PUBLICIDADE

Encontrar uma vacina contra a covid-19 não será suficiente para acabar com a pandemia

Enquanto técnicos se preparam para produção, paira no ar uma preocupação internacional sobre quais países receberão as primeiras inoculações

Foto do author Redação
Por Redação
Atualização:

A corrida da Johnson & Johnson para fabricar 1 bilhão de doses da vacina contra o coronavírus levou a empresa a construir uma pequena planta de biotecnologia perto da Interstate 95, em Baltimore. Mas, enquanto os técnicos se preparam para verter embalagens plásticas de mil litros de ingredientes em tanques de aço, para produzir os primeiros lotes de vacinas experimentais, paira no ar uma preocupação internacional sobre quais países receberão as primeiras inoculações. A fábrica de Baltimore é a segunda de quatro plantas que serão construídas em todo o mundo, nas quais a Johnson & Johnson planeja produzir a vacina em grande escala, meses antes de testar a primeira dose em um ser humano. A antecipação da fabricação faz parte de uma disputa mundial para proteger a população contra um vírus que não se imagina que desaparecerá por conta própria.

Teste em Bangcoc. Empresas e governos já discutem formas de produzir bilhões de doses Foto: Rungroj Yongrit/EFE

Especialistas médicos dizem que, se o SARS-CoV-2 se estabelecer como um vírus endêmico e renitente, parecido com o da influenza, quase certamente não haverá vacina suficiente por pelo menos vários anos, mesmo com esse esforço inédito de fabricar bilhões de doses. Provavelmente será necessário inocular cerca de 70% da população mundial - 5,6 bilhões de pessoas - para começar a formar a imunidade de rebanho e diminuir a propagação do vírus, dizem os cientistas. No entanto, as prioridades nacionalistas de alguns países podem minar o imperativo estratégico de atacar os pontos críticos, onde quer que estes estejam no planeta - até mesmo nos países pobres que não conseguirão pagar pela vacina. Os Estados Unidos, em particular, podem ficar isolados se as vacinas desenvolvidas no país se provarem menos eficazes do que as produzidas na China ou na Europa. O cenário que os especialistas em saúde pública mais temem é uma disputa mundial na qual os fabricantes possam vender apenas para os maiores compradores, os países ricos tentem comprar todos os suprimentos e as nações onde se localizam os fabricantes guardem as vacinas para seus próprios cidadãos. “Se os países pensarem apenas em si mesmos, não vai funcionar. Mesmo se você estiver vivendo num lugar que esteja completamente sem infecções, seus melhores esforços para combater o vírus irão fracassar, a menos que você feche todas as fronteiras e o comércio”, disse Seth Berkley, CEO da Gavi, uma parceria público-privada que ajuda a fornecer vacinas para os países em desenvolvimento. “É um problema global, que exige uma solução global”. Os defensores da saúde internacional querem evitar que se repita o ano de 2009, quando os países ricos - entre eles os Estados Unidos, então liderados pelo internacionalista Barack Obama - furaram a fila para vacina contra a gripe suína H1N1, deixando países subdesenvolvidos com pouca oferta até depois de a pandemia diminuir. Essa abordagem será intensamente adotada pelo presidente Donald Trump e outros líderes mundiais com impulsos nacionalistas, bem como por suas populações, ansiosas para reduzir a ameaça mortal e reavivar suas economias. Nos Estados Unidos, a agência do governo federal encarregada do desenvolvimento de vacinas de emergência indicou que está priorizando as necessidades domésticas - uma mentalidade “América em primeiro lugar” que determinou boa parte da resposta do governo Trump à pandemia. “No momento, estamos focados numa abordagem para todo o país, o que é necessário para acelerar a disponibilidade das vacinas”, disse Gary Disbrow, diretor interino da Autoridade de Pesquisa e Desenvolvimento Biomédico Avançados (BARDA, na sigla em inglês), em uma resposta por e-mail a perguntas do Washington Post. A BARDA, encarregada de proteger os americanos de ameaças biológicas, está canalizando quase meio bilhão de dólares de fundos de emergência para a Johnson & Johnson desenvolver uma vacina. Também está repassando centenas de milhões de dólares em apoio financeiro para os esforços da Sanofi, a grande empresa farmacêutica francesa, e da Moderna, uma empresa de biotecnologia de Massachusetts que fechou uma parceria com uma empresa suíça para a fabricação de vacinas. “Ao trabalharmos com várias empresas, aumentamos as chances de os Estados Unidos terem uma ou mais vacinas disponíveis o mais rápido possível”', disse Disbrow.

A corrida global por equipamentos de proteção e ventiladores - a qual deixou os países mais pobres de mãos vazias - sugere que a competição por vacinas pode ser igualmente acirrada. Dezenas de empresas grandes e pequenas estão correndo para desenvolver vacinas a partir de diferentes tecnologias e abordagens. A Avalere Health, uma empresa de consultoria farmacêutica, está acompanhando pelo menos 120 diferentes projetos de vacinas, patrocinados por governos, universidades, institutos sem fins lucrativos e empresas privadas. Será necessária uma capacidade de fabricação em larga escala para produzir doses viáveis a partir dessas experiências e ensaios clínicos. Algumas vacinas talvez exijam duas doses, pressionando ainda mais a capacidade de fabricação. Algumas altas autoridades do governo Trump estão chamando a atenção para o problema. Francis Collins, diretor dos Institutos Nacionais de Saúde, e Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, ambos médicos, foram coautores de um artigo que pede coordenação internacional, publicado na revista Science na segunda-feira. “Custos, sistemas de distribuição, requisitos da cadeia de frio e ampla cobertura de entrega são potenciais pontos de constrição no eventual fornecimento de vacinas a indivíduos e comunidades”, escreveram eles. “Todas essas questões exigem cooperação global entre as organizações envolvidas na prestação de serviços de saúde e na economia”. Reconhecendo os gargalos financeiros e logísticos das empresas de biotecnologia, Bill Gates, filantropo e fundador da Microsoft, anunciou em abril, no The Daily Show com Trevor Noah, que a Fundação Bill e Melinda Gates disponibilizaria bilhões de dólares para ajudar a capacidade de fabricação de sete empresas não reveladas. A corrida por uma vacina é cheia de riscos, porque ninguém sabe quais projetos serão bem-sucedidos. Isto força as empresas a produzir milhões de doses de vacina que talvez se revelem inúteis. Mas existe um outro risco. Os Estados Unidos talvez não se vejam bem posicionados caso as melhores vacinas venham de outros países ou de colaborações internacionais - como, por exemplo, uma cooperativa de desenvolvimento e manufatura para a qual líderes mundiais prometeram bilhões neste mês, em um evento online que o governo Trump ignorou. Um funcionário do governo Trump, que falou sob condição de anonimato por causa das regras da Casa Branca sobre conversas com repórteres, disse que os Estados Unidos apoiam essas iniciativas, apesar de terem ficado de fora do evento. “Precisamos estabelecer as bases para o compartilhamento global de vacinas agora, antes de sabermos quem será o vencedor. Não existe um quadro de negociação nem um protocolo global, não existe uma estrutura preexistente que nos diga como fazer isso”, disse Jeremy Konyndyk, pesquisador de política do Center for Global Development que trabalhou na resposta do governo americano a desastres internacionais durante o governo Obama. “O que não queremos é uma situação em que alguns tenham e muitos não tenham, com base em quem recebe a vacina para trabalhar, ou em quem tem capacidade de produção, ou em quem tem dinheiro”. Grande parte da indignação internacional durante a pandemia de gripe suína H1N1, há onze anos, centrou-se em contratos de fornecimento de governos ocidentais com fabricantes de vacinas. Sob o ex-presidente Barack Obama, os Estados Unidos tinham em 2009 contratos que garantiam 600 milhões de doses para o país, uma enorme parcela do potencial de fornecimento global, informou o Washington Post na época. Desde então se estabeleceram protocolos mais nítidos para o planejamento internacional para vacinas contra influenza. Mas essas estruturas não se aplicam automaticamente ao coronavírus. David Fidler, membro adjunto de segurança cibernética e saúde global do Conselho de Relações Exteriores e professor visitante da Faculdade de Direito da Universidade de Washington, em St. Louis, disse que o fato de o coronavírus ser uma ameaça muito maior pode dificultar que os países ajam em conjunto - especialmente os Estados Unidos, que hoje têm o maior número de casos e de mortos por covid-19 do mundo. “A pressão para se obter acesso à vacina, como uma válvula de segurança para aliviar a situação política e econômica, será astronômica para quem estiver na Casa Branca. E essa pressão não vai se dissipar se o (candidato democrata) Joe Biden vencer em novembro”, ele disse. As grandes empresas farmacêuticas podem voltar a firmar contratos sobre vacinas quando enfrentarem pressão para recuperar o dinheiro investido, acrescentou Fidler. “Para as empresas farmacêuticas que fabricam vacinas e estão pensando no retorno do investimento, o melhor cliente são os países de alta renda”, disse Fidler. “Se você quer retorno, alguém precisa pagar por ele”.

Na China, mil cientistas estão trabalhando na vacina contra o coronavírus. Foto: Brian Snyder/Reuters

De acordo com dados dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na silha em inglês), mais de 80 milhões de americanos foram inoculados durante a pandemia de gripe suína de 2009 - uma quantidade que equivale aproximadamente ao número total de doses enviadas a 77 diferentes países por um plano de distribuição gerenciado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). “Os países ricos monopolizaram a vacina, os países pobres ficaram para trás. Receberam a vacina bem mais tarde e em menor quantidade”, disse Gavin Yamey, diretor do Centro de Impacto Político em Saúde Global da Universidade Duke, em um podcast da universidade. Permitir que esse cenário se repita na batalha contra o coronavírus seria um erro devastador, disse ele. “Se não disponibilizarmos esta vacina para todo o planeta”, disse ele, “não conseguiremos acabar com a pandemia porque (...) um surto em qualquer lugar é um surto em todos os lugares”. A BARDA não assinou contratos com a Johnson & Johnson ou qualquer outra empresa para a entrega de quantidades específicas de doses, um passo que Disbrow disse que seria “prematuro neste momento”. A Johnson & Johnson “indicou que aproximadamente 300 milhões de doses de vacina estarão disponíveis nos Estados Unidos a cada ano”, disse ele, o que é suficiente para vacinar 90% da população americana. Esse número de doses corresponde à capacidade anual projetada para a fábrica de Baltimore, a qual é operada por uma empresa de capital aberto chamada Emergent BioSolutions e recebe financiamento como um dos quatro Centros Federais de Inovação em Desenvolvimento e Fabricação Avançados. Questionado sobre a afirmação de Disbrow, um alto executivo da Johnson & Johnson não se comprometeu com volumes nem prazos específicos para a entrega de vacinas nos Estados Unidos, mencionando a necessidade de avaliar as prioridades globais para combater a pandemia. A empresa quer produzir 1 bilhão de doses até o fim de 2021, disponibilizando as primeiras até o fim do ano. Não se sabe onde a vacina será mais necessária, embora os profissionais de saúde sejam uma alta prioridade, disse Paul Stoffels, vice-presidente executivo e diretor científico da Johnson & Johnson, em entrevista. Stoffels disse que a Johnson & Johnson está comprometida em satisfazer a demanda onde quer que seja mais necessária. A empresa também não está interessada em lucrar com a vacina contra o coronavírus, disse ele. “É muito difícil determinar agora onde a epidemia estará no futuro”, disse Stoffels em entrevista. “Sinceramente, pensamos (...) que se deve dar prioridade às pessoas que mais precisam - primeiro os profissionais de saúde e as pessoas de alto risco, talvez onde quer que estejam no mundo”, disse. “Por um lado, trabalhamos muito com os Estados Unidos”, acrescentou ele, “mas, por outro lado, também fazemos o possível para garantir que possamos servir a todo o mundo”. A Johnson & Johnson diz que sua tecnologia de vacinas é particularmente adequada para regiões subdesenvolvidas, porque os frascos de doses podem ser transportados a temperaturas relativamente quentes no último estágio de entrega. Além de Baltimore, a empresa produzirá vacinas em sua própria fábrica na Holanda e está procurando pelo menos dois outros locais na Ásia e na Europa. A empresa também está contratando fabricantes de frascos de vidro para comprar frascos de 5 doses, na tentativa de diminuir a escassez de embalagens, disse Stoffels. A Pfizer, que está testando várias vacinas em potencial, identificou fábricas nos Estados Unidos e na Bélgica e está assegurando sua cadeia de suprimentos, com o objetivo de disponibilizar algo entre 10 e 20 milhões de doses no outono e centenas de milhões de doses no próximo ano, disse a empresa. “Estamos pensando completamente fora do, entre aspas, normal. Formulamos abordagens inovadoras, estamos negociando contratos com fornecedores e ainda não temos nem um único dado clínico”, disse Kathrin Jansen, chefe de pesquisa e desenvolvimento de vacinas da Pfizer. “É uma coisa inédita”. A vacina da Pfizer, que está sendo desenvolvida junto com a empresa alemã BioNTech, contém material genético encapsulado em uma gota de gordura composta por quatro lipídios diferentes. Antes mesmo de saber qual vacina dará certo, a Pfizer precisou assegurar o fornecimento da quantidade suficiente de cada um desses lipídios. Os cientistas da empresa precisam de enzimas para produzir o material genético, chamado RNA, então tiveram de encontrar fornecedores e garantir suprimentos suficientes para a demanda prevista. Acima dos desafios da cadeia logística de suprimentos paira a incerteza científica. O cenário de planejamento da Pfizer se baseia em uma “previsão de pior caso”, segundo a qual a vacina que a empresa vier a produzir será a que exigirá a dose mais alta. Se a empresa obtiver sucesso com uma versão diferente - uma vacina que faça cópias de si mesma uma vez dentro das células e que, portanto, seja eficaz com cerca de um décimo da dose - a Pfizer pode estar pensando em bilhões de doses, e não em centenas de milhões. “Tudo isso são hipóteses, e todo o planejamento agora precisa de uma certa flexibilidade”, disse Jansen. “Não queremos ter capacidade muito abaixo, não queremos ter capacidade muito acima e não sabemos muito bem de quanto precisamos. Estamos fazendo uma dança muito interessante para acertar na medida, mas ninguém fez isso antes”. Jansen disse que a comunidade global terá de descobrir como distribuir a vacina de forma equitativa pelo mundo todo, por meio de organizações como a OMS. Ela não disse para onde iria a vacina da Pfizer. “Tenho muita confiança de que, no momento em que estivermos de frente para o problema, haverá planos para garantir uma implementação equitativa”, disse Jansen. A Moderna tem uma fábrica no subúrbio ao sul de Boston capaz de produzir 100 milhões de doses em um ano. Neste mês, a empresa anunciou uma parceria de dez anos com a Lonza, uma empresa suíça de desenvolvimento e fabricação que a ajudará a aumentar a produção, com o objetivo de iniciar a fabricação em julho. A parceria poderia expandir a capacidade de fabricação para 1 bilhão de doses por ano. Stéphane Bancel, diretor executivo da Moderna, disse esperar que os governos façam grandes pedidos junto a empresas como a dele antes que os produtos sejam formalmente aprovados - para que os laboratórios passem os 12 a 18 meses seguintes fazendo o máximo de vacina possível, preparando-se para o aumento na demanda, se e quando as vacinas obtiverem a regulamentação oficial. “Se começarmos a estocar agora”, disse ele, “todos os produtos que fabricarmos entre hoje e dia do lançamento estarão disponíveis de imediato”. / Tradução de Renato Prelorentzou.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.