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Famoso manuscrito que descreve o telescópio de Galileu é falso, aponta análise

Raridade atribuída e assinada pelo astrônomo teve sua procedência questionada após polêmica

Por Michael Blanding
Atualização:

O ano era 1610 e Galileu Galilei estava olhando através de um novo telescópio quando notou algo estranho: vários objetos brilhantes piscando ao redor do planeta Júpiter, e eles pareciam mudar de posição todas as noites. Sua descoberta das luas orbitando Júpiter foi uma grande rachadura na noção, amplamente difundida desde a antiguidade, de que tudo no universo girava em torno da Terra.

A revelação – que foi condenada pela Igreja Católica – ajudou a provar a teoria de um sistema solar centrado no Sol. Por décadas, a Biblioteca da Universidade de Michigan se orgulhou de um manuscrito relacionado à descoberta, descrevendo-o como “um dos grandes tesouros” de sua coleção. Na parte superior está o rascunho de uma carta assinada por Galileu descrevendo o novo telescópio. Na parte inferior há esboços traçando as posições das luas ao redor de Júpiter – “os primeiros dados observacionais que mostraram objetos orbitando um corpo diferente da Terra”, descreve o texto da biblioteca.

Carta atribuída a Galileu, considerada uma preciosidade da ciência é, na verdade, falsa Foto: University of Michigan Library

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Mas não era bem assim. Depois que Nick Wilding, historiador da Universidade Estadual da Georgia, descobriu evidências que sugeriam que o manuscrito era falso, a biblioteca investigou e determinou que ele estava certo: a universidade disse na quarta-feira que concluiu que seu precioso manuscrito “é de fato uma falsificação datada do século 20”.

“Foi muito doloroso quando descobrimos que nosso Galileu não era um Galileu de verdade”, disse Donna L. Hayward, reitora interina das bibliotecas da universidade, em entrevista. Mas como o objetivo de qualquer biblioteca é expandir o conhecimento, disse ela, a universidade decidiu ser franca sobre suas descobertas e anunciar publicamente a falsificação. “Varrer as coisas para debaixo do tapete é contrário ao que defendemos”.

Wilding, que está escrevendo uma biografia de Galileu, já tinha denunciado outras falsificações de trabalhos de Galileu, encontrando, por exemplo, evidências de que uma cópia de “Sidereus Nuncius” (Mensageiro Sideral), de 1610, era falsa. Ele suspeitou do manuscrito de Michigan em maio, enquanto examinava uma imagem online do documento. Algumas das formas das letras e escolhas de palavras pareceram estranhas. E, mesmo que a parte superior e inferior supostamente tivessem sido escritas com meses de diferença, a tinta parecia notavelmente semelhante.

Mesmo que a parte superior e inferior supostamente tivessem sido escritas com meses de diferença, a tinta parecia notavelmente semelhante

“É meio estranho”, disse Wilding. “São, supostamente, dois documentos diferentes numa mesma folha de papel. Por que tudo está exatamente na mesma cor?”

Wilding, que ministra um curso de verão sobre falsificação na Rare Book School da Universidade da Virgínia, começou a pesquisar o documento de Michigan e descobriu que não havia registro dele nos arquivos italianos. O documento apareceu pela primeira vez em um leilão no ano de 1934, quando foi comprado por um empresário de Detroit e doado à universidade em 1938, após sua morte. Wilding enviou um e-mail à biblioteca em maio para pedir mais informações sobre a proveniência e solicitar uma imagem da marca d’água do documento – uma insígnia visível que, quando colocada na luz, pode indicar onde e quando o papel foi feito.

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Pablo Alvarez, curador do Centro de Pesquisa de Coleções Especiais da biblioteca, lembrou-se da sensação de tristeza que sentiu quando viu o nome de Wilding no e-mail, sabendo de sua reputação de desmascarar falsificações. Ele recuperou o documento do armazenamento e fotografou sua marca d’água, um círculo com um trevo de três folhas e o monograma “AS/BMO”.

As estátuas de bronze de Galileu e Newton, famosos por suas teorias que revolucionaram a ciência  Foto: Essdras M Suarez/WashingtonPost

A informação sobre a proveniência levantou bandeiras vermelhas: o catálogo do leilão dizia que o documento fora autenticado pelo cardeal Pietro Maffi, arcebispo de Pisa, na Itália, que morreu em 1931. Ele o comparara a dois autógrafos de Galileu em sua coleção. Esses documentos, descobriu Wilding, foram dados a ele por Tobia Nicotra – notório falsificador do século 20 em Milão.

“Assim que ouvi a palavra ‘Nicotra’, meu ‘sentido aranha’ despertou”, disse Wilding.

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Alvarez levou o documento ao laboratório de conservação de Michigan, onde Amy Crist, conservadora de livros e papel da biblioteca, descobriu que a tinta e o papel eram consistentes com o período – dando a Alvarez um vislumbre de esperança de que fosse autêntico.

A busca de Wilding pelo monograma revelou outro documento de Galileu na Morgan Library & Museum em Nova York, que tinha uma marca d’água ligeiramente diferente com o mesmo monograma. Esse documento, uma carta de 1607 para um destinatário desconhecido, correspondia quase exatamente a uma carta que Wilding descobriu nos arquivos italianos – levantando mais suspeitas.

A atriz Denise Fraga interpretou Galileu no teatro Foto: João Caldas Filho

No início de junho, Wilding havia determinado que “BMO” era uma abreviação para a cidade italiana de Bergamo e encontrado uma obra de referência chamada “The Ancient Paper-Mills of the Former Austro-Hungarian Empire and Their Watermarks” com informações sobre a cidade. Ao que parece, tanto Michigan quanto Morgan tinham cópias. Wilding entrou em contato com Alvarez e Philip S. Palmer, curador-chefe do departamento de manuscritos literários e históricos da biblioteca Morgan, dizendo-lhes que a resposta estava lá.

Correndo para examinar o livro, Alvarez descobriu que a marca d’água na carta da biblioteca Morgan correspondia a documentos que o livro de referência datava de 1790. Alvarez não conseguiu identificar o tipo exato de marca d’água encontrada no manuscrito de Michigan, mas nenhum outro documento com um “AS/BMO” aparecera antes de 1770 – tornando altamente improvável que Galileu pudesse ter usado o papel mais de 150 anos antes.

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Álvarez desanimou. “É isso”, pensou. “Xeque-mate”. Embora o documento de Michigan tivesse sido autenticado por estudiosos de Galileu, ele se sentiu responsável por não o ter desmascarado antes. “A base da ciência é a observação”, disse ele, lamentando não ter “feito o que Galileu fazia”.

Palmer, da biblioteca Morgan, disse em entrevista que aceitava as descobertas de Wilding e que a biblioteca atualizaria seu catálogo para observar que o documento era “até então atribuído a Galileu”.

Em sua pesquisa sobre Nicotra, Wilding descobriu que o italiano teria começado a vender cartas falsas e manuscritos musicais para sustentar sete amantes. Em 1934, uma investigação sobre um duvidoso manuscrito de Mozart levou a polícia a invadir seu apartamento em Milão, onde encontrou uma “fábrica de falsificações”, disse Wilding, com guardas arrancadas de livros antigos e falsificações de Lorenzo de Medici, Cristóvão Colombo e outras figuras históricas.

Estudiosos alertam que provavelmente há outros documentos falsos em coleções esperando para serem descobertos.

“Definitivamente existem mais falsificações por aí”, disse Hannah Marcus, professora associada do departamento de história da ciência de Harvard que está escrevendo com Paula Findlen, da Universidade de Stanford, um livro sobre a correspondência de Galileu. Ela elogiou Wilding pelo trabalho que ele fez ao revelar as falsificações. “Nem tudo deve ser lido com um ar de suspeita”, disse ela, “mas tudo precisa ser lido com um olhar cuidadoso”.

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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