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As relações entre o Poder Civil e o poder Militar

Delação de Cid pode fazer Bolsonaro ser expulso do Exército e deixar de ser capitão reformado

Trinta e cinco anos após se safar da declaração de indignidade para o oficialato, ex-presidente perderia até as medalhas; aposentadoria de capitão reformado passaria a ser paga à sua mulher, Michelle Bolsonaro

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Por Marcelo Godoy

Está ali nos artigos 99 e 100 do Código Penal Militar (CPM). Eles definem a perda do posto e da patente pelo militar que comete crimes. O primeiro diz que essa pena é aplicada a quem é condenado por qualquer delito a mais de 2 anos de prisão. O segundo afirma que a mesma punição deve ser imposta a todo aquele que for condenado por 13 tipos de crimes, não importando o tamanho da condenação.

Bolsonaro participa da cerimônia do Dia do Exército, com a Imposição da Ordem do Mérito Militar e da Medalha Exército Brasileiro, em 2022; se condenado terá de devolver as condecorações Foto: Isac Nóbrega/PR

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E é aqui que a casa pode cair de vez para o ex-presidente Jair Bolsonaro depois da delação do tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid, seu ex-ajudante de ordens. Mesmo que receba a pena mínima em um dos delitos, seu destino estará traçado em razão do tipo de crime. Isso porque entre as condutas que fazem o militar condenado ser expulso automaticamente da Força Terrestre estão o peculato e a falsificação de documentos. Bolsonaro é investigado sob a suspeita de ter praticado ambas as condutas no caso das joias das Arábias e no da fraude das carteiras de vacinação.

Se for denunciado, Bolsonaro será o quarto ex-presidente a se tornar réu em razão de delitos supostamente cometidos durante o exercício do cargo, uma situação de dar inveja ao Peru. Caso seja condenado, além de ir para a cadeia e perder a patente, ele terá de devolver as condecorações que recebeu, como a Ordem do Mérito Militar. Além disso, sua aposentadoria de capitão reformado de R$ 12.307,00 (valor recebido em junho) passará a ser paga à sua mulher, Michelle Bolsonaro, que seria considerada a “viúva” do oficial.

No passado, Bolsonaro conseguiu convencer a Justiça. Em 16 de julho de 1988 foi absolvido por 9 a 4 pelo Superior Tribunal Militar (STM), que reverteu o veredicto do Conselho de Justificação, um tribunal de honra do Exército, que, por 3 a 0, condenara cinco meses antes o capitão por ter mentido durante uma apuração determinada pelo ministro do Exército, Leônidas Pires Gonçalves. Bolsonaro disse em entrevista à Veja que tinha um plano para explodir bombas em quartéis, no Rio. Depois, negou ter dito o que disse.

General Leônidas Pires, então ministro do Exército no governo de José Sarney (1985-1990) Foto: Célio Jr/Estadão

O repórter Luiz Maklouf mostrou como a decisão dos ministros do STM contrariou os laudos grafotécnicos existentes da principal prova do caso: eles determinavam quem fez o croqui sobre como fazer e onde colocar as bombas. Para tanto, uma artimanha da defesa foi fundamental: dizer que existiam quatro laudos válidos em vez dos dois existentes. O veredicto do STM foi obtido por meio da indução a erro dos ministros.

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Uma manobra semelhante não seria possível agora. Isso porque qualquer advogado atuante no STM sabe que tanto o artigo 99 quanto o 100 têm uma particularidade: aplicam-se também aos militares inativos. A coluna já havia mostrado que de nada adiantaria o tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid pedir a passagem para a reserva antes do término das investigações da Polícia Federal.

É o que disse, por exemplo, o juiz-auditor da Justiça Militar de São Paulo Ronaldo João Roth, autor de Direito Militar – Doutrinas e Aplicações. Roth não tem dúvidas: os dois artigos alcançam os militares da reserva. “Aplica-se aos oficiais da ativa e da reserva não só com base na condenação a pena privativa de liberdade acima de dois anos em vitrine crime comum ou militar, mas também por desvio de conduta que torne o oficial incapaz para continuar com a patente, por meio de Conselho de Justificação”, afirmou.

O tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro (PL), presta depoimento à CPI dos Atos Antidemocráticos, na Câmara Legislativa do Distrito Federal, ao lado de seu advogado, Cezar Bitencourt Foto: WILTON JUNIOR

A espada que as investigações da PF faziam pender sobre a cabeça de Cid deve agora ameaçar a de Bolsonaro. A delação do ex-chefe da Ajudância de Ordens da Presidência tem o condão, segundo o jurista Walter Maierovitch, de abrir as portas da cadeia para o ex-presidente. Isso porque, para ter a delação aceita, Cid terá de apontar o papel de cada acusado nas tramas reveladas pelos agentes federais.

O que esperar da delação de Cid

Como mostrou o Blog do Fausto, o instituto da colaboração premiada está previsto na Lei das Organizações Criminosas e estabelece que um colaborador “deve narrar todos os fatos ilícitos para os quais concorreu e que tenham relação direta com os fatos investigados”. Em seu artigo 4º a lei diz que a colaboração deve ser feita em vista de se obter, entre outros, os seguinte resultados:

1) A identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas;

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2) a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa

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3) a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa.

É em razão desses três itens que a cúpula bolsonarista teme o efeito explosivo da delação de Cid. Não somente em razão dos meios de prova que pode fornecer para corroborar seu depoimento, mas também por ter a possibilidade de esclarecer o papel de ministros, assessores e políticos nas investigações sobre os atos golpistas – a minuta do golpe –, o ataque às urnas eletrônicas, as fraudes da carteira de vacinação e a venda das joias no exterior.

Cid pode, por exemplo, ajudar os investigadores a descobrir o paradeiro dos 128 presentes de autoridades estrangeiras que a auditoria do Tribunal de Contas da União identificou estarem ainda no acervo privado de Bolsonaro, em vez de incorporados ao patrimônio da União.

Ora, quanto mais relevante e eficaz for a colaboração de Cid e quanto mais o tenente-coronel se dissociar da organização responsável pelos malfeitos, mais o Ministério Público poderá requerer benefícios ao réu, inclusive o perdão judicial. Cid poderia até preservar – além do salário – o posto e a patente, livrando-se do opróbrio da expulsão. Mas sua carreira já está, definitivamente, encerrada.

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Após colocar a tornozeleira eletrônica, o tenente-coronel Cid chega a sua residência no Setor Militar Urbano, onde era aguardado pelo pai, o general Mauro Cesar Lourena Cid (dir.) e pelo advogado Cezar Bittencourt (esq.) Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO

No comando do Exército consideram-se imperdoáveis condutas como a falsificação das carteiras de vacinação. Ainda que o STF seja alvo de críticas em razão de sua atuação à moda da Lava Jato e, ainda que em futuro longínquo todos os processos sejam anulados ou as penas prescritas, existe a certeza de que Cid, um oficial tríplice coroado, jamais atingirá o generalato, a exemplo de seu pai, Mauro Cesar Lourena Cid, enredado no esquema de contrabando de joias e de transporte de muamba para o exterior.

Mas o tenente-coronel poderá salvar, além do posto e patente, também a honra do pai, conseguindo isentá-lo de acusações aviltantes. O acordo pode ainda ter o condão de abreviar o sofrimento de todos – de sua família, assim como o da cúpula do Exército, que não aguenta mais esperar o fim desta novela. A verdade é que quanto mais rápido tudo se esclarecer e quanto mais claro tudo ficar, maior será o risco de, desta vez, Bolsonaro não conseguir iludir os ministros das cortes superiores e se tornar um ex-capitão preso.

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