Risco é a menor credibilidade fiscal se somar ao debate da transição do BC, diz ex-diretor do banco


Para Bruno Serra, hoje gestor de fundos do Itaú Unibanco, o problema é se as expectativas de inflação forem afetadas pela perda de credibilidade na condução da política fiscal, mesmo com um cenário inflacionário benigno, além da mudança na presidência do BC

Por Eduardo Laguna e Renata Pedini
Atualização:
Foto: Hélvio Romero/Estadão
Entrevista comBruno Serraex-diretor de Política Monetária do Banco Central

Ex-diretor de Política Monetária do Banco Central (BC), Bruno Serra avalia que a mudança da meta, colocada pelo próprio governo, de zerar o déficit das contas públicas no ano que vem, entrou em pauta antes do esperado por conta da dificuldade do Planalto de conseguir as receitas adicionais necessárias ao objetivo.

O problema, frisa em entrevista ao Estadão/Broadcast, é o País perder credibilidade na condução da política fiscal, ao mesmo tempo que se avizinha o debate sobre a sucessão no BC, cujos riscos introduzem um prêmio nas expectativas de inflação, já que o presidente do banco, Roberto Campos Neto, caminha ao último ano do mandato.

”Apesar de eu ser mais conservador com juros, a nossa visão é de que a inflação é muito benigna no curto prazo; só que o mercado está pagando um prêmio pela transição do Banco Central”, diz Bruno Serra, que, após concluir quarentena, está de volta ao Itaú Unibanco, onde assumiu a gestão da família de fundos Janeiro na Itaú Asset. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

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Como o sr. está acompanhando a pressão para mudar a meta fiscal?

Sim, a discussão entrou na pauta agora, antes do que a maioria dos analistas esperava, que seria no ano que vem, quando se discutiria a necessidade de contingenciar (bloquear de forma preventina) gastos. Para o governo, como já está ficando provável que não se conseguirá toda a receita extraordinária para fazer um resultado primário zero, parece que a preferência está sendo de ajustar a meta agora, dada a dificuldade em cortar gastos. Esse é o caminho mais provável. Teria sido muito importante que um contingenciamento fosse feito, sendo consistente com a meta fiscal inicial, de déficit primário zero. Mesmo que a mudança de meta no curto prazo não gere uma reação tão negativa como alguns esperavam, o risco ao longo do ano que vem é essa menor credibilidade na condução da política fiscal se somar ao debate da transição do Banco Central. Então, você poderá ter dois dos alicerces do tripé macroeconômico sendo questionados (metas de inflação e contas públicas).

Pode ter também o terceiro pilar, o câmbio, afetado, até pelo contexto internacional? Seria o pior dos mundos?

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Sim, sem dúvida. Pode ter. Mas esse não está sob controle nem do Executivo nem do Banco Central. O que o Banco Central pode fazer é ser um pouco mais cauteloso nas sinalizações conforme a Selic se aproximar de 11% (ao ano). Acho que seria bem-vindo para garantir que o terceiro pilar também não sofra. Mas o fato é que não está totalmente sob o controle dele. Tem vezes que o risco sobe tanto, a volatilidade do mercado internacional sobe tanto, que o câmbio sofre, mesmo com o BC sendo cauteloso. Já aconteceu várias vezes.

Quando o sr. fala em cautela com a taxa perto de 11%, seria apenas uma sinalização?

Pode ser que sejam mantidos os cortes de 0,50 ponto porcentual até a taxa chegar a 11%, mas você precisa começar a não dar sinalizações tão explícitas (sobre a manutenção do ritmo).

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Como o sr. responde às críticas feitas ao Banco Central por ter cortado a Selic a 2% para, depois, manter a taxa em 13,75% por tanto tempo?

Sem nenhum impacto de pandemia na conta, já vínhamos cortando os juros para 4,25%. Quando o Roberto (Campos Neto, presidente) assumiu (em fevereiro de 2019), a taxa era de 6,5%. A economia, depois de uma recessão que encolheu o Produto Interno Bruto (PIB) entre 6% e 7% em dois anos (2015 e 2016), tinha crescido menos de 2% em 2018 e estava em desaceleração, com preços das commodities caindo, o que é ruim para o Brasil, e as expectativas de inflação também caindo para abaixo da meta nos prazos mais longos. O diagnóstico era cortar juros.

Aí veio a pandemia...

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E o que você faz na pandemia? No primeiro momento da pandemia, as expectativas de inflação caíram e o juro lá fora foi para zero de novo. O que você faz? Alguma coisa tinha de cortar. Tinha muita gente na época defendendo cortar para perto de zero. Se lembrarem bem, 2% era um nível em que, naquele contexto, a inflação projetada continuava abaixo da meta. Vamos também lembrar que as coisas aconteceram muito rápido na pandemia. O governo mandou um auxílio (emergencial) de R$ 200, que numa tarde virou R$ 400, e depois virou R$ 600. Isso faz toda a diferença para a demanda agregada. Era só por dois meses, mas o auxílio foi sendo renovado. A verdade é que a realidade mudou muito rápido na pandemia. O ambiente ficou completamente diferente, e não só no Brasil. Se pegarmos as datas em que as coisas aconteceram, vou conseguir defender mais claramente que o Banco Central não errou. No contexto global, a trajetória da inflação brasileira foi melhor do que a de pares. Essa é a prova do pudim. Se a gente errou, errou tanto quanto os outros bancos centrais. Os banqueiros centrais perderam um pouco de credibilidade ao longo da pandemia? Perderam. Todo mundo perdeu um pouco. A inflação subiu em todos os lugares do mundo. O Banco Central brasileiro perdeu mais que os outros? Atuou pior que os outros? Não. Atuou melhor que os outros. Os bancos centrais do mundo todo tiveram de lidar com uma mudança de ambiente muito mais rápido do que conseguiam reagir.

Não dava para antecipar esses estímulos fiscais sem precedentes?

Não. Por definição, a política monetária é uma variável de ajuste. Cabe ao Banco Central garantir que a demanda agregada caiba na oferta agregada, para entregar a meta de inflação, para não deixar a inflação acelerar. Como faz isso? Tem um instrumento: taxa de juros. Tem de levar em consideração todos os vetores que afetam a demanda agregada. Em geral, os outros vetores são lentos, são processos lentos de mudança. O orçamento público você vota um ano. São passos que a gente vislumbra com horizonte razoavelmente longo. Na pandemia, tudo aconteceu em semanas. Em semanas, o déficit foi revisado de 3% para 6%, e depois de algumas semanas, para 9%, e depois para 12%. Isso tudo aconteceu dentro de um ano. Então, não tem como antecipar. Quem antecipa é o mercado financeiro, e às vezes quebra a cara, às vezes se dá bem. Antecipar de banco central é ser cauteloso, ir devagar, isso que é a postura típica de banco central. Antecipar é fazer aposta, e fazer aposta é muito perigoso. Se você errar, erra muito.

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Fim do mandato de Roberto Campos Neto na presidência do Banco Central pode afetar as expectativas  Foto: Alex Silva/Estadão

O sr. está gerindo seus fundos com base em qual cenário?

Houve uma mudança de nível da taxa de juros americana de maio para cá. Tínhamos um ambiente bom em mercados emergentes, com queda da inflação e moedas também performando bem, que fez o mercado meio que ignorar a maior parte desse movimento de alta dos juros dos Treasuries (títulos emitidos pelo Tesouro dos EUA). O diferencial de juros de vários emergentes em relação aos EUA ficou muito estreito, e destaco que o Brasil e o Chile estão neste grupo. Foram dois países que começaram a cortar os juros antes e, por consequência disto, o mercado se empolgou muito. Só que os diferenciais de juros ficaram muito estreitos. Isso, na minha opinião, não aguenta muito tempo.

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O que deve acontecer a partir de agora?

O mercado pode ter um ajuste, seja em razão de uma postura mais cautelosa das autoridades monetárias de cada país, seja pela reação dos bancos centrais à depreciação cambial. Hoje, não tem muita folga de atividade econômica. O desemprego no Brasil, por exemplo, está abaixo de 8%, no Chile está bastante baixo também. O hiato do produto (diferença entre o crescimento real da economia e o seu potencial) não está muito folgado em nenhum lugar do mundo. Depreciações cambiais tendem a gerar impacto na inflação, que vai alimentar o ciclo de juros. No caso do Chile, isso foi muito claro porque o banco central chileno, em seu forward guidance (plano de voo), sinalizou que os juros iriam voltar a um nível que representaria o menor diferencial em relação aos EUA da história. A moeda do Chile começou a depreciar de maneira acelerada, levando o banco central do país, que começou cortando os juros em 100 pontos-base (ou 1 ponto porcentual), a reduzir o passo já na reunião seguinte para 75 e depois para 50 pontos-base no encontro do final de outubro.

A resposta do Banco Central brasileiro é diferente?

O Banco Central brasileiro está mais cauteloso. Sinalizou cortes de 50 pontos-base (0,5 ponto porcentual) até onde o olho enxerga, sem se comprometer muito com o nível em que vai chegar. A Selic está alta, tem espaço mesmo para mais alguns cortes de 50. Parece que a postura está sendo mais conservadora, está sendo mais proativa, ao invés de reativa, como foi o banco central chileno. Isso é bom para não haver uma reversão no ciclo de cortes da Selic. O ciclo acontece mais suave, mas “devagar e sempre”.

O sr. trabalha, então, com qual tendência para os juros nesse contexto?

Apostamos em alta das taxas de mercado, em que o ciclo (de flexibilização monetária) vai ter de ser interrompido mais cedo no Brasil. Acreditamos nisso tanto em relação à taxa de juros nominal, apostando que o ciclo vai acabar mais para 11% do que para 10%, quanto na taxa de juros real (descontada a inflação), apostando que ela vai ser maior do que o mercado está projetando. Os Treasuries (títulos públicos americanos) estão pagando 5% de novo. Não sei onde essa taxa vai estar daqui a um ano, mas será que se estiver em 5% ou mais vai ser bom comprar um juro real brasileiro pagando 6%? Achamos que não. Entendemos que o diferencial de juros entre Brasil e EUA, especialmente no juro real, está muito baixo historicamente. Está muito baixo porque o diferencial de juros nominal também está baixo, o que achamos um erro. E as inflações implícitas nesses títulos estão muito altas.

Qual a explicação para essa inflação implícita tão alta?

A inflação implícita nos títulos brasileiros está no nível do período de 2011 a 2014, quando o Banco Central não conseguiu entregar a meta de inflação, que era de 4,5%. Hoje, a meta de inflação é 3% (aos próximos anos). A desancoragem no Focus, de 3,5% (a partir de 2025) contra 3%, não é grosseira ainda. Mas os títulos de inflação sugerem uma desancoragem grosseira. Isso diz que o mercado está pagando muito pelo risco da transição no Banco Central. Apesar de eu ser mais conservador com juros, a nossa visão é que a inflação é muito benigna no curto prazo, só que o mercado está pagando um prêmio pela transição do Banco Central. Esse prêmio vai ser reduzido se a transição for menos traumática, se começarmos a discutir nomes bons para a substituição do Roberto (Campos Neto, presidente do BC), que sejam bem vistos pelo mercado, que tragam a continuidade da credibilidade que o Banco Central conquistou ao longo dos anos. Esse é o desafio. É um desafio político, de o governo indicar alguém o mais rápido possível.

O sr. enxerga o câmbio em qual patamar até o fim do ano?

Não gosto de fazer previsão, porque vai depender do contexto.

Mas o que representaria um risco para a política monetária?

O Focus projeta a Selic indo até 9%. Não dá para ir até 9%. Seguindo o manual e pelo que o Banco Central tem publicado, pelas últimas projeções, daria para ir, só olhando para o modelo, talvez a uns 9,75%, alguma coisa assim. Quando considero variáveis que o modelo não considera, como por exemplo o juro americano, e quão forte a economia americana tem estado, o que vai drenar liquidez para lá, você corre muito risco de depreciação do câmbio com a Selic abaixo de 10%. Qualquer depreciação, por menor que seja - estou falando em alguma coisa entre 5% e 10% -, já vai jogar essa taxa terminal mais para perto dos 11%. É esse o grande risco. O Banco Central pode ser cauteloso, chegar lá perto dos 11% e depois ir muito devagar.

Seria um ciclo em duas fases…

Sim, pode ir bem devagar a partir dali perto dos 11%, ou pode ter de fazer uma parada se o câmbio reagir mal, esperando o momento de corte de juros pelo Fed (Federal Reserve, o banco central dos EUA) para buscar níveis mais baixos de Selic. Não sei qual vai ser a escolha. O meu palpite para o câmbio vai depender dessa escolha. O real está super defendido, mas o ambiente internacional é muito arisco. Qualquer aumento de volatilidade pode fazer as moedas depreciarem em relação ao dólar, não só o real. Isso pode ser um problema.

A inflação fecha 2023 na meta?

Achamos que vai fechar mais perto de 4,6% ou 4,5%. A dinâmica da inflação corrente até o início do ano que vem vai seguir muito benigna. Industriais têm espaço para cair. Em serviços, está melhor do que quase todo mundo esperava. O câmbio está performando bastante bem. O grande risco é a transição. Se a expectativa começar a desancorar, aí a inflação corrente vai atrás.

Ex-diretor de Política Monetária do Banco Central (BC), Bruno Serra avalia que a mudança da meta, colocada pelo próprio governo, de zerar o déficit das contas públicas no ano que vem, entrou em pauta antes do esperado por conta da dificuldade do Planalto de conseguir as receitas adicionais necessárias ao objetivo.

O problema, frisa em entrevista ao Estadão/Broadcast, é o País perder credibilidade na condução da política fiscal, ao mesmo tempo que se avizinha o debate sobre a sucessão no BC, cujos riscos introduzem um prêmio nas expectativas de inflação, já que o presidente do banco, Roberto Campos Neto, caminha ao último ano do mandato.

”Apesar de eu ser mais conservador com juros, a nossa visão é de que a inflação é muito benigna no curto prazo; só que o mercado está pagando um prêmio pela transição do Banco Central”, diz Bruno Serra, que, após concluir quarentena, está de volta ao Itaú Unibanco, onde assumiu a gestão da família de fundos Janeiro na Itaú Asset. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Como o sr. está acompanhando a pressão para mudar a meta fiscal?

Sim, a discussão entrou na pauta agora, antes do que a maioria dos analistas esperava, que seria no ano que vem, quando se discutiria a necessidade de contingenciar (bloquear de forma preventina) gastos. Para o governo, como já está ficando provável que não se conseguirá toda a receita extraordinária para fazer um resultado primário zero, parece que a preferência está sendo de ajustar a meta agora, dada a dificuldade em cortar gastos. Esse é o caminho mais provável. Teria sido muito importante que um contingenciamento fosse feito, sendo consistente com a meta fiscal inicial, de déficit primário zero. Mesmo que a mudança de meta no curto prazo não gere uma reação tão negativa como alguns esperavam, o risco ao longo do ano que vem é essa menor credibilidade na condução da política fiscal se somar ao debate da transição do Banco Central. Então, você poderá ter dois dos alicerces do tripé macroeconômico sendo questionados (metas de inflação e contas públicas).

Pode ter também o terceiro pilar, o câmbio, afetado, até pelo contexto internacional? Seria o pior dos mundos?

Sim, sem dúvida. Pode ter. Mas esse não está sob controle nem do Executivo nem do Banco Central. O que o Banco Central pode fazer é ser um pouco mais cauteloso nas sinalizações conforme a Selic se aproximar de 11% (ao ano). Acho que seria bem-vindo para garantir que o terceiro pilar também não sofra. Mas o fato é que não está totalmente sob o controle dele. Tem vezes que o risco sobe tanto, a volatilidade do mercado internacional sobe tanto, que o câmbio sofre, mesmo com o BC sendo cauteloso. Já aconteceu várias vezes.

Quando o sr. fala em cautela com a taxa perto de 11%, seria apenas uma sinalização?

Pode ser que sejam mantidos os cortes de 0,50 ponto porcentual até a taxa chegar a 11%, mas você precisa começar a não dar sinalizações tão explícitas (sobre a manutenção do ritmo).

Como o sr. responde às críticas feitas ao Banco Central por ter cortado a Selic a 2% para, depois, manter a taxa em 13,75% por tanto tempo?

Sem nenhum impacto de pandemia na conta, já vínhamos cortando os juros para 4,25%. Quando o Roberto (Campos Neto, presidente) assumiu (em fevereiro de 2019), a taxa era de 6,5%. A economia, depois de uma recessão que encolheu o Produto Interno Bruto (PIB) entre 6% e 7% em dois anos (2015 e 2016), tinha crescido menos de 2% em 2018 e estava em desaceleração, com preços das commodities caindo, o que é ruim para o Brasil, e as expectativas de inflação também caindo para abaixo da meta nos prazos mais longos. O diagnóstico era cortar juros.

Aí veio a pandemia...

E o que você faz na pandemia? No primeiro momento da pandemia, as expectativas de inflação caíram e o juro lá fora foi para zero de novo. O que você faz? Alguma coisa tinha de cortar. Tinha muita gente na época defendendo cortar para perto de zero. Se lembrarem bem, 2% era um nível em que, naquele contexto, a inflação projetada continuava abaixo da meta. Vamos também lembrar que as coisas aconteceram muito rápido na pandemia. O governo mandou um auxílio (emergencial) de R$ 200, que numa tarde virou R$ 400, e depois virou R$ 600. Isso faz toda a diferença para a demanda agregada. Era só por dois meses, mas o auxílio foi sendo renovado. A verdade é que a realidade mudou muito rápido na pandemia. O ambiente ficou completamente diferente, e não só no Brasil. Se pegarmos as datas em que as coisas aconteceram, vou conseguir defender mais claramente que o Banco Central não errou. No contexto global, a trajetória da inflação brasileira foi melhor do que a de pares. Essa é a prova do pudim. Se a gente errou, errou tanto quanto os outros bancos centrais. Os banqueiros centrais perderam um pouco de credibilidade ao longo da pandemia? Perderam. Todo mundo perdeu um pouco. A inflação subiu em todos os lugares do mundo. O Banco Central brasileiro perdeu mais que os outros? Atuou pior que os outros? Não. Atuou melhor que os outros. Os bancos centrais do mundo todo tiveram de lidar com uma mudança de ambiente muito mais rápido do que conseguiam reagir.

Não dava para antecipar esses estímulos fiscais sem precedentes?

Não. Por definição, a política monetária é uma variável de ajuste. Cabe ao Banco Central garantir que a demanda agregada caiba na oferta agregada, para entregar a meta de inflação, para não deixar a inflação acelerar. Como faz isso? Tem um instrumento: taxa de juros. Tem de levar em consideração todos os vetores que afetam a demanda agregada. Em geral, os outros vetores são lentos, são processos lentos de mudança. O orçamento público você vota um ano. São passos que a gente vislumbra com horizonte razoavelmente longo. Na pandemia, tudo aconteceu em semanas. Em semanas, o déficit foi revisado de 3% para 6%, e depois de algumas semanas, para 9%, e depois para 12%. Isso tudo aconteceu dentro de um ano. Então, não tem como antecipar. Quem antecipa é o mercado financeiro, e às vezes quebra a cara, às vezes se dá bem. Antecipar de banco central é ser cauteloso, ir devagar, isso que é a postura típica de banco central. Antecipar é fazer aposta, e fazer aposta é muito perigoso. Se você errar, erra muito.

Fim do mandato de Roberto Campos Neto na presidência do Banco Central pode afetar as expectativas  Foto: Alex Silva/Estadão

O sr. está gerindo seus fundos com base em qual cenário?

Houve uma mudança de nível da taxa de juros americana de maio para cá. Tínhamos um ambiente bom em mercados emergentes, com queda da inflação e moedas também performando bem, que fez o mercado meio que ignorar a maior parte desse movimento de alta dos juros dos Treasuries (títulos emitidos pelo Tesouro dos EUA). O diferencial de juros de vários emergentes em relação aos EUA ficou muito estreito, e destaco que o Brasil e o Chile estão neste grupo. Foram dois países que começaram a cortar os juros antes e, por consequência disto, o mercado se empolgou muito. Só que os diferenciais de juros ficaram muito estreitos. Isso, na minha opinião, não aguenta muito tempo.

O que deve acontecer a partir de agora?

O mercado pode ter um ajuste, seja em razão de uma postura mais cautelosa das autoridades monetárias de cada país, seja pela reação dos bancos centrais à depreciação cambial. Hoje, não tem muita folga de atividade econômica. O desemprego no Brasil, por exemplo, está abaixo de 8%, no Chile está bastante baixo também. O hiato do produto (diferença entre o crescimento real da economia e o seu potencial) não está muito folgado em nenhum lugar do mundo. Depreciações cambiais tendem a gerar impacto na inflação, que vai alimentar o ciclo de juros. No caso do Chile, isso foi muito claro porque o banco central chileno, em seu forward guidance (plano de voo), sinalizou que os juros iriam voltar a um nível que representaria o menor diferencial em relação aos EUA da história. A moeda do Chile começou a depreciar de maneira acelerada, levando o banco central do país, que começou cortando os juros em 100 pontos-base (ou 1 ponto porcentual), a reduzir o passo já na reunião seguinte para 75 e depois para 50 pontos-base no encontro do final de outubro.

A resposta do Banco Central brasileiro é diferente?

O Banco Central brasileiro está mais cauteloso. Sinalizou cortes de 50 pontos-base (0,5 ponto porcentual) até onde o olho enxerga, sem se comprometer muito com o nível em que vai chegar. A Selic está alta, tem espaço mesmo para mais alguns cortes de 50. Parece que a postura está sendo mais conservadora, está sendo mais proativa, ao invés de reativa, como foi o banco central chileno. Isso é bom para não haver uma reversão no ciclo de cortes da Selic. O ciclo acontece mais suave, mas “devagar e sempre”.

O sr. trabalha, então, com qual tendência para os juros nesse contexto?

Apostamos em alta das taxas de mercado, em que o ciclo (de flexibilização monetária) vai ter de ser interrompido mais cedo no Brasil. Acreditamos nisso tanto em relação à taxa de juros nominal, apostando que o ciclo vai acabar mais para 11% do que para 10%, quanto na taxa de juros real (descontada a inflação), apostando que ela vai ser maior do que o mercado está projetando. Os Treasuries (títulos públicos americanos) estão pagando 5% de novo. Não sei onde essa taxa vai estar daqui a um ano, mas será que se estiver em 5% ou mais vai ser bom comprar um juro real brasileiro pagando 6%? Achamos que não. Entendemos que o diferencial de juros entre Brasil e EUA, especialmente no juro real, está muito baixo historicamente. Está muito baixo porque o diferencial de juros nominal também está baixo, o que achamos um erro. E as inflações implícitas nesses títulos estão muito altas.

Qual a explicação para essa inflação implícita tão alta?

A inflação implícita nos títulos brasileiros está no nível do período de 2011 a 2014, quando o Banco Central não conseguiu entregar a meta de inflação, que era de 4,5%. Hoje, a meta de inflação é 3% (aos próximos anos). A desancoragem no Focus, de 3,5% (a partir de 2025) contra 3%, não é grosseira ainda. Mas os títulos de inflação sugerem uma desancoragem grosseira. Isso diz que o mercado está pagando muito pelo risco da transição no Banco Central. Apesar de eu ser mais conservador com juros, a nossa visão é que a inflação é muito benigna no curto prazo, só que o mercado está pagando um prêmio pela transição do Banco Central. Esse prêmio vai ser reduzido se a transição for menos traumática, se começarmos a discutir nomes bons para a substituição do Roberto (Campos Neto, presidente do BC), que sejam bem vistos pelo mercado, que tragam a continuidade da credibilidade que o Banco Central conquistou ao longo dos anos. Esse é o desafio. É um desafio político, de o governo indicar alguém o mais rápido possível.

O sr. enxerga o câmbio em qual patamar até o fim do ano?

Não gosto de fazer previsão, porque vai depender do contexto.

Mas o que representaria um risco para a política monetária?

O Focus projeta a Selic indo até 9%. Não dá para ir até 9%. Seguindo o manual e pelo que o Banco Central tem publicado, pelas últimas projeções, daria para ir, só olhando para o modelo, talvez a uns 9,75%, alguma coisa assim. Quando considero variáveis que o modelo não considera, como por exemplo o juro americano, e quão forte a economia americana tem estado, o que vai drenar liquidez para lá, você corre muito risco de depreciação do câmbio com a Selic abaixo de 10%. Qualquer depreciação, por menor que seja - estou falando em alguma coisa entre 5% e 10% -, já vai jogar essa taxa terminal mais para perto dos 11%. É esse o grande risco. O Banco Central pode ser cauteloso, chegar lá perto dos 11% e depois ir muito devagar.

Seria um ciclo em duas fases…

Sim, pode ir bem devagar a partir dali perto dos 11%, ou pode ter de fazer uma parada se o câmbio reagir mal, esperando o momento de corte de juros pelo Fed (Federal Reserve, o banco central dos EUA) para buscar níveis mais baixos de Selic. Não sei qual vai ser a escolha. O meu palpite para o câmbio vai depender dessa escolha. O real está super defendido, mas o ambiente internacional é muito arisco. Qualquer aumento de volatilidade pode fazer as moedas depreciarem em relação ao dólar, não só o real. Isso pode ser um problema.

A inflação fecha 2023 na meta?

Achamos que vai fechar mais perto de 4,6% ou 4,5%. A dinâmica da inflação corrente até o início do ano que vem vai seguir muito benigna. Industriais têm espaço para cair. Em serviços, está melhor do que quase todo mundo esperava. O câmbio está performando bastante bem. O grande risco é a transição. Se a expectativa começar a desancorar, aí a inflação corrente vai atrás.

Ex-diretor de Política Monetária do Banco Central (BC), Bruno Serra avalia que a mudança da meta, colocada pelo próprio governo, de zerar o déficit das contas públicas no ano que vem, entrou em pauta antes do esperado por conta da dificuldade do Planalto de conseguir as receitas adicionais necessárias ao objetivo.

O problema, frisa em entrevista ao Estadão/Broadcast, é o País perder credibilidade na condução da política fiscal, ao mesmo tempo que se avizinha o debate sobre a sucessão no BC, cujos riscos introduzem um prêmio nas expectativas de inflação, já que o presidente do banco, Roberto Campos Neto, caminha ao último ano do mandato.

”Apesar de eu ser mais conservador com juros, a nossa visão é de que a inflação é muito benigna no curto prazo; só que o mercado está pagando um prêmio pela transição do Banco Central”, diz Bruno Serra, que, após concluir quarentena, está de volta ao Itaú Unibanco, onde assumiu a gestão da família de fundos Janeiro na Itaú Asset. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Como o sr. está acompanhando a pressão para mudar a meta fiscal?

Sim, a discussão entrou na pauta agora, antes do que a maioria dos analistas esperava, que seria no ano que vem, quando se discutiria a necessidade de contingenciar (bloquear de forma preventina) gastos. Para o governo, como já está ficando provável que não se conseguirá toda a receita extraordinária para fazer um resultado primário zero, parece que a preferência está sendo de ajustar a meta agora, dada a dificuldade em cortar gastos. Esse é o caminho mais provável. Teria sido muito importante que um contingenciamento fosse feito, sendo consistente com a meta fiscal inicial, de déficit primário zero. Mesmo que a mudança de meta no curto prazo não gere uma reação tão negativa como alguns esperavam, o risco ao longo do ano que vem é essa menor credibilidade na condução da política fiscal se somar ao debate da transição do Banco Central. Então, você poderá ter dois dos alicerces do tripé macroeconômico sendo questionados (metas de inflação e contas públicas).

Pode ter também o terceiro pilar, o câmbio, afetado, até pelo contexto internacional? Seria o pior dos mundos?

Sim, sem dúvida. Pode ter. Mas esse não está sob controle nem do Executivo nem do Banco Central. O que o Banco Central pode fazer é ser um pouco mais cauteloso nas sinalizações conforme a Selic se aproximar de 11% (ao ano). Acho que seria bem-vindo para garantir que o terceiro pilar também não sofra. Mas o fato é que não está totalmente sob o controle dele. Tem vezes que o risco sobe tanto, a volatilidade do mercado internacional sobe tanto, que o câmbio sofre, mesmo com o BC sendo cauteloso. Já aconteceu várias vezes.

Quando o sr. fala em cautela com a taxa perto de 11%, seria apenas uma sinalização?

Pode ser que sejam mantidos os cortes de 0,50 ponto porcentual até a taxa chegar a 11%, mas você precisa começar a não dar sinalizações tão explícitas (sobre a manutenção do ritmo).

Como o sr. responde às críticas feitas ao Banco Central por ter cortado a Selic a 2% para, depois, manter a taxa em 13,75% por tanto tempo?

Sem nenhum impacto de pandemia na conta, já vínhamos cortando os juros para 4,25%. Quando o Roberto (Campos Neto, presidente) assumiu (em fevereiro de 2019), a taxa era de 6,5%. A economia, depois de uma recessão que encolheu o Produto Interno Bruto (PIB) entre 6% e 7% em dois anos (2015 e 2016), tinha crescido menos de 2% em 2018 e estava em desaceleração, com preços das commodities caindo, o que é ruim para o Brasil, e as expectativas de inflação também caindo para abaixo da meta nos prazos mais longos. O diagnóstico era cortar juros.

Aí veio a pandemia...

E o que você faz na pandemia? No primeiro momento da pandemia, as expectativas de inflação caíram e o juro lá fora foi para zero de novo. O que você faz? Alguma coisa tinha de cortar. Tinha muita gente na época defendendo cortar para perto de zero. Se lembrarem bem, 2% era um nível em que, naquele contexto, a inflação projetada continuava abaixo da meta. Vamos também lembrar que as coisas aconteceram muito rápido na pandemia. O governo mandou um auxílio (emergencial) de R$ 200, que numa tarde virou R$ 400, e depois virou R$ 600. Isso faz toda a diferença para a demanda agregada. Era só por dois meses, mas o auxílio foi sendo renovado. A verdade é que a realidade mudou muito rápido na pandemia. O ambiente ficou completamente diferente, e não só no Brasil. Se pegarmos as datas em que as coisas aconteceram, vou conseguir defender mais claramente que o Banco Central não errou. No contexto global, a trajetória da inflação brasileira foi melhor do que a de pares. Essa é a prova do pudim. Se a gente errou, errou tanto quanto os outros bancos centrais. Os banqueiros centrais perderam um pouco de credibilidade ao longo da pandemia? Perderam. Todo mundo perdeu um pouco. A inflação subiu em todos os lugares do mundo. O Banco Central brasileiro perdeu mais que os outros? Atuou pior que os outros? Não. Atuou melhor que os outros. Os bancos centrais do mundo todo tiveram de lidar com uma mudança de ambiente muito mais rápido do que conseguiam reagir.

Não dava para antecipar esses estímulos fiscais sem precedentes?

Não. Por definição, a política monetária é uma variável de ajuste. Cabe ao Banco Central garantir que a demanda agregada caiba na oferta agregada, para entregar a meta de inflação, para não deixar a inflação acelerar. Como faz isso? Tem um instrumento: taxa de juros. Tem de levar em consideração todos os vetores que afetam a demanda agregada. Em geral, os outros vetores são lentos, são processos lentos de mudança. O orçamento público você vota um ano. São passos que a gente vislumbra com horizonte razoavelmente longo. Na pandemia, tudo aconteceu em semanas. Em semanas, o déficit foi revisado de 3% para 6%, e depois de algumas semanas, para 9%, e depois para 12%. Isso tudo aconteceu dentro de um ano. Então, não tem como antecipar. Quem antecipa é o mercado financeiro, e às vezes quebra a cara, às vezes se dá bem. Antecipar de banco central é ser cauteloso, ir devagar, isso que é a postura típica de banco central. Antecipar é fazer aposta, e fazer aposta é muito perigoso. Se você errar, erra muito.

Fim do mandato de Roberto Campos Neto na presidência do Banco Central pode afetar as expectativas  Foto: Alex Silva/Estadão

O sr. está gerindo seus fundos com base em qual cenário?

Houve uma mudança de nível da taxa de juros americana de maio para cá. Tínhamos um ambiente bom em mercados emergentes, com queda da inflação e moedas também performando bem, que fez o mercado meio que ignorar a maior parte desse movimento de alta dos juros dos Treasuries (títulos emitidos pelo Tesouro dos EUA). O diferencial de juros de vários emergentes em relação aos EUA ficou muito estreito, e destaco que o Brasil e o Chile estão neste grupo. Foram dois países que começaram a cortar os juros antes e, por consequência disto, o mercado se empolgou muito. Só que os diferenciais de juros ficaram muito estreitos. Isso, na minha opinião, não aguenta muito tempo.

O que deve acontecer a partir de agora?

O mercado pode ter um ajuste, seja em razão de uma postura mais cautelosa das autoridades monetárias de cada país, seja pela reação dos bancos centrais à depreciação cambial. Hoje, não tem muita folga de atividade econômica. O desemprego no Brasil, por exemplo, está abaixo de 8%, no Chile está bastante baixo também. O hiato do produto (diferença entre o crescimento real da economia e o seu potencial) não está muito folgado em nenhum lugar do mundo. Depreciações cambiais tendem a gerar impacto na inflação, que vai alimentar o ciclo de juros. No caso do Chile, isso foi muito claro porque o banco central chileno, em seu forward guidance (plano de voo), sinalizou que os juros iriam voltar a um nível que representaria o menor diferencial em relação aos EUA da história. A moeda do Chile começou a depreciar de maneira acelerada, levando o banco central do país, que começou cortando os juros em 100 pontos-base (ou 1 ponto porcentual), a reduzir o passo já na reunião seguinte para 75 e depois para 50 pontos-base no encontro do final de outubro.

A resposta do Banco Central brasileiro é diferente?

O Banco Central brasileiro está mais cauteloso. Sinalizou cortes de 50 pontos-base (0,5 ponto porcentual) até onde o olho enxerga, sem se comprometer muito com o nível em que vai chegar. A Selic está alta, tem espaço mesmo para mais alguns cortes de 50. Parece que a postura está sendo mais conservadora, está sendo mais proativa, ao invés de reativa, como foi o banco central chileno. Isso é bom para não haver uma reversão no ciclo de cortes da Selic. O ciclo acontece mais suave, mas “devagar e sempre”.

O sr. trabalha, então, com qual tendência para os juros nesse contexto?

Apostamos em alta das taxas de mercado, em que o ciclo (de flexibilização monetária) vai ter de ser interrompido mais cedo no Brasil. Acreditamos nisso tanto em relação à taxa de juros nominal, apostando que o ciclo vai acabar mais para 11% do que para 10%, quanto na taxa de juros real (descontada a inflação), apostando que ela vai ser maior do que o mercado está projetando. Os Treasuries (títulos públicos americanos) estão pagando 5% de novo. Não sei onde essa taxa vai estar daqui a um ano, mas será que se estiver em 5% ou mais vai ser bom comprar um juro real brasileiro pagando 6%? Achamos que não. Entendemos que o diferencial de juros entre Brasil e EUA, especialmente no juro real, está muito baixo historicamente. Está muito baixo porque o diferencial de juros nominal também está baixo, o que achamos um erro. E as inflações implícitas nesses títulos estão muito altas.

Qual a explicação para essa inflação implícita tão alta?

A inflação implícita nos títulos brasileiros está no nível do período de 2011 a 2014, quando o Banco Central não conseguiu entregar a meta de inflação, que era de 4,5%. Hoje, a meta de inflação é 3% (aos próximos anos). A desancoragem no Focus, de 3,5% (a partir de 2025) contra 3%, não é grosseira ainda. Mas os títulos de inflação sugerem uma desancoragem grosseira. Isso diz que o mercado está pagando muito pelo risco da transição no Banco Central. Apesar de eu ser mais conservador com juros, a nossa visão é que a inflação é muito benigna no curto prazo, só que o mercado está pagando um prêmio pela transição do Banco Central. Esse prêmio vai ser reduzido se a transição for menos traumática, se começarmos a discutir nomes bons para a substituição do Roberto (Campos Neto, presidente do BC), que sejam bem vistos pelo mercado, que tragam a continuidade da credibilidade que o Banco Central conquistou ao longo dos anos. Esse é o desafio. É um desafio político, de o governo indicar alguém o mais rápido possível.

O sr. enxerga o câmbio em qual patamar até o fim do ano?

Não gosto de fazer previsão, porque vai depender do contexto.

Mas o que representaria um risco para a política monetária?

O Focus projeta a Selic indo até 9%. Não dá para ir até 9%. Seguindo o manual e pelo que o Banco Central tem publicado, pelas últimas projeções, daria para ir, só olhando para o modelo, talvez a uns 9,75%, alguma coisa assim. Quando considero variáveis que o modelo não considera, como por exemplo o juro americano, e quão forte a economia americana tem estado, o que vai drenar liquidez para lá, você corre muito risco de depreciação do câmbio com a Selic abaixo de 10%. Qualquer depreciação, por menor que seja - estou falando em alguma coisa entre 5% e 10% -, já vai jogar essa taxa terminal mais para perto dos 11%. É esse o grande risco. O Banco Central pode ser cauteloso, chegar lá perto dos 11% e depois ir muito devagar.

Seria um ciclo em duas fases…

Sim, pode ir bem devagar a partir dali perto dos 11%, ou pode ter de fazer uma parada se o câmbio reagir mal, esperando o momento de corte de juros pelo Fed (Federal Reserve, o banco central dos EUA) para buscar níveis mais baixos de Selic. Não sei qual vai ser a escolha. O meu palpite para o câmbio vai depender dessa escolha. O real está super defendido, mas o ambiente internacional é muito arisco. Qualquer aumento de volatilidade pode fazer as moedas depreciarem em relação ao dólar, não só o real. Isso pode ser um problema.

A inflação fecha 2023 na meta?

Achamos que vai fechar mais perto de 4,6% ou 4,5%. A dinâmica da inflação corrente até o início do ano que vem vai seguir muito benigna. Industriais têm espaço para cair. Em serviços, está melhor do que quase todo mundo esperava. O câmbio está performando bastante bem. O grande risco é a transição. Se a expectativa começar a desancorar, aí a inflação corrente vai atrás.

Ex-diretor de Política Monetária do Banco Central (BC), Bruno Serra avalia que a mudança da meta, colocada pelo próprio governo, de zerar o déficit das contas públicas no ano que vem, entrou em pauta antes do esperado por conta da dificuldade do Planalto de conseguir as receitas adicionais necessárias ao objetivo.

O problema, frisa em entrevista ao Estadão/Broadcast, é o País perder credibilidade na condução da política fiscal, ao mesmo tempo que se avizinha o debate sobre a sucessão no BC, cujos riscos introduzem um prêmio nas expectativas de inflação, já que o presidente do banco, Roberto Campos Neto, caminha ao último ano do mandato.

”Apesar de eu ser mais conservador com juros, a nossa visão é de que a inflação é muito benigna no curto prazo; só que o mercado está pagando um prêmio pela transição do Banco Central”, diz Bruno Serra, que, após concluir quarentena, está de volta ao Itaú Unibanco, onde assumiu a gestão da família de fundos Janeiro na Itaú Asset. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Como o sr. está acompanhando a pressão para mudar a meta fiscal?

Sim, a discussão entrou na pauta agora, antes do que a maioria dos analistas esperava, que seria no ano que vem, quando se discutiria a necessidade de contingenciar (bloquear de forma preventina) gastos. Para o governo, como já está ficando provável que não se conseguirá toda a receita extraordinária para fazer um resultado primário zero, parece que a preferência está sendo de ajustar a meta agora, dada a dificuldade em cortar gastos. Esse é o caminho mais provável. Teria sido muito importante que um contingenciamento fosse feito, sendo consistente com a meta fiscal inicial, de déficit primário zero. Mesmo que a mudança de meta no curto prazo não gere uma reação tão negativa como alguns esperavam, o risco ao longo do ano que vem é essa menor credibilidade na condução da política fiscal se somar ao debate da transição do Banco Central. Então, você poderá ter dois dos alicerces do tripé macroeconômico sendo questionados (metas de inflação e contas públicas).

Pode ter também o terceiro pilar, o câmbio, afetado, até pelo contexto internacional? Seria o pior dos mundos?

Sim, sem dúvida. Pode ter. Mas esse não está sob controle nem do Executivo nem do Banco Central. O que o Banco Central pode fazer é ser um pouco mais cauteloso nas sinalizações conforme a Selic se aproximar de 11% (ao ano). Acho que seria bem-vindo para garantir que o terceiro pilar também não sofra. Mas o fato é que não está totalmente sob o controle dele. Tem vezes que o risco sobe tanto, a volatilidade do mercado internacional sobe tanto, que o câmbio sofre, mesmo com o BC sendo cauteloso. Já aconteceu várias vezes.

Quando o sr. fala em cautela com a taxa perto de 11%, seria apenas uma sinalização?

Pode ser que sejam mantidos os cortes de 0,50 ponto porcentual até a taxa chegar a 11%, mas você precisa começar a não dar sinalizações tão explícitas (sobre a manutenção do ritmo).

Como o sr. responde às críticas feitas ao Banco Central por ter cortado a Selic a 2% para, depois, manter a taxa em 13,75% por tanto tempo?

Sem nenhum impacto de pandemia na conta, já vínhamos cortando os juros para 4,25%. Quando o Roberto (Campos Neto, presidente) assumiu (em fevereiro de 2019), a taxa era de 6,5%. A economia, depois de uma recessão que encolheu o Produto Interno Bruto (PIB) entre 6% e 7% em dois anos (2015 e 2016), tinha crescido menos de 2% em 2018 e estava em desaceleração, com preços das commodities caindo, o que é ruim para o Brasil, e as expectativas de inflação também caindo para abaixo da meta nos prazos mais longos. O diagnóstico era cortar juros.

Aí veio a pandemia...

E o que você faz na pandemia? No primeiro momento da pandemia, as expectativas de inflação caíram e o juro lá fora foi para zero de novo. O que você faz? Alguma coisa tinha de cortar. Tinha muita gente na época defendendo cortar para perto de zero. Se lembrarem bem, 2% era um nível em que, naquele contexto, a inflação projetada continuava abaixo da meta. Vamos também lembrar que as coisas aconteceram muito rápido na pandemia. O governo mandou um auxílio (emergencial) de R$ 200, que numa tarde virou R$ 400, e depois virou R$ 600. Isso faz toda a diferença para a demanda agregada. Era só por dois meses, mas o auxílio foi sendo renovado. A verdade é que a realidade mudou muito rápido na pandemia. O ambiente ficou completamente diferente, e não só no Brasil. Se pegarmos as datas em que as coisas aconteceram, vou conseguir defender mais claramente que o Banco Central não errou. No contexto global, a trajetória da inflação brasileira foi melhor do que a de pares. Essa é a prova do pudim. Se a gente errou, errou tanto quanto os outros bancos centrais. Os banqueiros centrais perderam um pouco de credibilidade ao longo da pandemia? Perderam. Todo mundo perdeu um pouco. A inflação subiu em todos os lugares do mundo. O Banco Central brasileiro perdeu mais que os outros? Atuou pior que os outros? Não. Atuou melhor que os outros. Os bancos centrais do mundo todo tiveram de lidar com uma mudança de ambiente muito mais rápido do que conseguiam reagir.

Não dava para antecipar esses estímulos fiscais sem precedentes?

Não. Por definição, a política monetária é uma variável de ajuste. Cabe ao Banco Central garantir que a demanda agregada caiba na oferta agregada, para entregar a meta de inflação, para não deixar a inflação acelerar. Como faz isso? Tem um instrumento: taxa de juros. Tem de levar em consideração todos os vetores que afetam a demanda agregada. Em geral, os outros vetores são lentos, são processos lentos de mudança. O orçamento público você vota um ano. São passos que a gente vislumbra com horizonte razoavelmente longo. Na pandemia, tudo aconteceu em semanas. Em semanas, o déficit foi revisado de 3% para 6%, e depois de algumas semanas, para 9%, e depois para 12%. Isso tudo aconteceu dentro de um ano. Então, não tem como antecipar. Quem antecipa é o mercado financeiro, e às vezes quebra a cara, às vezes se dá bem. Antecipar de banco central é ser cauteloso, ir devagar, isso que é a postura típica de banco central. Antecipar é fazer aposta, e fazer aposta é muito perigoso. Se você errar, erra muito.

Fim do mandato de Roberto Campos Neto na presidência do Banco Central pode afetar as expectativas  Foto: Alex Silva/Estadão

O sr. está gerindo seus fundos com base em qual cenário?

Houve uma mudança de nível da taxa de juros americana de maio para cá. Tínhamos um ambiente bom em mercados emergentes, com queda da inflação e moedas também performando bem, que fez o mercado meio que ignorar a maior parte desse movimento de alta dos juros dos Treasuries (títulos emitidos pelo Tesouro dos EUA). O diferencial de juros de vários emergentes em relação aos EUA ficou muito estreito, e destaco que o Brasil e o Chile estão neste grupo. Foram dois países que começaram a cortar os juros antes e, por consequência disto, o mercado se empolgou muito. Só que os diferenciais de juros ficaram muito estreitos. Isso, na minha opinião, não aguenta muito tempo.

O que deve acontecer a partir de agora?

O mercado pode ter um ajuste, seja em razão de uma postura mais cautelosa das autoridades monetárias de cada país, seja pela reação dos bancos centrais à depreciação cambial. Hoje, não tem muita folga de atividade econômica. O desemprego no Brasil, por exemplo, está abaixo de 8%, no Chile está bastante baixo também. O hiato do produto (diferença entre o crescimento real da economia e o seu potencial) não está muito folgado em nenhum lugar do mundo. Depreciações cambiais tendem a gerar impacto na inflação, que vai alimentar o ciclo de juros. No caso do Chile, isso foi muito claro porque o banco central chileno, em seu forward guidance (plano de voo), sinalizou que os juros iriam voltar a um nível que representaria o menor diferencial em relação aos EUA da história. A moeda do Chile começou a depreciar de maneira acelerada, levando o banco central do país, que começou cortando os juros em 100 pontos-base (ou 1 ponto porcentual), a reduzir o passo já na reunião seguinte para 75 e depois para 50 pontos-base no encontro do final de outubro.

A resposta do Banco Central brasileiro é diferente?

O Banco Central brasileiro está mais cauteloso. Sinalizou cortes de 50 pontos-base (0,5 ponto porcentual) até onde o olho enxerga, sem se comprometer muito com o nível em que vai chegar. A Selic está alta, tem espaço mesmo para mais alguns cortes de 50. Parece que a postura está sendo mais conservadora, está sendo mais proativa, ao invés de reativa, como foi o banco central chileno. Isso é bom para não haver uma reversão no ciclo de cortes da Selic. O ciclo acontece mais suave, mas “devagar e sempre”.

O sr. trabalha, então, com qual tendência para os juros nesse contexto?

Apostamos em alta das taxas de mercado, em que o ciclo (de flexibilização monetária) vai ter de ser interrompido mais cedo no Brasil. Acreditamos nisso tanto em relação à taxa de juros nominal, apostando que o ciclo vai acabar mais para 11% do que para 10%, quanto na taxa de juros real (descontada a inflação), apostando que ela vai ser maior do que o mercado está projetando. Os Treasuries (títulos públicos americanos) estão pagando 5% de novo. Não sei onde essa taxa vai estar daqui a um ano, mas será que se estiver em 5% ou mais vai ser bom comprar um juro real brasileiro pagando 6%? Achamos que não. Entendemos que o diferencial de juros entre Brasil e EUA, especialmente no juro real, está muito baixo historicamente. Está muito baixo porque o diferencial de juros nominal também está baixo, o que achamos um erro. E as inflações implícitas nesses títulos estão muito altas.

Qual a explicação para essa inflação implícita tão alta?

A inflação implícita nos títulos brasileiros está no nível do período de 2011 a 2014, quando o Banco Central não conseguiu entregar a meta de inflação, que era de 4,5%. Hoje, a meta de inflação é 3% (aos próximos anos). A desancoragem no Focus, de 3,5% (a partir de 2025) contra 3%, não é grosseira ainda. Mas os títulos de inflação sugerem uma desancoragem grosseira. Isso diz que o mercado está pagando muito pelo risco da transição no Banco Central. Apesar de eu ser mais conservador com juros, a nossa visão é que a inflação é muito benigna no curto prazo, só que o mercado está pagando um prêmio pela transição do Banco Central. Esse prêmio vai ser reduzido se a transição for menos traumática, se começarmos a discutir nomes bons para a substituição do Roberto (Campos Neto, presidente do BC), que sejam bem vistos pelo mercado, que tragam a continuidade da credibilidade que o Banco Central conquistou ao longo dos anos. Esse é o desafio. É um desafio político, de o governo indicar alguém o mais rápido possível.

O sr. enxerga o câmbio em qual patamar até o fim do ano?

Não gosto de fazer previsão, porque vai depender do contexto.

Mas o que representaria um risco para a política monetária?

O Focus projeta a Selic indo até 9%. Não dá para ir até 9%. Seguindo o manual e pelo que o Banco Central tem publicado, pelas últimas projeções, daria para ir, só olhando para o modelo, talvez a uns 9,75%, alguma coisa assim. Quando considero variáveis que o modelo não considera, como por exemplo o juro americano, e quão forte a economia americana tem estado, o que vai drenar liquidez para lá, você corre muito risco de depreciação do câmbio com a Selic abaixo de 10%. Qualquer depreciação, por menor que seja - estou falando em alguma coisa entre 5% e 10% -, já vai jogar essa taxa terminal mais para perto dos 11%. É esse o grande risco. O Banco Central pode ser cauteloso, chegar lá perto dos 11% e depois ir muito devagar.

Seria um ciclo em duas fases…

Sim, pode ir bem devagar a partir dali perto dos 11%, ou pode ter de fazer uma parada se o câmbio reagir mal, esperando o momento de corte de juros pelo Fed (Federal Reserve, o banco central dos EUA) para buscar níveis mais baixos de Selic. Não sei qual vai ser a escolha. O meu palpite para o câmbio vai depender dessa escolha. O real está super defendido, mas o ambiente internacional é muito arisco. Qualquer aumento de volatilidade pode fazer as moedas depreciarem em relação ao dólar, não só o real. Isso pode ser um problema.

A inflação fecha 2023 na meta?

Achamos que vai fechar mais perto de 4,6% ou 4,5%. A dinâmica da inflação corrente até o início do ano que vem vai seguir muito benigna. Industriais têm espaço para cair. Em serviços, está melhor do que quase todo mundo esperava. O câmbio está performando bastante bem. O grande risco é a transição. Se a expectativa começar a desancorar, aí a inflação corrente vai atrás.

Entrevista por Eduardo Laguna
Renata Pedini

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