Lotes clandestinos são vendidos por até R$ 120 mil na zona sul de SP

Segundo Ministério Público, situação piorou desde 2020; desafio é proteger mananciais e melhorar a vida da população

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Por Eduardo Geraque
Atualização:

O termo enxugar gelo é adequado para descrever o processo de enfrentamento da ocupação crônica das franjas urbanas de São Paulo, principalmente nos arredores de mananciais como os da Guarapiranga e da Billings, na zona sul. Por mais que as esferas municipal e estadual, além do Ministério Público, tenham ações para coibir o avanço das invasões, desde 2020 – como observa Karina Keiko Kamei, promotora de Justiça de Habitação e Urbanismo –, a situação tem ficado pior. Isso ocorre diante do aumento da construção de loteamentos clandestinos. Não há números oficiais que dimensionem o tamanho do problema.

Nos postes da periferia, não é raro encontrar anúncios de venda de lotes em áreas proibidas. O Ministério Público de São Paulo afirma que não há provas que liguem as novas construções diretamente a facções, mas isso não significa que em alguns casos não haja influência do crime organizado.

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Especificamente na zona sul, tanto loteadores profissionais quanto grupos pequenos, de pessoas comuns, costumam estar à frente das ocupações. Derruba-se a mata, abrem-se as ruas, instala-se uma infraestrutura urbana mínima, como sarjetas, e vendem-se os lotes. Clientes desavisados acabam perdendo as economias de uma vida inteira.

Às vezes, os lotes são totalmente ilegais mas, em alguns casos, o loteador até entra com um pedido de aprovação pelo poder público. E, ao receber o protocolo, muito antes de o loteamento ser aprovado – e isso quase nunca ocorre –, começa a vender a terra.

“E nós não estamos falando apenas de pessoas com uma renda tão baixa assim. Existem lotes de 125 m², por exemplo, às vezes vendidos por até R$ 120 mil”, acrescenta a promotora Karina.

Além das resoluções práticas, ou seja, fiscalização e remoção das casas irregulares, o arquiteto Kazuo Nakano, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), cobra visão mais sistêmica das autoridades para, assim, melhorar tanto a qualidade de vida da população quanto proteger os mananciais.

“O importante é que se tenha uma abordagem multissetorial, envolvendo várias camadas. A questão ambiental é um dos pontos, mas tem ainda o transporte, o problema do saneamento e assim por diante. É um problema crônico que vem desde a década de 1970. São centenas de milhares de pessoas em áreas críticas”, afirma ele, pesquisador da área de urbanismo.

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Além de fazer elementos urbanísticos básicos funcionarem, como o Plano Diretor do Município e o zoneamento, Nakano vai além. “Uma questão essencial é fazer com que a própria sociedade, os moradores dessa região, participem do monitoramento das áreas. Além desse monitoramento participativo, é importante que uma autoridade metropolitana, algo que nunca foi para frente no Brasil, saia do papel”, defende.

Poder público

Responsáveis por ações de controle, Estado e Prefeitura dizem fazer a parte deles. Segundo Antonio Fernando Pinheiro Pedro, secretário executivo de Mudanças Climáticas da capital, a atual gestão acelerou a fiscalização e as intervenções para coibir a ocupação dos mananciais por parte de loteadores. “Não tiramos pessoas das casas. Mas destruímos qualquer infraestrutura ou até mesmo construções irregulares antes que ocorram as ocupações”, afirma.

De acordo com números compilados pela Prefeitura, entre 2021 e este ano, foram feitas 299 operações envolvendo ocupações irregulares na cidade. Um total de 95 delas envolveram a destruição de construções – “sem nenhuma família dentro”, enfatiza o secretário. O trabalho dos órgãos públicos envolve, cada vez mais, o uso de drones e de imagens de satélites. “Algo que precisa aumentar cada vez mais”, reforça Nakano.

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O governo do Estado, que também participa das operações, informa, em nota, que as ações dentro da Operação Integrada de Defesa da Água (Oida) estão sendo intensificadas. De janeiro a agosto deste ano, o Estado aplicou multas que somam mais de R$ 766 mil, além de remover 109 empreendimentos irregulares, entre construções inacabadas e inabitadas, postes e guias de calçadas.

O trabalho é feito no entorno de mananciais de toda a região metropolitana de São Paulo. Desde 2021, o governo estadual afirma que embargou 72,85 hectares de áreas ocupadas por loteamentos irregulares – o equivalente a 72 campos de futebol.

Parque Linear Cocaia, na zona sul: o MP entrou com uma ação contra a Prefeitura porque, pelo entendimento dos promotores, o poder público acaba contribuindo para que haja invasão das áreas protegidas. Foto: Felipe Rau/Estadão

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Ocupação irregular de parque faz MP mover ação contra a Prefeitura

O imbróglio a respeito do Parque Linear Cocaia, na zona sul de São Paulo, ilustra bem o emaranhado de problemas que existe quando o assunto são loteamentos irregulares em áreas de manancial. Neste caso, o Ministério Público entrou com uma ação contra a Prefeitura porque, pelo entendimento dos promotores, o poder público acaba contribuindo para que haja invasão das áreas protegidas.

A novela começou quando o Município decidiu implementar, em 2008, o Parque Linear do Ribeirão Cocaia, no entorno do maior afluente da represa Billings em áreas urbanas. Para isso, imóveis particulares foram desapropriados, com a justificativa de que se tratava de utilidade pública. A Prefeitura pagou, na época, R$ 5 milhões em indenizações por se tratar do projeto de um parque (se fosse para um loteamento, por exemplo, esse valor seria de R$ 12 milhões).

O problema é que, ao longo dos últimos anos, sem nenhuma ação contrária da Prefeitura, a área passou a ser parcialmente invadida.

Na ação civil pública que tramita na Justiça, os promotores descrevem o caso: “Ainda quando tinha a possibilidade de solucionar a questão, realocando todos os ocupantes da área do parque para o conjunto habitacional Chácara do Conde, decidiu permanecer omisso, permitindo que a ocupação irregular se adensasse e se expandisse. Coroando sua ineficiência, alterou o zoneamento e pretende implantar um novo conjunto habitacional no local, diminuindo significativamente a área do parque e, o pior, com a destruição de uma nascente e sua respectiva área de preservação permanente, iniciando as obras de forma clandestina, já que sem o necessário prévio licenciamento e, como se não bastasse, sem a garantia de beneficiar os ocupantes das áreas do parque, seja no conjunto Chácara do Conde, seja no novo conjunto habitacional que pretende construir (se é que poderá fazê- lo, após o necessário licenciamento)”.

Em nota, a Prefeitura informa que um Termo de Cooperação “firmado de forma transparente e pública” entre a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente e a da Habitação garantiu “a preservação de uma importante área verde e a construção integrada de unidades habitacionais de interesse social para atender famílias que aguardam na fila da casa própria”. Essa solução, ainda segundo a Prefeitura, está prevista no Plano Diretor Estratégico - portanto, dentro das diretrizes urbanísticas - e é aprovada em legislação.

O parque, segundo a gestão Ricardo Nunes (MDB), é reconhecidamente uma das áreas de maior pressão para expansão urbana da capital, na região do Grajaú. E, desde 2004, o zoneamento municipal já apontava uma porção do parque como sendo uma Zona Especial de Interesse Social (ZEIS), passível de receber projetos de desenvolvimento, enquanto as áreas mais importantes ambientalmente sempre foram tratadas como Zona Especial de Proteção Ambiental (ZEPAM).

A transferência de parte da área da ZEIS para a Secretaria de Habitação implementar moradias e etapas futuras do Parque do Ribeirão Cocaia é explicada, segundo nota da Prefeitura, pela maior demanda para construir habitações que a cidade passou a ter durante a pandemia.

Para lembrar

A ocupação da Serra da Cantareira, declarada Patrimônio da Humanidade pela Unesco, por conta do Parque Estadual da Cantareira, também é um processo histórico. Trata-se da maior floresta urbana do mundo, que se espalha por São Paulo, Mairiporã, Caieiras e Guarulhos. O local, como mostrou a crise hídrica ocorrida entre 2015 e 2016, também é essencial para a proteção dos mananciais que levam água para mais de 9 milhões de pessoas na Grande São Paulo.

Serra da Cantareira foi declarada Patrimônio da Humanidade pela Unesco por causa do Parque Estadual da Cantareira. Foto: Clayton de Souza/Estadão

Os números são imprecisos, mas milhares de pessoas ocupam lotes irregulares na região. Na década de 1990, por exemplo, por volta de 20 mil pessoas, sem opção de moradia digna, engrossaram a população de imóveis precários da Brasilândia, zona norte paulistana, perto da Cantareira. Estimativas indicam que entre os anos 2000 e 2010, mais 30 mil novos habitantes chegaram à região, o que resultou no desmatamento de 8 hectares.

Obras como a construção do Rodoanel – o trecho Norte ainda não está pronto – também influenciaram na redução da mata local. Vários estudos acadêmicos mostram que, embora haja muitas invasões, incluindo de loteamentos de alta renda, a cobertura vegetal em toda a Cantareira, principalmente de Mata Atlântica, é de 35%. Por isso, todo o trabalho de ONGs, prefeituras e do Estado para preservar a região.

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Entenda os diferentes tipos de loteamento

Clandestino

É um conjunto de lotes sem qualquer registro em órgãos públicos. Eles não seguem nenhuma norma ou regra.

Irregular

Normalmente, esse tipo de loteamento possui registro no Cartório de Registro de Imóveis, mas não atendetodas as exigências municipais, como ligação de esgoto e água, iluminação pública, drenagem pluvial e energia para todos os lotes. A falta de um desses itens já enquadra o empreendimento nessa categoria.

Regular

É o empreendimento que possui todas as aprovações da prefeitura e está registrado no Cartório de Registro de Imóveis.

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