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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Psicanálise: fazer bem basta para ser ciência?

Para ser considerada ciência, é preciso, sim, passar pelo crivo de ensaios clínicos

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Pessoas que vão à igreja vivem mais. Várias pesquisas científicas mostram que a frequência a templos religiosos está associada a menor risco de mortalidade. Isso prova que Deus existe?

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Antes é preciso que outras hipóteses sejam testadas: por exemplo, também foi comprovado que a prática religiosa regular reduz a sobrecarga do estresse diário sobre o sistema cardiovascular.

Essa melhora na expectativa de vida entre fiéis poderia não ser devida a uma intervenção divina, portanto, mas a fatores cientificamente explicáveis: o alívio do estresse e suas consequências deletérias para a saúde, exista ou não o mundo transcendental. Mais que isso: pessoas de fé têm mais esperança, mais suporte social da comunidade e práticas mais saudáveis (como não fumar ou fazer jejuns). Isso prova que Deus não existe?

Essa conclusão também não pode ser extraída das pesquisas, simplesmente porque não estão desenhadas para responder a tal pergunta.

Não podemos esperar que a ciência diga nada sobre o mundo sobrenatural – seus métodos foram desenvolvidos para o mundo material, mensurável. Mas quando se trata dessa esfera, ela é a ferramenta correta para nos trazer dados objetivos: para saber se ir à igreja de fato reduz a mortalidade, a epidemiologia é mais importante do que a teologia.

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Esse detalhe parece ter sido ignorado pela maioria das pessoas que criticaram o livro Que Bobagem! Pseudociências e Outros Absurdos Que Não Merecem Ser Levados a Sério, de Natália Pasternak e Carlos Orsi. Na obra, os autores investigam várias crenças e práticas que têm grande apelo popular, mas que não têm evidências científicas. Os ataques à obra ou dizem que a ciência não tem a resposta para tudo, ou que na prática as coisas que funcionam estariam comprovadas.

No caso da psicanálise, por exemplo, muitos disseram que é uma ciência humana, e que os postulados de Freud não podem ser avaliados pelos métodos das ciências naturais. Pode ser isso mesmo. Mas se o que quisermos saber é se pacientes com depressão melhoram ao ser tratados com psicanalistas seria desonestidade intelectual desdenhar de ensaios clínicos.

Por outro lado, o fato de pacientes em psicanálise melhorarem não diz nada sobre a teoria freudiana. A bem da verdade, hoje em dia nem há dúvida de que psicoterapia é eficaz – e de que tal eficácia vem muito mais de se encontrar regularmente com um terapeuta investido em sua melhora do que da teoria que ele defende.

Psicoterapia não é bobagem. Mas dizer que Freud tinha razão porque os pacientes melhoram fazendo psicanálise é como dizer que a Bíblia está certa porque quem vai à igreja vive mais.

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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