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Como a conjuntura do País afeta o ambiente público e o empresarial

Videogames: para o bem ou para o mal?

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Por Redação
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 Foto: arquivo pessoal.

Lucas Busani Xavier, Graduado e Mestrando em Administração de Empresas (FGV EAESP). Estuda culturas de consumo, com foco em videogames, e a relação humano-tecnologia sob a lente da sócio-materialidade| Twitter: @BusaniLucas

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Depois dos violentos ataques às escolas presenciados recentemente, mais uma vez vimos o embate entre oportunistas e moralistas buscando nos videogames uma saída fácil para trazer soluções que nada resolvem, enquanto membros da comunidade e influenciadores gamers defendiam a unhas e dentes seus jogos prediletos, mas também com pouca desenvoltura. Para encerrar com chave de ouro, o presidente Lula soltou ontem - mais uma vez - uma fala desastrosa, dessa vez tomando o lado do moralismo raso culpabilizando os jogos pela violência que se espalha entre a juventude brasileira. Poucos foram aqueles que trouxeram a discussão de forma crítica e profunda, e aqueles que o fizeram costumar ter menos visibilidade do que discursos mais bombásticos. Meu objetivo, aqui, é tentar aprofundar um pouco mais a discussão.

O pânico moral ao qual o presidente se inseriu é interessante - e preocupante - porque permeia tanto discussões conservadoras quanto progressistas, mas se encontra claramente mais forte dentro de alguns grupos geracionais que não cresceram com videogames à mão. O argumento não é nada novo: essa tal mídia nova a qual desconhecemos e fazemos questão de não entender é estranha, violenta, chula, perigosa e deve ser regulada com mão firme.

Do outro lado, fãs de videogames se opõem a tal questão, mas, mais interessante ainda, defendem videogames como meios de promoção de aprendizados diversos, fomento de conexões sociais, experiências únicas e tantas outras coisas boas. Também não podemos esquecer de como games têm sido cada vez mais usados em contextos de negócios e marketing, por meio da gamificação: usando elementos de jogos em ambientes de não jogo, ações gamificadas prometem - e algumas vezes entregam - engajamento com marcas, vendas, mudança de comportamento de funcionários, integração de equipes, dentre outros. Ora, se games são capazes de influenciar o comportamento das pessoas, interações sociais e até mesmo de ensinar de maneira positiva, por que não negativa?

Ou melhor: se videogames podem ser usados para o bem, por que não para o mal?

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A resposta simples seria que eles obviamente podem servir propósitos distintos, e gerar resultados antagônicos dependendo de seu conteúdo. Mas, como toda resposta simples, ela também é uma resposta que relativiza a mídia a ponto de minar qualquer análise crítica sobre o assunto. Além disso, muitas vezes o extremismo e violências fomentados dentro de comunidades gamers se dá mais pelos agrupamentos formados ao redor dos games, suas culturas e suas práticas, do que única e diretamente ligados aos jogos.

Uma lente que acredito ser capaz de analisar objetos culturais e tecnológicos complexos como é o caso dos videogames, é a partir da Teoria das Affordances. Cunhada dentro da psicologia ambientalista, affordances podem ser entendidas como possibilidades de ações que um ambiente delimita para dado indivíduo (Gibson, 2014). Para além de seu campo original, em estudos de interação humano-tecnologia, uma affordance é um atributo material que enquadra o comportamento humano (Hutchby, 2001). Ou seja, em vez de entendermos objetos tecnológicos e midiáticos como determinadores do nosso comportamento em relação a eles, analisamos suas qualidades materiais como requisitantes, demandantes, encorajadoras, desencorajadoras, recusantes ou permissivas para uma certa gama de ações (Davis & Chouinard, 2016). Não só isso, affordances muitas vezes são construídas também a partir das relações sociais (Schmidt, 2007), assim como de nossa imaginação (Nagy & Neff, 2015).

Um exemplo prático, dentro do universo de jogos e com relação à violência, pode ser encontrado no grande sucesso indie Undertale (2015). Em todo e qualquer combate nesse jogo, o jogador pode tanto lutar e derrotar os inimigos, como dialogar com eles e terminar o combate sem realizar nem um único ataque. A possibilidade é dada ao jogador, que então age sobre ela. A mecânica vai além dos embates, e afeta a narrativa de jogo a medida em que o jogador passa a criar amizades e consegue desbloquear um final secreto. A subversão do jogo na relação entre jogador e inimigos em RPGs clássicos torna o jogo não apenas único e interessante, uma vez que a maioria dos jogadores pode não esperar que o diálogo seja uma possibilidade de ação - affordances (não) imaginadas -, como também elucida a capacidade de jogos de apresentarem possibilidades de ação múltiplas em relação a sua violência.

Imagem 1. Tela de combate em Undertale

Fonte: https://undertale.fandom.com/wiki/Encounter  

Não podemos, porém, relativizar os jogos ao extremo, atribuindo a eles uma posição puramente neutra de possibilidades disponíveis às quais jogadores distintos interpretam e realizam à sua própria vontade e agência. Os enquadramentos das possibilidades de ação podem ser implementados com diferentes pesos, e isso é sempre por design. Por exemplo, no mesmo Undertale, por mais que seja difícil finalizar os combates apenas com diálogo, exigindo destreza do jogador, a premiação por jogar dessa forma é extremamente valiosa. Assim, o jogo não apenas dá a possibilidade, como encoraja que ela seja realizada. Da mesma forma, jogos violentos podem encorajar jogadores a abordarem sua violência de maneira alienante ou crítica.

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Em Nier (2010) - relançado em versão remasterizada como Nier: Replicant ver. 1.22474487139... em 2021 -, o jogador passa metade do jogo aniquilando centenas de sombras (shades), monstros feitos de fumaça escura. Além de serem o inimigo padrão do jogo, o personagem principal tem um enorme ódio pelas sombras, e as culpa pelos males que afligem o mundo pós apocalíptico do jogo. É apenas na metade do jogo que o jogador descobre que essas sombras são, na verdade, almas perdidas de humanos, que os personagens principais são replicantes - algo entre ciborgues e homúnculos - cujos corpos deveria ter virado o receptáculo dessas almas humanas, mas acabaram criando consciência própria. A descoberta, porém, é apenas do jogador, e não do personagem, e assim o jogo segue obrigando o jogador a continuar matando inúmeras sombras, almas humanas.

 

Imagem 2. Combate em Nier Replicant onde o personagem principal luta contra sombras usando suas magias

Fonte: https://www.fortressofsolitude.co.za/nier-replicant-ver-1-22-review/  

Através da violência, o jogo tenta evocar reflexões e sentimentos que passam longe do ódio. Como o próprio criador Yoko Taro contou, a série Nier tem como objetivo mostrar como conflitos armados fundamentados em ódio muitas vezes tem origem na falta de reconhecimento do outro e de formas de comunicação entre os grupos em conflito. Enquanto outras mídias também já abordaram tal assunto, o videogame traz uma oportunidade única de colocar o jogador em controle do personagem no combate, mas não em controle suficiente para evitar a continuação da matança. Não é apenas ver o ódio corroendo um personagem e uma história sangrenta se desenrolar, é estar em comando desse personagem ao mesmo tempo em que não é possível fazer nada a respeito.

Ambos os exemplos são, obviamente, implementações de mecânicas e narrativas que usam da violência para criticá-la, mas nem todos os jogos são assim. Abdicar, tanto da perspectiva de que videogames como determinantes do comportamento, como do relativismo raso de que games podem ser interpretados de infinitas maneiras, é entender que objetos tecnológicos e midiáticos são consumidos através de uma negociação agêntica entre indivíduo e objeto. Se de um lado o jogo enquadra de diferentes maneiras e intensidades as possibilidades de ação, do outro os jogadores agem sobre esses jogos através de suas próprias interpretações, imaginações e objetivos. O fomento - direto ou indireto, intrusivo ou não - de certos comportamentos e relações em jogos é responsabilidade dos jogos, enquanto a realização destes é de competência e responsabilização dos jogadores.

Não é de hoje que sabemos da disseminação de ódio, misoginia, racismo e outros males dentro de comunidades gamers, mas é preciso entender se o papel dos games se situa nos ideais disseminados por essas comunidades, ou como fio condutor das relações entre esses indivíduos. Videogame são, afinal, meios poderosos pelos quais indivíduos se conectam e se comunicam. Mas, também o são redes sociais, como o Twitter que se nega a tomar providências, comunicando-se através de emojis de cocô.

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Se assim for, seriam os games o problema? Ou seriam os games meios pelos quais o problema prolifera, tal qual outras mídias e tecnologias? E se assim for, qual é o problema real que o pânico moral dos games encobre em sua retórica reducionista e rasa? Não sei dizer ao certo, mas refleti recentemente neste mesmo blog sobre assuntos que, mesmo um pouco distantes, talvez apresente um caminho para responder tais questões.

Referências

Davis, J. L., & Chouinard, J. B. (2016). Theorizing Affordances: From Request to Refuse. Bulletin of Science, Technology & Society, 36(4), 241-248. https://doi.org/10.1177/0270467617714944

Gibson, J. J. (2014). The Ecological Approach to Visual Perception: Classic Edition. Psychology Press. https://doi.org/10.4324/9781315740218

Hutchby, I. (2001). Technologies, Texts and Affordances. Sociology, 35(2), 441-456. https://doi.org/10.1177/S0038038501000219

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Nagy, P., & Neff, G. (2015). Imagined Affordance: Reconstructing a Keyword for Communication Theory. Social Media + Society, 1(2), 205630511560338. https://doi.org/10.1177/2056305115603385

Schmidt, R. C. (2007). Scaffolds for Social Meaning. Ecological Psychology, 19(2), 137-151. https://doi.org/10.1080/10407410701332064

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