Para comiseração das hostes golpistas que pretenderam aniquilar a democracia brasileira, a reação imediata da sociedade foi se unir em torno das instituições para, sob o primado da lei, barrar a intentona. Isso pode, paradoxalmente, fortalecer o governo Lula, já que a peça de resistência da repulsa ao golpe reside na afirmação da legitimidade do presidente eleito. Não que as dificuldades fiquem menores, mas as condições para superá-las podem ser fortalecidas.
É lugar comum na política brasileira atribuir as agruras do novo governante ao seu antecessor. Não foi diferente agora, como atesta o alentado relatório final do Gabinete de Transição Governamental (documento que dedica 29 de suas 100 páginas à lista de colaboradores).
A herança não é leve, mas até que poderia ser pior. O desemprego é o mais baixo desde junho de 2015, a inflação anual veio de 12,1% em abril para 5,8% em dezembro e o governo central fechou o ano com superávit primário, o primeiro desde 2013. Para cada uma dessas façanhas há enormes qualificações, claro, mas os indicadores econômicos poderiam ser ainda mais pestilentos.
O que é grave, urgente e indisfarçável é o contínuo avanço da miséria. O Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV) divulgou no ano passado um estudo (Mapa da Nova Pobreza. M. Neri) que mostra que o número de brasileiros pobres (com renda mensal abaixo de R$ 497,00) alcançou 62,9 milhões, cerca de 30% da população, o maior da série histórica. Houve queda na taxa de desemprego recentemente, mas os números do IBGE revelam que a massa de rendimentos efetivamente recebidos no acumulado dos 12 meses até outubro de 2021 era ainda R$ 107,5 bilhões menor que no mesmo período até março de 2020, no começo da pandemia.
Que o ataque à democracia desperte no governo Lula o senso de urgência
Isso porque o aumento da ocupação se deu simultaneamente à queda dos rendimentos reais, fruto da precarização do trabalho. Pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) registra que, mesmo com o Auxílio Brasil, 43,4 milhões de pessoas não tinham acesso à quantidade suficiente de alimentos em 2020.
Que o ataque à democracia desperte no governo Lula o senso de urgência. Se o momento é de cerrar fileiras em defesa da democracia, é bom lembrar que ela se fundamenta na busca de uma sociedade mais justa e menos desigual. Programas sociais de vulto podem ser financiados com a revisão de isenções, subsídios e sinecuras fiscais, sem falar na correção da atual regressividade dos impostos. Atacar a pobreza extrema e a fome, legados do período bolsonarista, é tarefa primordial do governo que se inicia. Elas são as nossas maldições.