O governo de São Paulo não possui um mecanismo de transparência no qual seja possível acompanhar de maneira detalhada os gastos sem licitação realizados pelo governador, vice e secretários de Estado. Com isso, as despesas miúdas e de pronto pagamento, feitas com um cartão corporativo, ou até mesmo os gastos em viagens oficiais feitos pela alta cúpula do Executivo estadual não podem ser verificados pelo cidadão comum. A falta de acesso a esse grupo de gastos do governo de São Paulo já acontecia em gestões anteriores à de Tarcísio de Freitas (Republicanos).
Procurado, o governo informou que as prestações relacionadas às verbas de representação são fiscalizadas pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE) e que estão de acordo com a fiscalização (veja a íntegra da nota abaixo).
Um exemplo do baixo nível de transparência no Estado é o gasto de Tarcísio em viagens nacionais e internacionais. Para o custeio de hospedagem e alimentação, o governador recebe uma verba de representação por meio da Casa Civil, que, por sua vez, também é encarregada de distribuir fundos ao vice-governador, Felício Ramuth (PSD), e ao secretário da pasta, Arthur Lima (PP). No entanto, o órgão não fornece uma divulgação detalhada das despesas, limitando-se a apresentar apenas o valor total pago às autoridades.
No período de janeiro a setembro, Tarcísio, Ramuth e Lima receberam, em conjunto, R$ 433 mil para suas viagens nacionais. Porém, não é possível determinar a parcela desse montante destinada a cada um, uma vez que essa informação não está disponível no portal da Transparência.
Para as viagens internacionais, por outro lado, o governador é a única autoridade com permissão para receber verba de representação, enquanto que o vice e os secretários de Estado recebem ajuda de custo. Isso permite uma distinção clara das despesas de Tarcísio, já que ele é o único beneficiário legal desses fundos. Segundo o portal da Transparência, a Casa Civil desembolsou R$ 470 mil para verba de representação em viagens ao exterior neste ano.
A diretora de programas da Transparência Brasil, Marina Atoji, conta que é comum que a qualidade na prestação de contas piore a depender do ente federativo, sendo que a União costuma apresentar os melhores indicadores de transparência. Na sequência, há os Estados e depois os municípios. “É bem comum termos nos Estados uma transparência muito menor do que no governo federal. Isso porque o governo dá a transparência até o limite onde ele acha que tá bom ou que não pode incomodá-lo. De qualquer forma, isso está de acordo com a legislação”, diz.
Gastos de políticos recebem tratamento diferenciado
A falta de transparência nos gastos do alto escalão do governo estadual é uma exceção na administração pública de São Paulo. Enquanto o governador, vice-governador e secretários recebem verbas de representação para suas viagens nacionais, os demais funcionários são beneficiados com diárias. Diferentemente da verba de representação, que carece de detalhes específicos, as informações sobre o pagamento de diárias são facilmente acessíveis. No portal da Transparência, é possível pesquisar as diárias por nome de servidor, incluindo data, destino, motivo e valor da despesa.
Além disso, os servidores têm à disposição cartões corporativos para despesas miúdas e de pronto pagamento. Segundo levantamento de janeiro deste ano, existem mais de 4 mil desses cartões ativos em todo o Estado. Entretanto, a lei proíbe que agentes políticos, como governador, vice-governador e secretários, sejam os responsáveis desses cartões. No entanto, isso não impede que eles usem o recurso. Conforme a explicação do governo estadual, nesses casos, um servidor é encarregado de receber o cartão, enquanto o político pode indicar onde o dinheiro será gasto. Isso torna impossível ao cidadão saber quais desses gastos com cartões foram feitos para despesas do governador.
Embora o governo de São Paulo alegue que “as informações das despesas (com cartão corporativo) estão disponíveis no site Transparência”, não é possível confirmar se o cartão foi utilizado para atender a solicitação de algum agente político. Isso se deve ao fato de que não há descrição do motivo do gasto ou de qual autoridade a ele está relacionada. Entretanto, é possível identificar o portador do cartão, o estabelecimento onde a despesa ocorreu, e obter detalhes de data, valor e localização.
“O controle dos gastos desses cartões é realizado por meio de prestação de contas do servidor responsável pelo adiantamento, cuja documentação - composta especialmente por comprovantes originais de despesa, extrato bancário, balancete de despesas e comprovante de devolução do saldo não utilizado - é visada pela autoridade competente do órgão, conferida pela unidade de execução financeira e mantida à disposição do TCE pelo prazo legal. A relação das despesas é também divulgada no portal da Transparência”, esclareceu o governo do Estado em nota.
Marina Atoji, diretora da Transparência Brasil, destaca que a questão não reside no fato de os agentes políticos não possuírem cartões em seus nomes, mas sim na falta de transparência das informações. “É estranho mas (esse ponto específico) é normal, digamos assim. O próprio presidente da República não chega a ter (um cartão). É uma tentativa de evitar o uso indiscriminado por esse agente - não que garanta nada. O problema maior é mesmo não haver clareza, nos dados do Portal da Transparência, sobre quem são os servidores cujo cartão de pagamento é destinado especificamente a cobrir as despesas miúdas do governador e secretários. Isso deveria estar explicitado lá”, diz.
Ela também afirma que a maneira como o cartão corporativo é utilizado no Estado é mais “informal” em comparação com a União, onde há um ordenador de despesas responsável por centralizar os gastos de um agente político específico. Marina acrescenta que é necessário discernir se a falta de divulgação dos detalhes dos gastos do governador se deve à falta de transparência ou à possível inexistência de dados, uma vez que existe a chance de que essas informações nem mesmo sejam registradas.
Diferenças entre cartão corporativo estadual e federal
Ao contrário dos cartões corporativos da União, que são internacionais, de crédito e não têm um limite definido, os cartões do Estado de São Paulo são de débito, restritos ao território nacional, e têm um limite fixo de R$ 17,6 mil - embora nem todos alcancem esse saldo. Desde 2008, o uso de saques bancários com os cartões corporativos de São Paulo foi proibido, uma medida considerada um aprimoramento pelo governo estadual.
Governo diz que segue regra vigente e que gasto é fiscalizado
Durante a produção desta reportagem, a gestão paulista foi questionada diversas vezes sobre os mecanismos de transparência ativa do governo do Estado. No total, a gestão Tarcísio enviou três notas respondendo aos questionamentos do Estadão. No último texto enviado, o governo diz que a prestação de contas está de acordo com a legislação vigente e é fiscalizada pelo Tribunal de Contas do Estado. Embora em uma das nota o governo tenha citado a possibilidade de acessar os dados por secretário, o Estadão testou essa funcionalidade em diversas ocasiões e ela não funciona. Veja a íntegra dos posicionamentos:
NOTA 1: “O Governo do Estado informa que todos os dados relativos a licitações e compras realizadas pelo Governo, inclusive aquelas que fazem uso de Verba de Representação, estão disponíveis para consulta no portal da transparência (http://www.transparencia.sp.gov.br). As respectivas prestações de contas sobre o uso da verba de representação vinculadas ao gabinete são regularmente fiscalizadas e analisadas pelo Tribunal de Contas do Estado, de acordo com as instruções do TCE e a legislação vigente”.
NOTA 2: “Para custear os gastos com viagens nacionais, os servidores não usam cartões, e sim recebem diárias, conforme determina o Decreto Nº 48.292, de 2 de dezembro de 2003. No caso do governador, vice e secretários, o TCE veda designar agente político como responsável por receber adiantamentos (Súmula 46 do Tribunal). Portanto, nos casos dessas autoridades, um servidor fica responsável por receber a verba de adiantamento por cartão ou cheque emitido em seu CPF. As informações das despesas estão disponíveis no site Transparência”
NOTA 3: “Os dados solicitados estão disponíveis para consulta no portal da Transparência. Para acessar as verbas de representação, por exemplo, basta clicar em Despesas > Consultas e Gráficos Interativos, e na sequência ‘Consultas’, onde será possível selecionar as opções de pesquisa, fonte de informações e a forma os dados desejados. Na opção ‘livre’, por exemplo, cidadão poderá obter dados de qualquer despesa do Estado, inclusive Verba de Representação, selecionando o exercício fiscal desejado, a opção de pago e o item específico. Para saber o montante pago com Verba de Representação do Governador, basta inserir no campo ‘Órgão’ a ‘Casa Civil’. Importante esclarecer que o valor da verba de representação engloba não só a do Governador como também a do Vice e a do Secretário da Casa Civil. Em todo o ano de 2023, a Verba de Representação da Casa Civil totaliza R$ 433 mil.
Todos os adiantamentos são recebidos por servidores, pois é vedado adiantamento a agentes políticos (Súmula do TCE). Portanto, ao fazer a busca (caminho indicado acima) por verba de representação, virão as informações dos gastos dos agentes políticos (governador, vice e secretários), ainda que o pagamento seja feito pelo cartão em nome de um servidor. Basta a aplicação dos filtros conforme o nível de detalhamento e o tipo de gasto pretendidos, informando o nome da secretaria.
Cartão de Pagamento para uso dos servidores: o Governo de SP tem Cartão de Pagamento para despesas com adiantamento expressamente definidas em lei, como as despesas de caráter extraordinário e urgente e as despesas menores e de pronto pagamento, por exemplo material de escritório, remessas postais, transportes, periódicos e despesas de pequeno vulto e de necessidade imediata. O controle dos gastos desses cartões é realizado por meio de prestação de contas do servidor responsável pelo Adiantamento, cuja documentação - composta especialmente por comprovantes originais de despesa, extrato bancário, balancete de despesas e comprovante de devolução do saldo não utilizado - é visada pela autoridade competente do órgão, conferida pela unidade de execução financeira e mantida à disposição do TCE pelo prazo legal.
A relação das despesas é também divulgada no Portal da Transparência para o acompanhamento social e pode ser acessada na página de “Consultas” na opção ‘CARTÃO DE PAGAMENTO DE DESPESAS’.
Também importante esclarecer: Para deslocamentos nacionais, governador, vice e secretários recebem verba de representação. Secretários executivos e demais funcionários recebem diárias. Para deslocamentos internacionais, governador recebe verba de representação; demais funcionários recebem ajuda de custo. Para localizar Ajuda de Custo, no campo ‘Item’ (mesmo caminho informado na primeira resposta) selecionar ‘Ajuda de Custo’. Ou no filtro ‘Pago’ e no campo ‘Nome’ inserir o nome do secretário.”