BRASÍLIA – Cinco dos sete ministérios que receberam verbas do orçamento secreto em 2021 ignoraram até agora um decreto do presidente Jair Bolsonaro (PL) que tinha por objetivo dar transparência às indicações de recursos por parte de políticos. Ao contrário do que determinou a norma assinada pelo presidente no dia 9 de dezembro, os ministérios da Saúde, da Educação, da Ciência e Tecnologia, da Cidadania e da Agricultura não divulgam em suas páginas na internet documentos com a comunicação entre as pastas e o relator-geral do Orçamento. É por meio destas comunicações que o Congresso aloca recursos do orçamento secreto, a pedido de parlamentares da base do governo.
A falta de transparência no uso das emendas de relator-geral - a base do esquema revelado em série de reportagens do Estadão -, levou o Supremo Tribunal Federal (STF) a determinar, em dezembro passado, a ampla publicidade dos documentos relacionados às demandas e à execução das emendas. O decreto de 9 de dezembro procurava, em tese, cumprir a decisão do STF e dar publicidade. Mas, mesmo nos ministérios que começaram a divulgar documentos, há falta de informações detalhadas sobre quem é autor dos pedidos de repasses.
Dois dos ministérios que ignoraram o decreto de Bolsonaro estão entre os que mais receberam verbas do orçamento secreto em 2021. Ao longo do ano passado, o Ministério da Saúde empenhou (isto é, reservou para gastar) R$ 7,6 bilhões em recursos das emendas de relator. Já o Ministério da Agricultura recebeu empenhos da ordem de R$ 1,1 bilhão – no ano passado, os empenhos da rubrica somaram, ao todo, R$ 16,7 bilhões.
Após o questionamento da reportagem, a Agricultura publicou na quarta-feira um link genérico para a Plataforma +Brasil, que centraliza informações sobre convênios do governo, mas não tornou públicas as comunicações com o relator do Orçamento. “Em breve, estas informações também estarão disponíveis nesta página”, diz o site da pasta. Já o Ministério da Cidadania disse, em resposta ao Estadão, que pretendia publicar as informações ainda nesta semana, o que não ocorreu. Os demais ministérios também foram procurados pela reportagem, mas não responderam.
De acordo com o decreto assinado por Bolsonaro e por Paulo Guedes, os ministérios tinham até a segunda-feira, dia 10 de janeiro, para publicar em seus sítios na internet a comunicação mantida pelas pastas com o relator-geral do Orçamento da data do decreto em diante – ou seja, a partir do dia 9 de dezembro de 2021. Já para as comunicações de antes de 9 de dezembro o prazo é maior – até o começo de fevereiro deste ano.
Segundo o texto do decreto, os ministérios deveriam publicar “as solicitações que justificaram as emendas do relator-geral”. Essas informações deveriam ser “organizadas de acordo com as programações orçamentárias correspondentes”e “divulgadas nos sítios eletrônicos de livre acesso dos respectivos Ministérios”, na forma da Lei de Acesso à Informação.
Até o momento, só as pastas da Defesa e do Desenvolvimento Regional (MDR) deram cumprimento, em parte, ao decreto. A pasta do Desenvolvimento, comandada pelo ministro Rogério Marinho (PL), porém, despejou informações de forma desorganizada, em documentos de formato PDF, não editável, com vários e-mails repetidos e com tabelas cortadas pela metade – em muitos casos, inviabilizando que se saiba qual parlamentar é o responsável pelas indicações. Além disso, o MDR não deixou claro quais indicações foram acatadas e resultaram na distribuição de recursos.
Já o Ministério da Defesa deu transparência às indicações datadas do ano de 2020, diretamente enviadas por senadores – os pedidos dos congressistas somam R$ 193 milhões. Apesar disso, a pasta não apresentou os nomes por trás do relator-geral de 2021, senador Márcio Bittar, que indicou R$ 543 milhões - não sabemos os padrinhos. Só se pode verificar que, em 2020, os principais beneficiados foram o então presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) e os senadores Chico Rodrigues (DEM-RR), Lucas Barreto (PSD-AP) e Eduardo Gomes (MDB-TO).
Pelo decreto de Bolsonaro, o Ministério da Economia também deveria publicar a lista dos “links” nos quais as demais pastas estão publicando as informações – o que ainda não aconteceu. Em resposta ao Estadão, a pasta comandada pelo ministro Paulo Guedes disse que a divulgação ocorrerá “tão logo (as páginas) sejam informadas pelos órgãos executores”.
Segundo especialistas ouvidos pelo Estadão, o descumprimento do decreto presidencial pode acarretar sanções para os responsáveis.
“O decreto tem a finalidade de regulamentar o cumprimento da Lei de Acesso à Informação (LAI) e da própria Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) pelos ministérios, em relação ao RP-9 (código usado para identificar as emendas de relator)”, diz o advogado Bruno Morassutti, que é mestre em Direito, especializado em direito público e processo civil. “O Tribunal de Contas da União (TCU) analisa todos os anos as contas dos ministérios, e um dos critérios é justamente o cumprimento da LAI e da LRF. Se o ministério não trouxer argumentos técnicos razoáveis para não estar cumprindo o decreto, os responsáveis pela pasta, os ministros, podem ter as contas rejeitadas ou julgadas com ressalvas”, diz Morassutti, que é co-fundador da agência Fiquem Sabendo, especializada em transparência pública.
“E, claro, na eventualidade de existir algum problema que demonstre um descumprimento deliberado (intencional), aí é possível que o TCU multe o gestor público e remeta o assunto ao Ministério Público Federal para que tome as medidas cabíveis”, completa Morassutti.
Autoria
No caso do MDR, porém, a falta de transparência é maior em relação às indicações feitas antes da decisão do STF e do decreto. Até agora, a pasta não publicou os documentos que recebeu do Congresso com indicações dos mais de R$ 8 bilhões que executou de emendas de relator-geral naquele ano. Como o Estadão mostrou, em diversas reportagens, a pasta comandada por Rogério Marinho foi o motor do tratoraço e empenhou, só em dezembro de 2020, mais de R$ 3 bilhões, para apoiadores da candidatura do deputado Arthur Lira (Progressistas-AL) à Presidência da Câmara dos Deputados.
Como também mostrou o Estadão, um documento assinado pelo relator-geral do Orçamento de 2020, deputado Domingos Neto (PSD-CE), deixou claro que houve registros sobre as indicações de parlamentares no esquema do orçamento secreto no Ministério do Desenvolvimento Regional. Neto confirmou que a liberação de recursos se deu por meio de conluio com a Secretaria de Governo da Presidência da República e que deputados e senadores que tiveram cotas solicitaram diretamente ao governo recursos que totalizaram R$ 5,4 bilhões do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR).
O Tribunal de Contas da União também tem tido dificuldade para obter as informações do Ministério do Desenvolvimento Regional sobre os autores das indicações. Em um dos processos em tramitação na Corte, o MDR alegou que não poderia informar ou identificar os parlamentares que direcionaram recursos das emendas do relator-geral (RP9) para celebração de convênios que tiveram sobrepreço, conforme apontado pelo Estadão.
Controle
Tanto o decreto presidencial como uma nova resolução do Congresso para tratar das emendas de relator-geral foram publicados após a intervenção do Supremo Tribunal Federal (STF), que veio em uma liminar, concedida pela ministra Rosa Weber, no dia 5 de novembro, determinando a suspensão dos pagamentos do Orçamento Secreto e a ampla publicidade. A determinação da ministra foi ratificada pelo plenário da Corte por 8 votos a 2, dias depois.
A resolução do Congresso, aprovada no dia 29 de novembro, só estabeleceu a obrigatoriedade de transparência das novas indicações de repasses. Os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), chegaram a afirmar ao Supremo que não seria possível obter as informações do passado, mas, como isso não é verdade, tiveram de recuar, e foram solicitadas diretamente as informações ao relator-geral do orçamento de 2021, senador Márcio Bittar (PSL-AC) - sem se explicar por que não incluiu o relator-geral de 2020, Domingos Neto.
Após a reação do Congresso, o Supremo resolveu ceder e liberou a continuidade dos pagamentos, desde que governo e Congresso concordassem em dar transparência à aplicação dos recursos – o que todavia ainda não aconteceu. A ministra Rosa Weber estendeu até o início de fevereiro o prazo para apresentação dos documentos que demonstrem os autores das solicitações de repasses executados desde 2020 até a liminar da Corte.
No Supremo, o ministro Alexandre de Moraes disse que o Congresso “reagiu adequadamente à mensagem emitida pela Corte, reconhecendo e assumindo o ônus de dar ampla divulgação e satisfação à sociedade e aos órgãos de controle". Os ministros Edson Fachin e Cármen Lúcia discordaram. “A continuidade do serviço público só poderia servir à liberação dos recursos se o vício quanto à falta de publicidade tivesse sido devidamente sanado, o que não ocorreu. Assim, a lógica da ocultação, os parlamentares incógnitos e os destinatários imperscrutáveis subsistem”, afirmou Fachin em seu voto.
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