Saiba quem é a Madrinha Eunice, ícone negro do samba que ganhou estátua em praça de SP

Mulher, negra e independente, Deolinda Madre fundou, em 1937, a Lavapés, mais antiga escola de samba ainda operante da cidade

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Foto do author Leon Ferrari
Por Leon Ferrari
Atualização:

Para alguns, ela é a matriarca do samba em São Paulo. Outros, carinhosamente, chamam-na de “vovó do samba”. Baluarte do ritmo na capital, Deolinda Madre, mais conhecida pelo apelido Madrinha Eunice, agora está imortalizada, em bronze, na Praça da Liberdade, na região central paulistana. Com 1,7 metros de altura por 60 centímetros de largura, a sambista de saia rodada, turbante, colares e pulseiras, é retratada de uma das maneiras que mais gostava de estar: dançando.

A obra da artista Lídia Lisboa é a segunda do projeto que vai homenagear, no total, cinco personalidades negras da cultura paulista, promovido pelo Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) da Prefeitura. O tributo é um passo importante no reconhecimento da ancestralidade africana na capital, destacam especialistas e ativistas.

Matriarca do samba de São Paulo,Madrinha Euniceganhou uma estátuana Praça da Liberdade, bairro onde viveu boa parte da vida Foto: Tiago Queiroz/ Estadão

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Madrinha Eunice fundou, em 1937, a Sociedade Recreativa Beneficente Esportiva da Escola de Samba Lavapés Pirata Negro. Mais antiga agremiação de samba ainda em operação na cidade, em 2022, completa 85 anos. Até os 87 anos, quando morreu, a paulista esteve à frente da escola e também do clube de futebol associado a ela. “(Era) de uma liderança formidável”, conta a neta Rosemeire Marcondes, de 55 anos.

Conforme lembra a neta, presidente de honra da Lavapés, uma das principais lutas da avó foi pela oficialização e pelo reconhecimento do carnaval. “Foi um dos baluartes do samba, a primeira mulher negra, independente, avante do seu tempo, naquela época de 1930, época de Getúlio Vargas, da ditadura, ela lutou, lutou e conseguiu.”

A Lavapés, conforme o artigo Madrinha Eunice e Geraldo Filme: memórias do carnaval e do samba paulistas, do antropólogo Vagner Gonçalves da Silva, foi inovadora e ousada. Em uma terra de “cordões” se denominava “escola de samba” e desfilava ao som desse ritmo, fazendo referência aos grupos do Rio.  

Comerciante, Madrinha Eunice era economicamente independente e inspirou gerações de mulheres a buscarem pelo mesmo. “Ensinou muito para as mulheres que se pode viver sem precisar de ninguém, cuidando de seus filhos, cuidando de sua família, com bastante luta e tranquilidade”, destaca a neta.

Na Liberdade, Madrinha Eunicefundou, nadécada de 30, amais antiga escola de samba ainda em operação em São Paulo Foto: Tiago Queiroz/ Estadão

Pesquisadora do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e uma das idealizadores do documentário Lavapés: Ancestralidade e Permanência, Carminda Mendes André diz que a vivência mostra um “feminismo muito forte em solo nacional”, e faz pensar sobre as origens do movimento.

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“Normalmente, quando a gente começa a falar sobre o movimento feminista, vamos muito nos anos 60, nos Estados Unidos, com as mulheres brancas”, fala. “Quando a gente se depara com a história da Madrinha Eunice… ela foi uma mulher que não se submeteu, por exemplo, a se manter com o marido, porque tinha a sua própria história. Era uma mulher de espírito independente.”  

Desde a morte da avó, em 1995, Rosemeire luta pelo reconhecimento da importância dela para a cultura paulistana. “Foi muito muito honroso não só para o samba de São Paulo, mas para o povo negro, essa estátua ser instalada no bairro da Liberdade.” Ela afirma que, desde a imigração japonesa, as origens pretas do bairro estavam sendo apagadas e esquecidas.

Carminda vê a estátua como parte de um movimento de reconhecimento das raízes africanas da cidade. “É um modo de começar a recontar a história de São Paulo do ponto de vista dos negros”, diz. “É uma maneira de trazer à tona uma memória ancestral.”

Uma mulher que ‘se fez’ na Liberdade

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Filha de escravos alforriados, nasceu em 1909, na cidade de Piracicaba, no interior paulista, Eunice se mudou para a capital paulista aos 11 anos. Sempre viveu nas imediações do bairro da Liberdade, onde, nas palavras da neta Rosemeire, “se criou e se fez”.

Estudou até o 4º ano do primário e, ainda nova, largou os estudos para vender limões em uma banquinha. Independente e a frente de seu tempo, chegou a ter quatro grandes bancas de venda de frutas, que sustentavam os três cômodos que alugava em uma casa na Rua da Glória.

Era frequentadora assídua de festas religiosas, como a de Bom Jesus de Pirapora, e festejos carnavalescos, como o do Brás. Em 1936, conheceu o carnaval da Praça Onze, no Rio. Queria ver o festejo que presenciou na capital fluminense em São Paulo. Assim, junto a amigos e familiares, fundou a Lavapé.

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Quando tinha 20 e poucos anos, a neta não lembra bem, conheceu Francisco Papa,  o Chico Pinga, com quem se casou. Algumas décadas depois, separou-se dele, quando ele pediu para que escolhesse entre ele e a escola. Ela escolheu o samba.

Mesmo sem poder ter filhos biológicos, teve 41 afilhados, pelas contas da neta. Daí veio o apelido de Madrinha Eunice. Os três cômodos da Madrinha tinham sempre entre oito e dez hóspedes, aos quais ela oferecia fartura.

Religiosa, era da quimbanda, mas, segundo a neta, frequentava também a Igreja Católica. O Exú dela era Veludo, patrono da escola. Carminda avalia que para a Madrinha, o carnaval ia muito além da folia. “A gente aprende, com Madrinha Eunice, que fazer carnaval, não é só a brincadeira, mas é também o louvor a suas entidades, que são afrobrasileiras.”  

Presidiu a escola até seus últimos dias. Artística, foi “embora cantando”, como lembra a neta. Morreu por causa das complicações da diabete aos 87 anos.

Projeto prevê homenagear 5 personalidades

A primeira estátua do projeto do DPH foi inaugurada em dezembro do ano passado: um tributo ao cantor Itamar Assumpção, no Centro Cultural da Penha. Além de homenagear personalidades negras, os artistas responsáveis pela escultura são pretos. 

Ainda no dia 21 de abril, está prevista a inauguração da obra em homenagem ao músico e sambista Geraldo Filme, na Praça David Raw, na Barra Funda. Em maio, o atleta Adhemar Ferreira da Silva será imortalizado em escultura.

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Lançado em setembro, o projeto tinha previsão de finalização em 180 dias a partir do lançamento. Porém, “especificidades técnicas dos procedimentos de construtivos das esculturas” demandaram o adiamento da conclusão. O prazo de 180 dias, então, passou a ser contado da instalação da primeira estátua, em dezembro.

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