Após desperdício, Saúde promete divulgar estoques de medicamentos para indígenas

Reportagem do Estadão em fevereiro mostrou descarte de milhares de medicamentos dos Yanomami. Saúde admite problema e promete divulgar na internet estoques dos Distritos Sanitários Indígenas

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Por André Shalders
Atualização:

O Ministério da Saúde vai divulgar na internet informações sobre os estoques de medicamentos destinados ao atendimento aos povos indígenas do país. A medida é uma resposta ao desperdício de medicamentos do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Yanomami, revelado em fevereiro por reportagens do Estadão. Como mostrou o jornal, o DSEI Yanomami jogou fora 257 mil unidades de medicamentos em 2023, incluindo medicação de alto custo, que perderam o prazo de validade. Só em um dos produtos, o Paxlovid, cerca de R$ 250 mil foram jogados fora. Segundo os Yanomamis, enquanto os fármacos estavam dentro do prazo, os indígenas sofreram com a falta de medicação no Sistema Único de Saúde.

Medicamentos destinados ao DSEI-YY encontrados numa casa abandonada em Boa Vista (RR) Foto: @urihiyanomami via Instagram

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A promessa de divulgar os dados sobre os estoques de medicamentos comprados para atender aos indígenas consta de uma resposta do Ministério da Saúde a um requerimento apresentado por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). No mesmo documento, a pasta diz que os medicamentos descartados ao longo de 2023 com prazo de validade no ano passado somam 210,1 mil unidades. Em resposta anterior, a pasta havia dito que foram pouco mais de 257 mil unidades jogadas fora.

“Registre-se que se encontra em desenvolvimento um painel de informações pela SESAI/MS para divulgar o estoque de medicamentos de todos os Distritos. Medida muito importante, que se encontra em fase de teste. Isso permitirá que os usuários tenham acesso às informações sobre a disponibilidade de medicamentos, o que é crucial para garantir a transparência e a assistência farmacêutica”, disse o Ministério da Saúde, na resposta ao pedido de Lei de Acesso à Informação.

Mais adiante a pasta detalha que “o painel em desenvolvimento conterá as informações como nome do produto, lote, validade e quantidade em estoque, na data de referência, e estarão disponíveis independente de solicitações ou requerimentos”.

O pedido de informações foi formulado pela deputada Adriana Ventura (Novo-SP), e menciona a reportagem do Estadão. Ventura fez um Requerimento de Informações (RIC) com as mesmas perguntas ao Ministério da Saúde, mas este sequer foi enviado – o encaminhamento depende da Mesa Diretora da Câmara.

“Os Yanomamis subiram a rampa com o presidente Lula, mas as mazelas continuam as mesmas! (...) O governo não apenas reconheceu a falha como se comprometeu a publicar um painel com os estoques de medicamentos sob sua gestão. Por isso é tão importante a fiscalização do Executivo: é nosso papel apontar o que está errado e cobrar uma correção de rumos”, disse a deputada, que é representante do Novo na Câmara.

A resposta ao pedido da parlamentar inclui uma tabela com os medicamentos descartados ao longo de 2023, com o lote e a data de vencimento. A tabela menciona, por exemplo, 3,9 mil testes rápidos de Covid-19 jogados fora, além de 219 testes de dengue. A pasta confirmou ainda a perda de 1.690 unidades de Paxlovid, antiviral para combate à covid-19, vendido a quase R$ 5 mil a caixa. No mercado, a quantidade descartada sairia a quase R$ 250 mil, mesmo que cada “unidade” mencionada seja um comprimido.

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À época, o Ministério da Saúde disse ter herdado do governo de Jair Bolsonaro (PL) um estoque de medicamentos no DSEI Yanomami “sem tempo hábil para distribuição e uso”. Na resposta aos questionamentos via Lei de Acesso, o ministério voltou a atribuir a responsabilidade pelos problemas à gestão anterior. “Desde o início de 2023, o Ministério da Saúde retomou as políticas de saúde indígena e o cuidado com a população Yanomami após anos de desassistência e abandono do governo passado. Essa é uma questão tratada com total prioridade pelo Ministério”, diz um trecho.

O DSEI Yanomami (DSEI-YY) é uma subdivisão do Sistema Único de Saúde (SUS) voltada ao atendimento deste povo indígena nos Estados de Roraima e do Amazonas. Ao todo, o SUS possui 34 DSEIs. Os Yanomami enfrentam uma grave crise humanitária, marcada pelo avanço de garimpeiros ilegais no território e pela destruição do modo de vida tradicional daquela população. Segundo dados obtidos pelo jornal digital Poder360, o grupo registrou 363 óbitos em 2023, ante 343 em 2022 – uma alta de 5,8%. O MS nega o aumento, e diz que há subnotificação das mortes de 2022.

À reportagem, o Ministério da Saúde disse que as informações serão divulgadas em um site chamado Painel da Assistência Farmacêutica. A página encontra-se atualmente em fase de “construção e atualização”. “Na ferramenta, será possível consultar o estoque de medicamentos de todos os Distritos Sanitários Especiais Indígenas”, diz o Ministério da Saúde.

Medicamentos perdidos fizeram falta, diz indígena

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Segundo o líder indígena Júnior Hekurari Yanomami, morador da comunidade Surucucu, quando os remédios estavam dentro do prazo de validade, o maior problema dos habitantes da região era a falta de medicamentos, e não o excesso.

“Em 2020, nós Yanomami cobramos muito, avisamos muito que o medicamento estava faltando na Terra Indígena Yanomami. Muita gente, muitas crianças morreram por falta de medicamento. Antibióticos, azitromicina, de febre, e outros. Naqueles anos, 2020, 2021, 2022, faltou medicamento na comunidade. E profissionais, também. Na época, denunciamos à Polícia Federal e eles descobriram que havia desvios de medicamentos”, disse ele ao Estadão em fevereiro. Júnior é presidente da Urihi Associação Yanomami.

De acordo com o indígena, os líderes Yanomami receberam relatos de gestores da unidade de saúde que desviavam os medicamentos para garimpeiros durante a gestão de Bolsonaro. Hekurari conta que esses profissionais trocavam os fármacos por ouro extraído dos garimpos ilegais. “Foi a irresponsabilidade do governo passado (de Jair Bolsonaro) que deixou o povo Yanomami morrer por falta de medicamento”, afirmou.

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Júnior Hekurari Yanomami, presidente do Considi Yanomami (Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami) e morador da comunidade Kori Yauopë Foto: Bárbara Moreira

Kleber Karipuna é coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB). Em entrevista ao Estadão em fevereiro, ele avaliou como “grave” o desperdício dos medicamentos – especialmente porque os indígenas sofreram com a falta dos remédios nos últimos anos, quando os produtos agora descartados estavam dentro da validade. É preciso avaliar se houve compra à mais ou outro problema de gestão, diz ele.

A sede do DSEI-YY fica na capital Boa Vista (RR), mas o órgão inclui também 37 polos base e 78 Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSI), que atendem um público de quase 28 mil indígenas, espalhados por 366 aldeias. Além dos Yanomami, que formam o grupo mais numeroso, o DSEI-YY atende também às etnias Sanumã, Ninan, Yawari/Xamathari e Yekuana. No fim de 2022, 807 profissionais trabalhavam no DSEI-YY, que foi o primeiro do tipo criado no país, ainda em 1991.

No dia 31 de janeiro deste ano, a Polícia Civil de Roraima encontrou várias caixas de medicamentos vencidos em uma casa abandonada na capital do Estado, Boa Vista. Os medicamentos pertenciam ao DSEI-YY, e foram encontrados por acaso, durante uma apuração sobre tráfico de drogas. Na ocasião, o Ministério da Saúde disse que os produtos já estavam vencidos desde o governo Bolsonaro.

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