Pessoas que dormem mal têm mais dificuldade para se livrar de memórias ruins, sugere estudo

Pesquisadores afirmam que dificuldade para suprimir lembranças indesejadas pode favorecer o surgimento ou a piora de transtornos mentais, como ansiedade, depressão e estresse pós-traumático

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Foto do author Victória  Ribeiro

Problemas para dormir podem prejudicar a capacidade do cérebro de controlar memórias indesejadas, contribuindo para o desenvolvimento ou a persistência de transtornos psiquiátricos como ansiedade, depressão e estresse pós-traumático (TEPT). É o que sugere uma pesquisa da Universidade de York, no Reino Unido, publicada recentemente na PNAS, revista científica da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos.

“Memórias desagradáveis podem invadir a consciência e, para a maioria das pessoas, são apenas uma perturbação momentânea. No entanto, para outras pessoas, essas memórias podem se tornar recorrentes e perturbadoras, afetando a saúde mental. A privação do sono, ao prejudicar a capacidade de controlar essas memórias, pode ser um fator significativo nesse processo”, diz trecho do estudo.

Pesquisa envolveu adultos de 18 a 30 anos e mostrou que a privação de sono pode prejudicar a tentativa de afastar memórias desagradáveis Foto: amenic181/Adobe Stock

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Para investigar essa relação, os pesquisadores selecionaram 85 adultos saudáveis, com idades entre 18 e 30 anos. A primeira parte do processo foi pedir a eles que visualizassem imagens com cenas negativas, como um acidente de carro. Depois disso, metade deles passou uma noite inteira sem dormir, enquanto o restante dormiu normalmente. No dia seguinte, todos eles foram instruídos a lembrar e tentar afastar a cena da mente, enquanto sua atividade cerebral era monitorada por ressonância magnética.

Os resultados mostraram que aqueles que passaram a noite sem dormir tiveram uma redução da atividade no córtex pré-frontal dorsolateral direito, região ligada à regulação emocional e inibição de pensamentos indesejados. Por outro lado, os participantes descansados apresentaram maior ativação nessa área, além de menor atividade no hipocampo, estrutura cerebral associada à recordação de memórias.

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Segundo os pesquisadores, isso indica que o sono adequado favorece a “supressão de memória”, um mecanismo que nos ajuda a bloquear lembranças indesejadas. Quando essa função falha — como ocorre após uma noite em claro —, memórias intrusivas podem se tornar mais persistentes e difíceis de ignorar.

Na prática, isso significa que uma experiência negativa do passado pode ser revivida de forma mais intensa e incontrolável, aumentando o sofrimento emocional. Um exemplo é o próprio acidente de carro: ao ver um veículo em alta velocidade, um sobrevivente pode recordar o episódio involuntariamente. Para quem dormiu bem, afastar a lembrança da mente tende a ser mais fácil. Já para alguém privado de sono a memória pode se tornar invasiva e até angustiante, contribuindo para o desenvolvimento ou piora de transtornos mentais.

Sono REM e a supressão de memórias

Os pesquisadores também observaram que o sono REM (sigla para Movimento Rápido dos Olhos) — fase considerada a mais profunda e geralmente associada aos sonhos — tem um papel importante na capacidade do cérebro de lidar com lembranças desagradáveis. Eles descobriram que, entre os participantes que dormiram bem, aqueles que passaram mais tempo nessa fase tiveram mais facilidade para suprimir memórias indesejadas.

Isso acontece porque o sono REM ajuda a “recarregar” áreas do cérebro responsáveis pelo controle emocional, como o córtex pré-frontal, uma região ligada à regulação de pensamentos e sentimentos. Quando essa parte do cérebro está bem descansada, conseguimos afastar lembranças ruins com mais eficiência. Por outro lado, a privação de sono pode prejudicar esse mecanismo, tornando memórias negativas mais persistentes e difíceis de ignorar.

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“Alterações no sono REM são comuns em transtornos psiquiátricos marcados por pensamentos intrusivos, como depressão, ansiedade e TEPT. Essa fase do sono não apenas auxilia na supressão de memórias desagradáveis, mas também é essencial para a regulação do afeto, ajudando o cérebro a atenuar ou reduzir o impacto das experiências emocionais. Melhorar a qualidade do sono pode, portanto, ser uma estratégia importante para fortalecer a saúde mental”, explicam os pesquisadores.

Impactos e limitações

É fato que o número de pesquisas demonstrando a importância de uma boa noite de sono para a saúde mental e a função da memória — especialmente diante do risco de declínio cognitivo em uma população mais envelhecida — cresce a cada dia. No entanto, a relação entre sono, supressão de memória e transtornos mentais ainda é considerada uma novidade por especialistas ouvidos pelo Estadão.

Na opinião da pneumologista Luciana Palombini, pesquisadora do Instituto do Sono, a metodologia utilizada no estudo é interessante e detalhada. Um dos pontos positivos é o uso da ressonância magnética, um exame de alto custo e pouco empregado em pesquisas. Além disso, os pesquisadores se preocuparam em fornecer relógios para monitorar as noites dos participantes e observar qualquer interrupção de sono ou cochilo durante o experimento.

Apesar desses acertos, há limitações. Segundo o psiquiatra Elton Kanomata, do Hospital Israelita Albert Einstein, a amostra de participantes é pequena e restrita a adultos jovens e saudáveis, o que a torna pouco representativa de outras populações, como idosos e pessoas que convivem com transtornos mentais ou distúrbios crônicos de sono. “Isso significa que os resultados não podem ser generalizados”, afirma.

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Outro ponto destacado é a diferença entre privação aguda e restrição crônica de sono. Segundo Luciana, uma única noite sem dormir não se compara aos efeitos cumulativos da falta de sono ao longo do tempo, uma realidade para muitas pessoas. “A privação de sono permite avaliar os impactos imediatos, mas os efeitos da restrição crônica são mais complexos e exigiriam um estudo bem mais aprofundado”, opina.

Por fim, os especialistas destacam a dificuldade da pesquisa em separar os efeitos da privação de sono das influências de outros fatores psicológicos e fisiológicos, como o estresse gerado pelo próprio experimento. Dessa forma, não fica claro se a dificuldade em suprimir memórias ruins resulta exclusivamente da falta de sono ou também do desconforto provocado pelo estudo.

“Embora a pesquisa não ofereça resultados definitivos, ela reforça as evidências de que a qualidade do sono é essencial para a saúde mental. Pesquisas futuras com amostras mais diversas e períodos mais longos de observação podem ajudar a compreender melhor essa relação”, destaca Kanomata.

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