda poderá ter a devolução do IBS pago através de um cashback. Por fim, apesar das críticas a esse modelo de imunidade, vale dizer que a alíquota zero da cesta básica também é um mecanismo que reduz a regressividade da tributação e alivia o bolso das pessoas com menor capacidade de contribuir.

2. Uma reforma que resgata neutralidade tributária

Reza a doutrina econômica que um bom imposto é aquele que possui a menor interferência na tomada de decisão dos setores produtivos quanto à forma de alocação de recursos. Nessa linha, a não-cumulatividade ampla do IBS será muito benéfica para a economia brasileira, especialmente para a indústria. Hoje a indústria brasileira representa apenas cerca de 10% do PIB nacional e sua recuperação é fundamental.

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O ICMS dos estados é um tributo que nasceu com a premissa da não-cumulatividade. Ele deveria ser o IVA brasileiro, criado mais ou menos na mesma época em que os IVAs europeus, entre as décadas de 50 e 70 do século passado. Apesar disso, a não-cumulatividade do ICMS foi erodida com os frequentes regimes especiais e exceções à regra geral de creditamento. A competitividade das empresas no Brasil em relação às estrangeiras diminuiu em boa parte por conta das regras tributárias. Planejamentos tributários passaram a ser mais importantes do que as estratégias baseadas na logística da produção. Ao limitar a possibilidade de novas exceções às regras de creditamento, o sistema tributário previne a ação dos lobbies.

3. Uma reforma que estabelece a tributação no destino com alíquotas uniformes

Quando uma empresa paga menos imposto ao se estabelecer em determinado local, se o seu custo de produção mais o imposto for mais barato, ela irá se instalar, mesmo que na prática ela perca eficiência no processo. Trata-se de matemática: se o custo final é menor, os preços serão mais competitivos e valerá a pena perder eficiência para pagar menos imposto. Por outro lado, quando o valor do imposto não é determinado em função do local onde a empresa se localiza, na origem, mas em função do local onde está o consumidor, no destino, a empresa optará por se estabelecer no local que lhe proporcionar mais eficiência.

É a lógica perfeita para uma economia digitalizada, onde não é mais importante de onde o bem ou serviço é ofertado, mas onde os efeitos deste consumo se manifestam. É o caso de serviços da economia compartilhada, streaming, software as a service, internet das coisas, entre outras tecnologias que independem do território onde está o dono do software.

A reboque de todos estes benefícios, os entes federados preservam a capacidade de tributar. Encerra-se a disputa por quem dá o menor preço de tributo. Cada estado e município baixará sua alíquota do IBS. Não como estratégia de sobrevivência, mas como consequência de uma boa política de gastos.

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Pontos em aberto a partir de uma perspectiva municipal

Da perspectiva dos municípios, tendo como paradigma a posição de Niterói, situada como uma cidade de médio porte no estado do Rio de Janeiro e que possui uma boa política de gestão e efetiva arrecadação de impostos, há alguns pontos importantíssimos que demandam debate e definições.

A primeira questão é a perda da autonomia provocada pela extinção do ISS. Hoje, qualquer município pode manipular as alíquotas do imposto, dentro da margem de 2% a 5% sobre o preço do serviço. Em um cenário de crise de receitas, é possível aumentar a carga, enquanto em outro cenário é possível beneficiar determinados segmentos do setor de serviços. A reforma limita consideravelmente essa autonomia, que se restringirá à manipulação da alíquota de referência do IBS, que será única. Em resumo, o município não pode reduzir ou aumentar a alíquota por segmento. A limitação é muito boa para a simplicidade do sistema, mas com reflexos negativos sobre a capacidade de adaptação frente a mudanças bruscas na economia.

O segundo ponto que destacamos é o número elevado de exceções no qual pode residir longas disputas, além de potencialmente impactar no aumento da alíquota de referência de modo a "compensar" as desonerações. A alíquota de referência, a única que pode ser manipulada por estados e municípios, é reduzida a 40% de seu valor nos casos expressos na Constituição, dentre os quais os serviços de saúde, educação, transporte coletivo de passageiros, produtos agropecuários, entre outros. Em alguns casos, como na cesta básica nacional, a alíquota é zero. Em outros a alíquota pode ser zero, na forma da lei complementar.

O terceiro ponto - que foi polêmico e alvo de intenso debate durante o processo de votação - trata da gestão do IBS por meio de um Conselho Federativo com participação paritária dos estados e dos municípios. Cada estado terá um assento no Conselho, ou seja, são 27 vagas. Como seria impossível que cada um dos 5.570 municípios tivesse um assento, todos eles foram contemplados também com 27 vagas. A representação dos interesses específicos dos municípios inevitavelmente será mais complexa do que a dos estados. Na prática, muitos municípios serão reféns das decisões do Conselho Federativo.

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Sobre a governança do Conselho, um ponto de atenção é a regra de aprovação de suas deliberações. Pelo texto aprovado, que contou com a articulação do governador do estado de São Paulo, para que determinada decisão seja aprovada, é necessária a maioria absoluta dos votos dos estados, desde que estes estados aglutinem mais de 60% da população do país. Essa é uma regra que estabelece um certo poder de veto para o Sudeste em detrimento de outras regiões menos populosas, o que pode favorecer a perpetuação de desequilíbrios regionais.

Caberá também ao Conselho Federativo a coordenação das atividades de fiscalização. Nesse sentido, qual será o papel da fiscalização tributária municipal e qual será o da fiscalização estadual? Haverá segmentação por atividades econômicas? Como se efetivará a fiscalização por um município com alto consumo de bens e serviços de empresas que estão estabelecidas a 2.000 quilômetros de distância? Nessa seara há muitas questões em aberto.

O quarto ponto polêmico que destacamos trata do período de transição. Enquanto a transição para a extinção dos impostos atuais levará oito anos, os mecanismos de compensação só serão extintos definitivamente em 2078. Até lá, investimentos locais em infraestrutura e atração de empresas terão menor efeito no aumento de arrecadação. O mesmo se dá com a autonomia para manipular a alíquota do IBS local. Como, na transição, boa parte do recurso será distribuída por outro critério que não a alíquota, a capacidade de aumentar a arrecadação por este meio é limitada.

Para as empresas, o desafio será a manutenção de um regime com mais três impostos entre os anos de 2026 e 2033. Este será um período de muitas novidades. As definições que ficaram para lei complementar serão determinantes para o sucesso da reforma em seu objetivo de fomentar a atividade econômica. Por falar em lei complementar, está aí a grande questão. Por mais que a PEC aprovada na Câmara estabeleça bem as bases do novo sistema de tributação do consumo, muitas coisas ainda ficaram para a tal lei e os benefícios da reforma dependerão muito do texto da futura legislação. A determinação das alíquotas de referência, a forma de pagamento do cashback, a explicitação da forma dos regimes especiais admitidos, e outras questões, ficaram para depois e inspiram muitos cuidados.

Compreendemos a reforma tributária como um tema fundamental para o Brasil. Se pretendemos retomar o rumo do crescimento, precisamos necessariamente passar por ela. A reforma que foi votada na Câmara não é a ideal, mas foi a aprovada pelos representantes da sociedade após 30 anos de tentativas fracassadas. Ela certamente é melhor do que existe hoje.

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A reforma traz justiça, reduz regressividade, sedimenta conceitos, amplia a base tributária, coloca a tributação do país na rota da sustentabilidade, entre outras virtudes. Há perigos como a dosimetria da alíquota, a regulamentação do Conselho Federativo, a redução dos mecanismos de defesa frente a crises de arrecadação, a dependência dos municípios do repasse de recursos, entre outros. Cabe agora ao Senado aparar arestas, reduzir o número de exceções inseridas no texto e avançar na importante tarefa de elaborar as leis complementares que traçarão os contornos do novo sistema de tributação do consumo. Mantenhamos um otimismo vigilante e que anteveja cenários de prosperidade para todo o país e, principalmente, para os municípios brasileiros.

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