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Direto ao assunto

Augusto deixou Roda Viva por não aceitar interferência política

Jornalista conta que decidiu não renovar contrato com TV Cultura quando presidente da emissora deixou claro que não haveria independência neste ano político

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Segundo Augusto, desgaste começou quando presidente e diretor de jornalismo da TV Cultura passaram a fazer a pauta do programa. Foto: Jair Magri

 

"Houve um ataque em pinça ao jornalismo independente que sempre orientou a trajetória do Roda Viva", contou Augusto Nunes, que era mediador do programa semanal de entrevistas mais importante da TV Cultura, para explicar sua inesperada saída do programa. Segundo ele, "as interferências indevidas da presidência da TV Cultura se tornaram mais frequentes. E se intensificaram as pressões do grupo hoje majoritário no Conselho Curador da fundação, liderado por Augusto Rodrigues, Jorge Cunha Lima e Belisário dos Santos Jr.". Esses conselheiros acreditam que é preciso "ampliar o espaço ocupado 'por gente de esquerda', tanto no conjunto de entrevistados quanto nas bancadas de entrevistadores", continuou. O desentendimento, descrito para a edição desta semana da série Nêumanne Entrevista, deu-se da seguinte forma: "Eles argumentam que a Cultura deve espelhar o 'clima de polarização existente no Brasil, que se reflete nas redes sociais'". E mais: "Documentos distribuídos entre os funcionários da TV Cultura, em sua essência, sustentam que a programação da Cultura, sobretudo o Roda Viva, deve entrar no clima de Fla x Flu vigente na internet. Eu penso o contrário: é preciso combater a radicalização dos confrontos políticos".

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Augusto Nunes da Silva, 69 anos, casado, duas filhas, começou a escrever no Nosso Jornal, em sua cidade natal, Taquaritinga, no interior de São Paulo. Estudou na Faculdade Nacional de Direito, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e, em 1970, transferiu-se para a Escola de Comunicação e Artes da USP, cujo curso de Jornalismo também não concluiu. Em 1971, foi revisor nos Diários Associados e, no ano seguinte, passou a atuar como repórter no jornal O Estado de S. Paulo. Em 1973 foi para a revista Veja, na qual chegou a editor de Política. Lá ficou até 1986, quando assumiu pela primeira vez a mediação do Roda Viva. Dirigiu as revistas VejaÉpoca e Forbes (edição brasileira) e os jornais O Estado de S. PauloJornal do Brasil e Zero Hora. Em 2010, voltou como debatedor fixo do Roda Viva. Nunes venceu quatro vezes o Prêmio Esso de Jornalismo e foi incluído numa seleção dos seis mais importantes jornalistas do Brasil, feita pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Em 2009 voltou à Veja, na qual mantém desde então uma coluna. Em 2013 voltou a comandar o Roda Viva, de que saiu em março deste ano conduzindo entrevista com Sergio Moro, que bateu recorde de audiência. Desde 2016 Augusto Nunes trabalha na Rádio Jovem Pan, primeiro no matutino Morning Show e, depois, participando do vespertino Pingos nos Is

Augusto entrevista Bolsonaro com transmissão da TV Veja na série de debates com candidatos à eleição de outubro. Foto: Hélvio Romero/Estadão

A seguir Nêumanne entrevista Augusto Nunes

Nêumanne - Qual foi o motivo da súbita e inesperada suspensão da renovação de seu contrato com a Fundação Padre Anchieta, que determinou a mudança de linha do Roda Viva?

Augusto - Houve um ataque em pinça ao jornalismo independente que sempre orientou a trajetória do Roda Viva. As interferências indevidas da presidência da TV Cultura se tornaram mais frequentes. E se intensificaram as pressões do grupo hoje majoritário no Conselho Curador da fundação, liderado por Augusto Rodrigues, Jorge Cunha Lima e Belisário dos Santos Jr. Esses conselheiros acreditam que é preciso ampliar o espaço ocupado "por gente de esquerda", tanto no conjunto de entrevistados quanto nas bancadas de entrevistadores. Eles argumentam que a Cultura deve espelhar o "clima de polarização existente no Brasil, que se reflete nas redes sociais". Os trechos entre aspas foram extraídos de documentos distribuídos entre os funcionários da TV Cultura. Em sua essência, o papelório sustenta que a programação da Cultura, sobretudo o Roda Viva, deve entrar no clima de Fla x Flu vigente na internet. Eu penso o contrário: é preciso combater a radicalização dos confrontos políticos.

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Para ver entrevista de Augusto a Bonfá clique aqui

N - A mais recente não foi sua única passagem pela mediação dos debates do Roda Viva. Quais foram as principais diferenças entre suas outras passagens pela condução do programa e esta, especificamente?

A - Entre 1987 e 1989, na minha primeira temporada no comando do programa, os entrevistados e entrevistadores eram escolhidos pela produção do Roda Viva, que trabalhava em perfeita sintonia com o apresentador e a direção de jornalismo da Cultura. Em 2013, quando voltei a conduzir o programa, a equipe da produção foi reduzida a apenas dois profissionais. A partir do início de 2016, passei a consumir tempo e energia todos os dias em sucessivos embates com o presidente Marcos Mendonça e o diretor de jornalismo, Willian Correia, que resolveram assumir o controle da pauta e submeter o Roda Viva a conveniências políticas e comerciais. E então entrou em cena o Conselho. E a minha paciência acabou.

Para ouvir segunda parte do depoimento a Bonfá clique aqui

N - Como o senhor costumava administrar as pressões de políticos aliados de governos responsáveis pelo financiamento das operações da TV Cultura, de forma que a independência fosse mantida e não houvesse situações incontornáveis com quem não tinha suas reivindicações atendidas?

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A - Nas minhas duas passagens pelo comando do programa, não testemunhei uma única intromissão do Palácio dos Bandeirantes. O governador Geraldo Alckmin, aliás, não quis nem mesmo ser entrevistado. Secretários estaduais, ministros, parlamentares, esses viviam manifestando o desejo de ocupar o centro do Roda Viva. Eu me limitava a informar que, quando houvesse razões para tanto, eles seriam convidados. As coisas se complicaram quando Marcos Mendonça e Willian Correia passaram a entender-se diretamente com figuras públicas sem nada de relevante a dizer.

Nos tempos de repórter de jornal e revista, Augusto esteve com figurões da República como Figueiredo e Maluf (Acervo pessoal)  

N - Esse tipo de crise entre o âncora e o Conselho da Fundação Padre Anchieta costuma ocorrer sempre nas renovações de contrato? Já tinha acontecido com o senhor alguma vez antes?

A - A renovação do contrato ocorria a cada seis meses, em reuniões que nunca duraram mais que meia hora, num clima sempre cordial. A crise começou a assumir tons mais sombrios em outubro de 2017. E se tornou incontornável depois da conversa a dois que tive com Marcos Mendonça no começo de março. Ele me deixou claro que seria impossível trabalhar com independência num ano eleitoral.

N - Nos anos eleitorais a relação entre o âncora do Roda Viva e os conselheiros da Fundação Padre Anchieta é mais tensa do que nos intervalos entre eleições?

A - Somados os dois ciclos, apresentei o Roda Viva durante sete anos sem ter de enfrentar esse tipo de tensão, houvesse eleição ou não. As deformações decorrentes da ascensão dos conselheiros cujos nomes já mencionei não têm precedentes.

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Para ver na íntegra Roda Viva com Sérgio Moro em março clique aqui

N - Neste caso específico, em abril o então governador do Estado, o tucano Geraldo Alckmin, foi substituído no comando do Executivo estadual pelo socialista Márcio França, que era vice dele e cujo partido adotou a neutralidade para facilitar coligações estaduais com o PT de Lula. Isso provocou algum ruído na relação entre o senhor e a administração da emissora, em especial o conselho da fundação que a dirige?

A - Integrantes do grupo majoritário no conselho sonham com a reeleição do atual governador, Márcio França, e alguns se engajaram ostensivamente na campanha eleitoral. Como deixei o Roda Viva antes que o titular transmitisse o cargo ao vice, nem houve tempo para que eu tivesse de lidar com a hostilidade dos conselheiros que me consideram ligado ao Alckmin.

Augusto e Luzia, mulher e mãe de suas 2 filhas, em compromisso social no SESC Pinheiros em São Paulo. Foto: Iara Morselli/ESTADÃO

N - O senhor diria que a gestão da TV Cultura, canal 2, de São Paulo, obedece estritamente aos conceitos de uma emissora pública ou termina, na prática, por atender de fato a grupos políticos que compõem as alianças que formam os governos, os quais terminam sendo responsáveis pelo financiamento do negócio, que não é propriamente barato?

A - No momento, não ocorre nem uma coisa nem outra. A TV Cultura está sob o controle de conselheiros que passam o dia por lá deliberando sobre assuntos que ignoram ou conhecem só de vista. Para quê? Para nada. Controlar a Globo garante muito poder. Que poder tem quem conduz uma empresa pública às voltas com carências crônicas, equipamentos obsoletos, mão de obra envelhecida, falta de dinheiro e índices de audiência raquíticos? O Roda Viva é uma ilha nesse oceano de irrelevâncias. Aos 32 anos, é um dos mais saudáveis e longevos programas de entrevistas do mundo. E o mais respeitado do Brasil. Esse patrimônio pode ser dissipado por conselheiros com tempo de sobra e nenhuma ideia aproveitável na cabeça.

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Ao sair do Jornal do Brasil para assumir direção do Estadão, Augusto com Benevides, Setti e Norma Couri. Foto: Acervo pessoal

N - A audiência das emissoras ditas públicas não chega nem perto de alcançar índices capazes de influir no desempenho eleitoral dos partidos e dos políticos que pressionam para aparecer na programação, em especial num programa com o prestígio que o Roda Viva tem ou, no mínimo, tinha até recentemente. O que, então, a seu ver, mobiliza tantas pessoas na luta por esse controle?

A - Mais que o controle da Cultura, é o domínio da pauta e da bancada do Roda Viva que os conselheiros e diretores cobiçam. Eles sabem que só tem direito à carteirinha de protagonista da vida brasileira quem esteve sentado no centro do Roda Viva. Para os envolvidos nesse batalha patética, a indicação do entrevistado da próxima segunda-feira é algo afrodisíaco. Há poucos anos, a composição do conselho mudou para pior. Ganharam vagas cativas o presidente da União Estadual dos Estudantes, o líder da minoria na Assembleia, representantes de entidades semiclandestinas, etc., etc., etc. Essa salada vai ficando intragável por jornalistas com autonomia intelectual.

Augusto comandou Roda Viva com presidente Temer no Palácio do Planalto, em Brasília. Foto: Acervo pessoal

N - O senhor vislumbra alguma possível mudança no cenário eleitoral federal, ou mesmo estadual, após essa óbvia mudança de linha do Roda Viva depois de sua saída?

A - Considero bem mais prováveis mudanças de rumo no Roda Viva. Nenhuma fórmula resiste à reprovação maciça dos espectadores, e a internet está aí para mostrar as dimensões do descontentamento. Digo isso com a serenidade de quem deu por encerrada uma bela história de amor. Desde março, o Roda Viva e eu somos apenas bons amigos.

N - Como experiente profissional do jornalismo político, que perspectivas o senhor enxerga para o País neste instante de grave crise econômica, política, social e, sobretudo, ética, em que se elegem presidente, governadores e plenários de Casas legislativas estaduais e federais?

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A - Sou um otimista juramentado, mas não vislumbro nenhum vestígio de luz no túnel cujo comprimento é de três a quatro anos. A escuridão, portanto, vai predominar até a eleição de 2022. Como outros 70 milhões de brasileiros, até agora não me sinto representado por nenhum dos candidatos a presidente da República. No debate promovido pela Band, não vi sinais de vida inteligente. É enorme a demanda por políticos novos, honrados, efetivamente preocupados com o destino do País. Mas a oferta é extraordinariamente menor que a procura. Faltam nomes confiáveis. Essa constatação se estende às disputas  por governos estaduais e vagas no Congresso ou nas Assembleias Legislativas.

Para Augusto, "mais que o controle da Cultura, é o domínio da pauta e da bancada do Roda Viva que os conselheiros e diretores cobiçam. Foto: Acervo pessoal

 

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