Sabores da África em SP: conheça a chef pioneira que assava peixes nas ruas do centro

A falta de restaurantes africanos na cidade, há 15 anos, foi a brecha para a camaronesa Melanito Biyouha trazer os novos repertórios culinários do Biyou’z

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Por Gonçalo Junior
Atualização:

A empresária camaronesa Melanito Biyouha se surpreendeu com a variedade gastronômica de São Paulo quando veio passar as férias em 2007. “Mas onde estão os restaurantes africanos?”, perguntou aos conterrâneos. Foi essa questão sem resposta que inspirou a empreendedora de 52 anos a abrir o Biyou’z (diz-se biúz), um dos primeiros endereços da gastronomia africana na cidade.

Melanito Biyouha no restaurante Biyou'z,, em São Paulo. Foto: Taba Benedicto/Estadão

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A ideia da gastronomia ficou ali, esperando sua vez na cabeça da empresária, mas não foi o seu primeiro negócio. Em Brasília, berço escolhido por causa dos parentes diplomatas que viviam por aqui, a empresária começou como cabeleireira em um salão de penteados africanos. Com o sucesso das suas tranças, logo conquistou a própria clientela.

Para completar a renda, ela dava aulas de francês, a língua oficial do seu país. “Da caixa do banco em Camarões para os penteados afro, não foi muito difícil porque eu morava numa casa, tinha um sustento razoável e o dinheiro que ganhava era só meu.”

Foi em uma viagem de férias a São Paulo que surgiu aquele estranhamento sobre a falta de restaurantes africanos. “Não acreditei que o Brasil, sendo um país com tantos descendentes africanos, não tinha uma representação na gastronomia.”

Ela começou assando peixe na calçada da Rua Guaianases, no ponto de encontro dos africanos no centro. “Eu fiz uma churrasqueira à moda africana, na calçada. Quando eu falo isso, as pessoas não acreditam. Foram uns seis meses assim.”

Detalhe do prato Ndole, pasta de amendoim cozido com folha de boldo, camarão moído, banana da terra cozida e carne refogada. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Antes de imigrar, a terceira de sete filhos de uma família de classe média trabalhava como operadora de caixa em um banco em Iaundê, capital de Camarões. Diferentemente de boa parte daqueles que trocam um país africano pelo Brasil, Melanito não fugia de conflitos políticos ou buscava emprego. Tinha uma vida estável.

Tinha um dinheirinho guardado, mas não suficiente para algo grande. Em fevereiro de 2008, alugou o espaço onde o restaurante está hoje, na Alameda Barão de Limeira, na Santa Cecília. Ela criou cinco pratos camaroneses com as receitas de sua família, batizou o espaço com o diminutivo de seu nome e abriu o Biyou’z.

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Nome do prato é elogio para os camaroneses

Quando aprendemos uma língua estrangeira, usamos algumas frases e construções de forma diferente dos nativos. É natural. Isso traz novos temperos para a língua, aqui no sentido linguístico mesmo. É o que acontece quando Melanito diz, por exemplo, que “a cozinha se esparrama pelas mãos dos camaroneses”.

A cozinha está tão presente nesse povo da África Central que os nomes dos pratos são elogios. Se alguém está muito bonito, eles dizem “você está um ‘ndolé’”, comida típica com amendoim, boldo e banana da terra. Uma delícia.

Na tradição familiar que passa de boca em boca, o Biyou’z serve alguns pratos que Melanito aprendeu em casa. Desde os oito anos, ela ajudava suas outras duas irmãs no fogão. Era quase uma obrigação. Melanito não era cozinheira profissional ou chef; a especialização só veio depois.

Hoje, ela faz cozinha africana, sem fronteiras. É um resgate cultural em pratos como o Ndjap (espinafre, camarão moído, berinjela, fufu de milho e carne), o Madesu (feijão branco com azeite de dendê e arroz, acompanhado por carne, peixe ou galinha) e o DG (banana da terra frita com legumes e galinha). Melanito explica que os molhos também são protagonistas e os acompanhamentos podem mudar.

O sucesso da camaronesa caminha, lado a lado, com as conquistas dos negros brasileiros, em sua opinião. Melanito recorda que quando chegou a Brasília viu poucos negros nos restaurantes ou lojas, com exceção de filhos de diplomatas. Na sua percepção, o processo é lento, mas mudanças já estão ocorrendo.

“Olhando como estrangeira, a situação mudou muito. Hoje, o negro brasileiro consegue deixar o cabelo black, andar com roupa estampada e se apresentar de um jeito mais livre. Ainda existem coisas a ser feitas, mas está evoluindo.”

Alimentação sempre foi fonte de geração de renda, diz especialista

Questionada pelo Estadão sobre a importância da alimentação para o povo negro, a empreendedora Adriana Barbosa, CEO da PretaHub, voltada para a aceleração do empreendedorismo negro, lembra-se da herança das quituteiras, mulheres escravizadas que compravam suas alforrias e mantinham sua liberdade com a venda de quitutes no século XVII.

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“Nos dias de hoje, cada vez é mais comum ter a presença de imigrantes latinos, haitianos e africanos nas cozinhas dos restaurantes, mas ainda poucos no lugar de protagonismo, como empresários do ramo”, diz Adriana, que também é fundadora da Feira Preta, evento de cultura e empreendedorismo.

“Por isso, fico muito feliz com a ascensão de chefs como Melanito Biyouha, da Biyou’z, Pitchou Luambo, do restaurante Congolinária, Sam, do Mama Africa La Bonne Bouffe, e Silly, do Manden Baobá entre tantos outros espalhados pelo Brasil”, diz.

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A PretaHub possui um programa de aceleração de negócios e formação empreendedora chamado Afrolab, criado em parceria com a Coventry University, do Reino Unido, e o British Council. O programa auxilia na gestão do negócio, passando pelos aspectos administrativo, financeiro, comunicação e marketing, gestão de pessoas.

“Ao longo dos últimos anos de existência da Feira Preta, identificamos as principais necessidades na jornada dos empreendedores negros e elaboramos um método que pudesse reconhecer os saberes ancestrais e afrodiaspóricos, alinhado a técnicas de como gerir os negócios”, diz a empreendedora.

* Este conteúdo foi produzido em parceria com a PretaHub, plataforma de aceleração e incubadora de negócios de empreendedores negros

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