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‘Se preservar inteligência técnica acumulada, novo ministro pode avançar no que Mandetta falhou’

Para o especialista em saúde pública, Nelson Teich deve priorizar a adoção de plano emergencial para as periferias, comprar a capacidade ociosa de hospitais privados e começar a testar a população 

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Por Adriana Ferraz
Atualização:

Um dos mais respeitados especialistas em saúde pública no Brasil, o professor Mário Scheffer, do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, lamenta mais uma troca no comando do Ministério da Saúde – a sétima, em dez anos, e em plena pandemia. Mas afirma que o novo titular da pasta, o oncologista Nelson Teich, terá condições de avançar naquilo que o agora ex-ministro Luiz Henrique Mandetta falhou se souber preservar a “inteligência técnica acumulada” sob o comando de seu antecessor.

“Após 60 dias, a maior parte dos recursos financeiros anunciados para a saúde ainda não chegou. Seguimos sem equipamentos de proteção, respiradores e testes. Sem atrativos adicionais, não é possível contratar médicos e profissionais em número suficiente. Trabalhadores da saúde continuam sem proteção, com sobrecarga de trabalho e estresse emocional”

Mário Scheffer, especialista em saúde pública

De acordo com o professor, Teich deve priorizar a implementação de um plano emergencial para as periferias das grandes cidades, comprar a capacidade ociosa dos hospitais privados e começar, enfim, a testar a população. 

O professor Mário Scheffer, do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP, é especialista em saúde pública Foto: Nilson Fukuda/Estadão

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Sobre a participação do presidente Jair Bolsonaro nesse contexto, Scheffer é mais pessimista: “Felizmente, governadores, cientistas, Congresso Nacional e agora o STF ditam as diretrizes do combate ao coronavírus. O governo federal, pelas patacoadas que produziu, perdeu o comando no enfrentamento da epidemia.”

Ele também fala sobre a pouca participação dos planos de saúde na crise e sobre a importância de se elevar o financiamento do SUS. Acompanhe os principais trechos:

Qual o impacto prático que pode ter a saída do Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde? Uma mudança de rumo agora pode agravar o quadro e elevar o número de mortes por coronavírus no Brasil?

Mandetta foi o sétimo ministro da Saúde que deixou o cargo nos últimos dez anos. Essa rotatividade sempre prejudicou o Sistema Único de Saúde, ainda mais no meio de uma crise sanitária dessa magnitude. Sua equipe acertou na promoção do afastamento social, na transparência e divulgação diária de novos casos e óbitos e nas advertências sobre os riscos de prescrever tratamentos em larga escala sem evidência científica. Dar um cavalo de pau na ciência, recuar em determinadas medidas, teria efeitos trágicos, custaria incontáveis vidas ao final.

 O que o governo deve fazer para que a troca seja menos traumática?

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Se preservar a inteligência técnica acumulada pelo ministério, o novo ministro terá oportunidade para avançar naquilo que essa gestão falhou. Após 60 dias, a maior parte dos recursos financeiros anunciados para a saúde ainda não chegou. Seguimos sem equipamentos de proteção, respiradores e testes. Sem atrativos adicionais, não é possível contratar médicos e profissionais em número suficiente. Trabalhadores da saúde continuam sem proteção, com sobrecarga de trabalho e estresse emocional.

Que outras falhas aponta na gestão de Mandetta e também dos demais ministérios envolvidos nesta crise?

O plano social. Onde está o plano emergencial prometido para as periferias das capitais mais afetadas? O auxílio para autônomos e informais, a liberação de FGTS e de 13º de quem recebe pelo INSS e a cobertura de contas de luz terão efeito limitado e chegam depois que o vírus já está circulando por moradias precárias e adensadas, sem água, esgoto, sem internet para trabalhos ou estudos remotos.

Posse do novo ministro da Saúde, Nelson Teich (a esq); Luiz Henrique Mandetta foi demitido pelo presidente Jair Bolsonaro na quinta-feira, 16 Foto: Evaristo Sá/AFP

O jornal ‘The Washington Post’ classificou o presidente Jair Bolsonaro como o pior líder global desta crise. Como especialista em saúde pública, como vê o desempenho do presidente?

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O escracho internacional nos envergonha, pois os delírios anticientíficos e negacionistas da pandemia, vindos não só do presidente, mas de vários ministérios, sabotam as medidas de saúde pública. Felizmente, governadores, cientistas, Congresso Nacional, e agora o STF, ditam as diretrizes do combate ao coronavírus, já que o governo federal, pelas patacoadas que produziu, perdeu o comando no enfrentamento da epidemia. 

Quais os melhores exemplos de líderes internacionais ou de países na crise sanitária? De que forma o Brasil pode aprender com isso? 

Governantes de países hoje mais afetados reagiram tardiamente ao comportamento explosivo do vírus, o que provocou mortes evitáveis e caos em sistemas de saúde. Mas reorientaram discursos e estratégias, como Giuseppe Conte (Itália), Pedro Sánchez (Espanha), Boris Johnson (Inglaterra) e até Donald Trump (Estados Unidos). Eles pregam diferentes abordagens para tentar reduzir o custo humano e o desastre econômico, mas convergiram em torno de medidas enérgicas e progressivas de isolamento, testagem e readequação dos serviços. Nosso presidente segue os passos de Daniel Ortega, o ditador da Nicarágua que debocha do coronavírus. 

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O Brasil investe hoje cerca de 9% de seu PIB em saúde, porcentual semelhante à de países ricos, como Itália e Espanha, que enfrentam uma situação gravíssima por causa da covid-19. Por sua vez, estima-se que uma fatia de 40% a 45% desse total seja destinada à saúde pública, quando na Inglaterra, por exemplo, a taxa é de 90%. Esse descompasso explica o eterno subfinanciamento do SUS?

Entre o descumprimento da Constituição Federal por Fernando Collor, que deixou de destinar o mínimo de 30% do orçamento da seguridade social para a saúde, até a imposição do teto de gastos, sob Michel Temer, todas as gestões de PSDB e PT mantiveram o subfinanciamento público e ampliaram repasses para o setor privado que não atende o SUS. A partir de 2014, despesas públicas com saúde no Brasil ficaram congeladas, enquantogastos privados e subsídios públicos para planos de saúde cresceram muito. O SUS deveria contar hoje com o dobro dos recursos que têm, e estaríamos, claro, em melhores condições para mitigar o coronavírus.

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Há uma preocupação muito grande com a disseminação da covid-19 no superlotado sistema prisional brasileiro. O Ministério da Justiça tem agido a contento nessa questão?

Apesar da forte oposição do ministro Sérgio Moro, alguns Estados acataram recomendações da Defensoria Pública e do CNJ, como aplicar medidas alternativas à prisão de idosos e em casos de crimes não violentos. Presídios proibiram a entrada de visitas a detentos. Mas isso é insuficiente. Assim como é alta a prevalência de tuberculose, HIV e sífilis, o coronavírus pode se alastrar entre os mais de 600 mil presos no País, aglomerados em celas sem saneamento, ventilação e água potável. Dos 1,4 mil estabelecimentos penais, só metade possui consultório médico ou posto de enfermagem.

O novo coronavírus já vitimou ao menos três índios. Qual é o risco de a infecção se espalhar nas aldeias de maneira descontrolada?  

É concreto o risco de rápida propagação do vírus entre os cerca de 800 mil indígenas no Brasil, muito vulneráveis em função de seus modos de vida comunitários e da dificuldade de acesso a informação, insumos e assistência em saúde. No lugar de medidas restritivas de entrada aos territórios de mais de 6,2 mil aldeias, o governo responde com a recente demissão do diretor de proteção ambiental do Ibama, após operação de combate ao garimpo ilegal em terras indígenas. 

Na comparação com o Planalto, governadores e prefeitos de cidades grandes têm tido posturas mais rígidas em relação à necessidade de isolamento social, o que transformou medidas práticas, de proteção à vida, em conflitos políticos e ideológicos. A polarização na saúde tem qual significado?

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As brigas entre a saúde pública e os poderes constituídos são antológicas. Mas ocorreram em contextos nos quais a humanidade não tinha a seu dispor tantas evidências científicas. É como se estivéssemos voltando na história da disputa entre os vendedores de pílulas de vida e aqueles que procuravam estabelecer medidas de proteção para a população e suporte para os doentes.

A Agência Nacional de Saúde Suplementar autorizou que os planos de saúde tenham acesso a R$ 10,5 bilhões do fundo garantidor que eles próprios mantêm uma contrapartida clara. O senhor acha que esse dinheiro também deveria ir para o SUS, já que só 22% da população têm plano de saúde hoje?

O fundo garantidor dos planos não é um recurso público, não pode ir para o SUS. Deveria ficar ali, intacto, e ser usado apenas para sua finalidade legal, proteger pacientes e prestadores diante da quebradeira de operadoras. O novo ministro deveria rever essa decisão e condicionar os saques ao fundo a um plano de expansão assistencial durante a pandemia, à diminuição do valor de mensalidades, continuidade do atendimento mesmo na inadimplência e congelamento de reajustes dos planos de saúde. Houve condescendência com planos de saúde e hospitais privados que receberam socorro financeiro do governo, mas lavaram as mãos e nem sequer cogitam se integrar à rede assistencial pública, já perto do colapso.

O senhor defende fila única nos hospitais públicos e privados durante a pandemia, ou seja, que leitos de hospitais particulares sejam usados, se necessário, para atender pacientes que não podem pagar?

Sim, uma gestão única excepcional de leitos de internação e de vagas de UTI, não só comprando a capacidade ociosa do setor privado para ficar imediatamente à disposição do SUS, mas orientando o acesso por critérios de gravidade das condições clínicas e proximidade, evitando o vaivém. É difícil, pois o uso de serviços de saúde no Brasil é estratificado por renda. Há hospitais de ricos e de pobres. Outros países decidiram que durante a epidemia não deve existir limite objetivo ao financiamento coletivo e à oferta igualitária para salvar vidas. Uma escolha civilizada, além de ética.

Qual o prejuízo de o Brasil em não oferecer testes em massa até agora?

Países como a Coreia do Sul, que adotaram a testagem em massa, conseguiram melhores resultados. Com tão poucos testes realizados, com fila e demora para o resultado, o Brasil olha a pandemia pelo retrovisor, não consegue reduzir a subnotificação e não isola os infectados, o que faz adiar definições sobre como e quando poderia ser atenuado o isolamento social. 

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Muitos analistas políticos já destacam que a crise expôs da forma mais transparente possível a importância do Estado na vida das pessoas, já que é o SUS o responsável por proteger a população neste momento. Até quem defende a economia liberal tem feito essa observação. O brasileiro finalmente dará valor ao SUS após a crise?

O estado de bem-estar social recupera parte de sua importância com a pandemia, não só no Brasil; registrou-se que o estado e os sistemas universais de saúde protegem nossas vidas. De repente, os brasileiros estão gratos por terem o SUS, pois muito pior seria sem ele. Isso não quer dizer que o SUS sairá fortalecido, pode até mesmo encolher, mantido o teto de gastos na recessão que virá e prevalecendo o apetite do setor privado que abusa da pandemia para acessar mais fundos públicos, para seguir atendendo apenas às suas clientelas particulares. Existe uma disputa feroz, infelizmente ainda escondida, entre a saúde pública e a privada, pelos mesmos recursos. 

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