Entregador sofre racismo em Valinhos e registra BO

Ato foi filmado por um vizinho e mostra quando o cliente afirma que o motoboy é semianalfabeto

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Por Cláudio Liza Júnior
Atualização:

CAMPINAS - O vídeo em que o morador de um condomínio de alto padrão de Valinhos, São Paulo, ofende com comentários racistas um entregador viralizou na internet nesta sexta-feira. O ato foi filmado por um vizinho e mostra quando o cliente afirma que o motoboy é semianalfabeto e tem inveja das pessoas que moram no condomínio". No momento em que diz que o profissional teria inveja "disso aqui", ele ainda aponta para a sua pele, branca. O entregador é negro. 

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"Você tem inveja disso (aqui aponta para as casas). Você tem inveja disso (alisando o braço). Você tem inveja dessas famílias aqui".

Um boletim de ocorrência foi registrado na Polícia Civil de Valinhos na noite do último dia 31 de julho. O vídeo, porém, só começou a circular na internet nesta sexta, a partir de perfis de movimentos de entregadores e também de familiares do entregador alvo das ofensas, Matheus Pires Barbosa, de 19 anos. Foi o próprio motoboy que chamou a Guarda Municipal, ao ser ofendido, e tanto ele quanto o morador do condomínio envolvido, o contabilista Mateus Abreu Almeida Prado Couto, de 31 anos, foram ouvidos no plantão policial.

Segundo o relato da ocorrência registrada pelos GMs, Barbosa disse que foi acionado para fazer a entrega no condomínio, no bairro Chácaras Silvânia, e ao chegar, em tom de brincadeira disse ao cliente 'que ele não seria bem visto entre os motoboys', pois os obriga a caminhar até bem próximo da casa. Nesse momento, Couto teria se exaltado e o chamou de "preto, favelado, pobre, olha seu tênis furado", diz o entregador.

No vídeo que circula nas redes sociais, o agressor menciona a profissão de motoboy para dizer que o entregador seria semianalfabeto. O entregador responde em tom calmo, questiona se ele quer saber quanto ele ganha. Em outro momento, o contabilista afirma: "Você tem inveja, Você tem inveja da gente. Aqui ó. Você tem inveja disso aqui, fio", mostrando o condomínio e a pele dele, que é branco. 

Também no BO, o cliente diz que se exaltou após o entregador dizer que ele "é mal falado entre os motoboys", "mal falado no bairro". Confirmou que por isso o chamou de favelado, pobre e marginal e alega que não fez ofensa relacionada à cor da pele. Disse também à polícia que o entregador chegou a avançar contra ele e contra outros moradores, o que não é mostrado nos trechos do vídeo divulgados nas redes sociais.

Sem inquérito aberto. De acordo com o delegado titular de Valinhos, Luís Henrique Apocalypse Joia, até ontem não havia sido aberto inquérito para investigar o caso, pois para isso é necessária a apresentação de uma queixa formal da vítima, o que não ocorreu no dia do registro do BO. O entregador, porém, tem seis meses para, se quiser, fazer uma representação contra o cliente, conforme a lei.

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A ocorrência foi registrada como crime de injúria, e não de racismo. A pena prevista em caso de condenação varia de 1 a 3 anos de reclusão, e multa. O delegado disse que só seria investigado racismo em caso de impedimento do acesso da vítima ao local por motivos de etnia, religião ou outro que identificasse um grupo de pessoas. Como o caso foi pessoal, dirigido apenas ao entregador, seria caracterizado como injúria racial, crime que prevê liberdade sob fiança em caso de flagrante (racismo é inafiançável).

Pessoalmente, porém, o delegado disse considerar "grave" e "absurdo" o que foi visto no vídeo. "A gente entende que, em 2020, ter esse tipo de conduta, se foi feita em sã consciência, isso é um absurdo."

Ainda segundo o delegado, o pai do agressor alegou que ele sofre de esquizofrenia para justificar seu comportamento no caso. Joia, no entanto, não soube dizer se foi entregue um laudo a respeito e afirmou que isso será avaliado caso haja uma representação formal.

A reportagem tentou contato com Barbosa por ligação de celular e mensagem, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem. Uma advogada acionada hoje pela família diz que ainda vai falar com o entregador antes de se manifestar oficialmente. O contabilista que ofendeu o jovem também foi procurado. Por WhatsApp, disse que está se comunicando somente com a polícia e não quis mais se manifestar.

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Em nota, o iFood, aplicativo para qual trabalha o entregador, disse que racismo é crime e que condena qualquer forma de preconceito ou discriminação. "Por isso presta solidariedade e apoio ao entregador Matheus, vítima do crime racial praticado por um consumidor na cidade de Valinhos, São Paulo, conforme vídeo que circula nas redes sociais", diz a nota. 

Baseado nos termos de uso do aplicativo, o IFood diz que "descadastrou o usuário agressor da plataforma". A empresa informou ainda que está em contato para oferecer ao entregador apoio jurídico e psicológico. "Em casos como este, o iFood recomenda registrar boletim de ocorrência e entrar em contato com a empresa pelos canais oficiais de atendimento via aplicativo, enviando o Boletim de Ocorrência."

Após o vídeo viralizar, o motoboy recebeu nas redes sociais a solidariedade de muitas personalidades, como artistas. Em um vídeo divulgado em suas redes, o apresentador Luciano Huck aparece conversando via teleconferência com Barbosa. O jovem disse que sua religião, Testemunha de Jeová, o ajudou a manter-se calmo durante as ofensas e também mencionou que estava trabalhando com a motocicleta do pai, pois a dele teve o motor fundido. Huck, então, prometeu acionar parceiros para doar uma moto nova ao entregador.

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