Quando o decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Celso de Mello, advertiu que nossa democracia de 1988 corre o risco de dar ao capitão Jair Messias Bolsonaro oportunidade similar à que foi permitida pela Constituição de Weimar ao ex-prostituto Adolf Hitler, não faltou quem lhe erguesse o dedo. Caso do vice-presidente Hamilton Mourão, useiro em fazer citações oportunas de ocasião para arrotar erudição sem, contudo, dispor de verniz cultural com um centímetro de espessura. Na ativa, o general foi afastado pelo comandante do Exército, Eduardo Villas Boas, do Comando Militar do Sul por haver autorizado homenagem ao torturador e assassino Brilhante Ustra. E reincidiu em indisciplina e impropriedade por ter, na chefia da burocratíssima Secretaria de Economia e Finanças do Exército, aventado eventual intervenção militar no governo Temer, tendo sido punido pelo ministro da Defesa, o civil Raul Jungmann. Agora, vice-presidente eleito pelo voto popular no titular da chapa, recriminou o citado ministro do STF em artigo publicado no Estadão, Opinião e princípios (3/6, A2). Nele lhe atribuiu "tomar por modelo de protesto político a atuação de uma organização nascida do extremismo que dominou a Alemanha no pós-1.ª Guerra Mundial e a fez arrastar o mundo a outra guerra. Tal tipo de associação, praticada até por um ministro do STF no exercício do cargo, além de irresponsável, é intelectualmente desonesta".
Não se sabe se por cegueira seletiva ou vontade excessiva de não parecer "mau caráter", como o definiu o "pensador" do gabinete do ódio, Carlos Bolsonaro, no Twitter, após artigo anterior (Limites e responsabilidades, de 14/5), ignorou a passeata dos "300 (de fato, 30) pelo Brasil" no sábado 30 de maio. Liderados pela golpista Sara Fernanda Giromini, que usa publicamente o codinome Sara Winter, em homenagem a uma espiã nazista (sabia que espionagem é crime de guerra, general?), um punhado de tresloucados mascarados e empunhando tochas marchou pela Esplanada dos Ministérios. Qualquer pessoa que tenha lido algo diferente das apostilas distribuídas nas escolas militares saberia que a pantomima tinha duas óbvias referências. Saiba o vice-presidente que em 30 de janeiro de 1933, quando o austríaco Adolf Hitler foi nomeado chanceler do Reich pelo debilitado presidente Paul von Hindenburg, Josef Goebbels, ministro da Propaganda nazista, realizou um dos mais espetaculares atos de coação na República de Weimar: uma marcha noturna de 20 mil camisas pardas da tropa de assalto do partido nazista, a SA (Sturmabteilung). Goebbels, para refrescar a memória de Mourão, é o autor do texto lido pelo melhor ex-secretário de Cultura do governo segundo o próprio, Roberto Alvim.
A marcha das tochas dos "30 pelo Brasil" traz outra marca cultural dos caras-pálidas supremacistas, cujas manifestações contra a democracia, criminalizadas pela Lei de Segurança Nacional, passaram em branco pelo desatento escriba fardado. Este autor se refere aos enforcamentos de negros por grupos encapuzados da Ku Klux Klan no sul racista dos EUA.
Referências a outro tirano europeu do século passado, o italiano Benito Mussolini, são feitas pelo titular da chapa vencedora na eleição de 2018. Além do gosto por frases alheias que o duceusava (como a infeliz comparação entre leão e cordeiro), o capitão, que nunca chegou a major sob condenações por indisciplina e terrorismo, montou o cavalo da PM de Brasília, numa imitação jeca do chefe fascista. Sem falar na grotesca caminhada dos empresários pidões contra o STF, imitação ridícula e desproporcional à Bolsonaro da Marcha sobre Roma, do mesmo inspirador.
O generalíssimo espanhol Francisco Franco entra no rol dos antecessores da direita chula tupiniquim sob o comando do capitão cloroquina pelo apelo hipócrita à fé cristã, paralelo que também poderia ser feito com o português Antônio Salazar. Constante infrator no uso pecaminoso do nome de Cristo, o titular do time em cujo banco de reservas se senta Mourão desafia conceitos de verdade (o célebre versículo do evangelista João) e amor ao próximo, que ele entende como o mais próximo, quais sejam, familiares (em especial filhos) e amigos, citados na reunião, em 22 de maio, de produção das narrativas pornográficas de um desgoverno de cusparadas, caneladas e impropérios.
Exemplo notório de sua estupenda falta de empatia foi a conclamação às devotas reses do rebanho "terrivelmente evangélico" para que invadam UTIs com doentes graves de covid-19 para filmar leitos vazios e lhe mandar de volta para que possa intervir na Polícia Federal e comandar a Agência Brasileira de Inteligência (ou melhor, falta de). E, assim, transferir os cadáveres de quem não sobreviver para o colo de governadores e prefeitos que, segundo Bolsonaro, devem ser mais combatidos do que o próprio "comunavírus" (apud Ernesto Araújo), que em atletas barrigudos como ele só produzem sintomas de "resfriadinho".
Com 3 mil militares sob sombra e champanhe do erário, Bolsonaro e Mourão, convidados a se retirar da ativa por chefes disciplinadores, mas compassivos, vendem aos analfabetos funcionais que adoram o bezerro de ouro bíblico a ideia de que pretendem reviver a doce vida da ditadura militar de 1964/68. É mentira, pois o quarto presidente militar, Ernesto Geisel, chamou o capitão enxofre (que a "véia do alho" diz que cura a covid-19) de "mau militar". O currículo de Mourão não sobreviveria à severidade do ex-presidente. Os militares dependurados no cabidão, ora compartilhado pelo Centrão, são frotistas. O herói de presidente e vice, Ustra, o chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno Ribeiro, e o tenente-coronel Sebastião Rodrigues Moura, vulgo Major Curió, eram frotistas de carteirinha. E, como tal, golpistas frustrados.
Pode ser que o vice Mourão tivesse um pouco de razão se não levássemos em conta a abertura de O 18 Brumário de Luís Bonaparte (de 1852): "A história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa". Pois as similitudes entre Bolsonaro-Mourão Mussolini, Hitler e Franco são a farsa bufa tentando repetir a tragédia do extermínio. Para isso se baseia numa versão mais próxima do que Weimar e a Itália entre guerras. Mas nem o circo mambembe é original. O exemplo mora no outro lado da fronteira: a dupla Chávez-Maduro, que jogou a sólida democracia elitista e corrupta venezuelana de Rómulo Betancourt e Rafael Caldera, depois da ditadura militar de Pérez Jiménez, no esgoto da História.
Não custa repetir o que este Estadão publicou há 21 anos, quando Hugo Chávez assumiu o poder pela primeira vez para criar o bolivarianismo, populismo de esquerda aparentado do PT e congêneres: Em entrevista, Bolsonaro disse acreditar que ele faria no país vizinho o que os militares fizeram no Brasil em 1964, com muito mais força: "Ele não é anticomunista e eu também não. Na verdade, não tem nada mais próximo do comunismo do que o meio militar. Nem sei o que é comunismo hoje em dia". O então deputado também disse que gostaria de ir à Venezuela para tentar conhecer Chávez, que considerava uma figura "ímpar". E revelou: "Quero passar uma semana lá e ver se consigo uma audiência".
Neste momento, em que comprou o Centrão com nosso dinheiropara se garantir no poder contra as evidências dos crimes de responsabilidade que tem cometido contra a saúde da população e a higidez das instituições, Bolsonaro se garante com o rábula depúlpito que nomeou para poder interferir à vontade no Ministério da Justiça. No sábado 13 de junho, à noite, o mesmo grupo "30 pelo Brasil" imitou a estratégia de intimidação de traficantes de drogas e milícias da periferia miserável do Rio de Janeiro, ao disparar fogos de artifício contra o prédio do STF. A Polícia Militar do Distrito Federal, que goza os reajustes assegurados pelo atraso da assinatura dele no compromisso em que os governadores aceitaram congelar os vencimentos de servidores, fez vista grossa ao atentado. Assim como o procurador-geral da República, Augusto Aras, investido como seu advogado e bajulador. E o ministro da Justiça, André Mendonça, transferiu seus crimes para os quase 58 milhões de eleitores que o sufragaram: "Devemos respeitar a vontade das urnas e o voto popular".
Resta-nos contar com a ironia de Clio, deusa da História, manifestada quando reservou ao general Sylvio Frota uma nota de rodapéna história suja da ditadura militar. E que esse zumbi não ressurja dos escombros desta tragédia recente e do submundo mental do desumano capitão enxofre de alho cru por falta de memória e caráter dele e de muitos.
*Jornalista, poeta e escritor
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