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Espectro autista: por que é importante falar sobre a singularidade de pessoas com a condição

Generalizar e estereotipar vivências dificulta apoio adequado e desenvolvimento das habilidades, diz especialista

Foto do author Victória  Ribeiro
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Embora o Transtorno do Espectro Autista (TEA) esteja se tornando um assunto cada vez mais discutido, a compreensão sobre a condição ainda é marcada por estereótipos e generalizações. Numa perspectiva que engloba desde personagens de mídia baseados em concepções comuns até ideias limitadas sobre capacidades e comportamentos, a diversidade das experiências vividas por pessoas com TEA acaba sendo invisibilizada, perpetuando equívocos que dificultam o apoio adequado.

Não é de hoje que especialistas e pessoas que vivem no espectro falam sobre a necessidade de romper com esse cenário. A necessidade está estampada, inclusive, nos cartões de identificação – crachás ilustrados com quebra-cabeças coloridos – utilizados por pessoas com TEA no dia a dia. Cada vez mais percebidos, seja em metrôs ou shoppings, esses objetos, apesar de terem um modelo padrão, possuem cores variadas que simbolizam justamente o oposto: a necessidade de compreender que, quando se trata de pessoas com autismo, a individualidade é um fato.

Estima-se que dois milhões de brasileiros vivam com algum nível de autismo, mas muitos deles ainda não têm diagnóstico. Foto: Maryna/Adobe Stock

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Nicolas Brito Sales tinha dois anos quando sua mãe resolveu levá-lo a uma série de especialistas. Na época, ela já desconfiava de autismo, condição em que a pessoa pode apresentar déficit na comunicação, dificuldade de interação social e padrões restritos e repetitivos de comportamento. Ele não demonstrava interesse em sair de casa e tinha curiosidade por máquinas de lavar e ventiladores. Aos três anos, foi rotulado como uma “criança psicótica” e aos quatro, como “mimado demais”. O diagnóstico de TEA só veio aos cinco anos.

Hoje, com 25, Nicolas afirma que ainda estamos distantes de um modelo social ideal quando se trata do espectro autista. A diversidade de pessoas é grande, mas isso nem sempre é óbvio para aqueles que veem de fora. Um exemplo disso é que muitos acreditam que estar no espectro significa, inevitavelmente, não gostar de contato físico, como abraços, ou preferir estar sozinho em vez de conviver com outras pessoas.

“Não existe uma especificidade. Isso também vale para o tipo de suporte. Há pessoas que vão precisar de ajuda para 100% das coisas que fizerem, enquanto há aquelas que conseguem viver tranquilamente, trabalhar e ter autonomia”, afirma. “É importante quebrar esses estereótipos e entender que, por mais que estejam todos debaixo do mesmo guarda-chuva, existe essa variabilidade e as pessoas merecem ser respeitadas por suas potencialidades e não deficiências.”

Conforme explica a médica Mariana Mercadante, especialista em Pediatria do Desenvolvimento e Comportamento na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), a diversidade no espectro autista só foi declaradamente reconhecida pelas entidades médicas em 2013, quando o termo “espectro” passou a ser utilizado para reforçar a variedade de sintomas e características que podem se manifestar, tornando os indivíduos únicos em sua vivência.

“Quando falamos de TEA, podemos ter pessoas com um QI elevado, mas podemos ter também pessoas com deficiência intelectual. As questões sensoriais também variam. Não é toda pessoa austista que não gosta de contato. Pelo contrário. Tem pessoas que sentem uma sensação boa quando tem alguém segurando, abraçando”, destaca. “Assim como acontece com as pessoas típicas, as necessidades de uma pessoa neurodivergente também podem variar.”

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Um dos principais riscos de ignorar essa diversidade, segundo a especialista, é limitar o potencial de desenvolvimento. Isso porque estar no espectro não significa estar preso a um processo rígido, mas sim em um processo dinâmico, que pode variar com o passar do tempo, a depender do apoio familiar, social e médico. Em outras palavras, mesmo um diagnóstico de autismo nível 3, que exige o mais alto grau de suporte, não significa que a condição não possa se alterar para um nível 1.

“Quando estigmatizamos uma pessoa com TEA, subestimamos suas capacidades de desenvolvimento, seja nas interações sociais, na educação ou no trabalho. É importante entender que o diagnóstico de autismo, que nem sempre é fácil de ser obtido, não fecha portas, mas sim abre novas possibilidades”, salienta Mariana.

Seminário Rio TEAMA

Essa questão, entre outras, tem sido debatida por Nicolas, que além de fotógrafo, artista plástico e escritor do livro “Tudo Que Eu Posso Ser”, administra uma conta no Instagram com 72 mil seguidores, sendo considerado um dos principais ativistas do movimento pelos direitos da pessoa com TEA no Brasil. Ele e Mariana integram o grupo de palestrantes confirmados no Seminário Rio TEAMA, que ocorre até sábado, 7, em Campos do Jordão (SP).

“Minha intenção não é ser um porta-voz das pessoas autistas. Isso seria impossível, já que cada um tem sua experiência particular. Sou apenas um rapaz autista que quer compartilhar suas particularidades e, quem sabe, inspirar aqueles que também estão no espectro”, ressalta Nicolas.

De acordo com Andréa Bussade, idealizadora do Rio TEAMA, o seminário surgiu de uma necessidade pessoal. Em 2017, seu filho Gabriel foi diagnosticado com TEA nível 3, necessitando de um acompanhamento especializado que, na época, não estava disponível no Rio de Janeiro. “Nós fazíamos viagens constantes para São Paulo, o que me fez perceber a necessidade de ampliar as informações, unindo médicos, terapeutas e familiares”, conta.

Embora não seja um passado tão distante, Andréa afirma que houve avanços desde a primeira edição do Rio TEAMA, em 2018, no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro. Hoje, a condição é mais conhecida e, aos poucos, começa a ser compreendida e acolhida pelas próprias pessoas no espectro – algo evidenciado pelo uso crescente dos crachás de identificação. Mesmo assim, a idealizadora ressalta que ainda há um longo caminho a percorrer.

“O fato de ser um tema mais discutido e conhecido não significa que não haja desafios. Ainda precisamos avançar, inclusive no básico. A falta de profissionais especializados atrasa diagnósticos e a criação de políticas públicas eficazes que possam garantir a independência das pessoas com deficiência. Além disso, há um grande atraso nas consultas; há pais que esperam cinco anos por uma”, destaca Andréa, que também chama atenção para a necessidade de uma rede de apoio mais ampla, especialmente para as mães de crianças autistas, que muitas vezes enfrentam pressão emocional e financeira.

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Além dos debates sobre esses desafios específicos, esta edição do seminário inclui palestras sobre diagnóstico precoce, o papel da família, novas abordagens terapêuticas e tecnologias para melhorar a comunicação e a inclusão escolar. Para isso, a presença de pessoas no espectro no centro do debate é essencial, segundo Andréa. Ela enfatiza a importância do mote “nada sobre nós sem nós”, destacando que é crucial que pessoas autistas tenham espaço para compartilhar suas experiências e perspectivas.

“Embora profissionais de saúde e terapeutas desempenhem um papel importante, são as próprias pessoas no espectro que têm a vivência e a autoridade para falar sobre o assunto. No caso do meu filho Gabriel, que é não verbal, eu assumo esse papel, mas para outros, como Nicolas e outros palestrantes do Rio TEAMA, o espaço de fala é deles, para que possam expressar suas jornadas pessoais e inspirar outros que estão no espectro.”

Correções

O nome da especialista em Pediatria do Desenvolvimento e Comportamento na Faculdade de Medicina da USP, Mariana Mercadante, foi escrito incorretamente numa primeira versão do texto

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