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Jornalismo de Reflexão

Daniel Galera: "O amor e a beleza podem transcender tudo e nos acompanharão até o fim"

Em novo livro lançado em junho deste ano, "O deus das avencas", autor reúne novelas que suscitam reflexões políticas e ambientais, a partir de futuros incertos e distópicos

Por Isabella Marzolla
Atualização:

Daniel Galera. Foto: Companhia das Letras

"A pandemia acrescentou mais uma camada de distanciamento entre corpos, dessa vez por necessidade de sobrevivência, de cuidado de si e do outro. O que vem pela frente talvez seja um misto de reencontro sôfrego com essa dimensão da vida e de aprofundamento das formas remotas de se relacionar"

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"Quando algum tipo de proximidade física entre corpos não for mais possível ou necessária, teremos entrado em terreno especulativo, não seremos mais pessoas como nos entendemos pessoas agora"

"Devíamos estar mais preocupados com a mortandade de polinizadores ou com alternativas à extração de carbono do que com fantasias "transumanistas". Mas, como diz Don DeLillo, parece que, quando a assunto é tecnologia, tudo que se acredita que pode ser feito será feito, sem pensar nas consequências"

"Pelo que vi nas últimas pesquisas, o inconsciente coletivo do brasileiro é Fora Bolsonaro"

"Futuros melhores seguramente envolvem dar mais poder e autonomia a saberes diferentes daqueles que ocupam o poder agora. Uma verdadeira diversidade é parte da solução"

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"Não sou contra a tecnologia, claro, seria idiota, mas sou a favor de haver protocolos para retardar, encerrar ou redirecionar certas tendências e rumos das tecnologias, com debate público e participação cidadã".

Catástrofes naturais - como o terremoto no Haiti, as temperaturas extremas no Brasil e Canadá ou a tempestade Henri na costa norte-americana, para citar as mais recentes - instabilidade política e democrática, pedidos de impeachment do Presidente arquivados e alguns direcionados a Ministros do STF, ameaças à veracidade das urnas eletrônicas um ano antes das eleições, a pior pandemia desde a Gripe Espanhola, mais de 14 milhões de desempregados, 12,8% na linha da extrema pobreza no País. Tudo isso pode nos fazer questionar como será daqui para frente: como a humanidade lidará com os problemas sociais, políticos, econômicos, ambientais e sanitários?

O deus das avencas é um livro de três novelas ficcionais, de engenhosas narrativas recheadas de críticas sociais e uma sensação de desespero, própria do nosso tempo. A primeira novela, "O deus das avencas" - cujo título dá nome ao livro - trata de como as eleições passadas foram angustiantes, frustrantes e assustadoras para uma parcela dos eleitores que não votaram no atual Presidente.

As outras duas novelas do livro apresentam, diferentemente da primeira história, futuros longínquos onde o meio ambiente como conhecemos hoje não existe mais. Em "Tóquio",  a história se passa em um cenário com poucos recursos naturais e de clima hostil, com tecnologias superdesenvolvidas e que parecem exceder limites éticos, em uma sociedade desigual, com vidas solitárias e individualizadas. Futuros que chamam a atenção para o descuido e destruição do homem com a natureza no presente, e o que ela pode vir a se tornar em algumas décadas.

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Capa de "O deus das avencas". Foto: Companhia das Letras

"Lembro com nitidez das emoções que senti e que circulavam em volta de mim na véspera da eleição. Em algum momento, ficou claro que um ser humano [atual Presidente] notoriamente incompetente, torpe e ignorante, um reiterado inimigo das instituições democráticas, dos direitos humanos básicos, da cultura e do meio ambiente, seria democraticamente eleito por uma parcela da população que, espantosamente, engolia promessas estúpidas de mudança ou, pior, calculava vantagens próprias sabendo do custo que seria cobrado do restante da população"

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"Não se trata de esquerda ou direita, e sim de rejeitar o autoritarismo, o fascismo, o nazismo, a estupidez, a discriminação, a violência, o desprezo à Constituição e às instituições, o escárnio pela morte e o atraso em todos os sentidos possíveis. Depois se fala em esquerda e direita"

"Entendo que a fé é uma questão íntima e que a política não deveria nunca se meter nisso, e vice-versa. Pessoalmente, acho que um mundo sem deuses é mais interessante que o contrário".

Daniel Galera é escritor e tradutor, já publicou oito livros, sendo o mais premiado, Barba ensopada de sangue, que recebeu o 3º lugar no Prêmio Jabuti e foi o vencedor da categoria de Melhor Livro do Ano no Prêmio São Paulo de Literatura, em 2013. Daniel também ocupou o 3.º lugar do Prêmio Jabuti (2009) com o livro Cordilheira, que ganhou o Prêmio Machado de Assis de Romance em 2008.

Galera publicou seus dois primeiros livros - Dentes Guardados e Até o dia em que o cão morreu - pelo selo independente Livros do Mal, criado por ele e mais dois colegas, Daniel Pellizzari e Guilherme Pilla. Seu livro de estreia, Dentes Guardados, foi publicado em 2001 e hoje encontra-se disponível gratuitamente na internet.

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Logo na primeira novela, "O deus das avencas", você conta a história de dois jovens de Porto Alegre que aguardam ansiosamente o nascimento de seu primeiro filho, durante as eleições presidências do Brasil em 2018. Ao longo da narrativa há diversas referências ao evento real das eleições e da polarização raivosa da época.

Você acredita que conseguiu capturar, pelo menos em parte, o que alguns brasileiros sentiam naquele momento? Será que vamos revisitar as mesmas sensações de 2018 em 2022?

Espero que tenha captado, pois era uma das motivações principais para contar essa história. Narro o esforço de um casal para se isolar do debate público violento e do medo do futuro enquanto aguardam a chegada do filho, uma nova vida que terá pela frente o país resultante da eleição. Mas está claro que não é possível fugir dessa dimensão política.

Lembro com nitidez das emoções que senti e que circulavam em volta de mim na véspera da eleição. Em algum momento, ficou claro que o ser humano [atual Presidente] notoriamente incompetente, torpe e ignorante, um reiterado inimigo das instituições democráticas, dos direitos humanos básicos, da cultura e do meio ambiente, seria democraticamente eleito por uma parcela da população que, espantosamente, engolia promessas estúpidas de mudança ou, pior, calculava vantagens próprias sabendo do custo que seria cobrado do restante da população.

O leitor já sabe o que veio depois dessa eleição, mas os personagens ainda não. O efeito que procurei está nessa tensão entre o que se antecipa na fábula e o que já se conhece na realidade. O filho demora a nascer como se quisesse retardar o desenlace que agora conhecemos.

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Ainda na novela "O deus das avencas", o personagem Lucas fica receoso com a chegada do seu primeiro filho: "Tem medo de não ter dinheiro para o básico, de que Manuela sofra em demasia, de ter um derrame ou um infarto, de que o país entre em guerra civil na madrugada de segunda".  O que falar para um casal que quer ter filhos em tempos tão conturbados como os nossos?

Se quer, vá em frente. Ter filhos nunca foi simples. O que teremos a ensinar e aprender se adaptará também a um mundo assolado por tragédias e catástrofes planetárias, e o amor e a beleza podem transcender tudo e nos acompanharão até o fim, seja qual for.

Mas é sempre bom ter em mente que proliferar não é um bem em si, que há muitas e muitas formas de parentesco, e que um ou dois bastam nos tempos em que vivemos.

No final desse conto, Lucas, em um momento difícil e angustiante acaba despretensiosamente indo a uma capela do hospital, para se tranquilizar. A fé é universal independentemente de convicções políticas? O que você procurou transmitir nesse trecho?

Ele não vai rezar. A freira sugere que ele deixe um bilhetinho para o padre rezar por eles, e é o que acaba fazendo, em parte sensibilizado por certas palavras de consolo ditas pela religiosa, em parte porque está aflito a ponto de não querer impor a si mesmo as suas convicções materialistas.

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Entendo que a fé é uma questão íntima e que a política não deveria nunca se meter nisso, e vice-versa. Pessoalmente, acho que um mundo sem deuses é mais interessante que o contrário. Mas não há no texto nenhuma intenção de afirmar nada abrangente sobre a fé religiosa. Se quis dizer alguma coisa com essa cena, talvez seja apenas que, nos momentos de desespero, podemos estar unidos em nossos corações no que importa, apesar das diferenças.

O que você diria para um leitor de "O deus das avencas" que não é de esquerda? E para alguém que votou no atual Presidente?

Para os leitores do livro eu não diria nada, eles não precisam de mim para fazer seus juízos morais e estéticos. Para quem votou no atual presidente, considerando que isso já aconteceu e o que importa agora é o que vem pela frente, talvez dissesse que não se trata de esquerda ou direita, e sim de rejeitar o autoritarismo, o fascismo, o nazismo, a estupidez, a discriminação, a violência, o desprezo à Constituição e às instituições, o escárnio pela morte e o atraso em todos os sentidos possíveis. Depois se fala em esquerda e direita.

Por que o livro, ou a primeira novela, se chama "O deus das avencas"?

É um verso de uma música do Caetano [Veloso] que gosto bastante, "Pelos olhos", e que ouvimos muito aqui em casa na época em que minha filha nasceu. A letra era citada no texto na primeira versão [da novela], depois acabei cortando, mas a imagem ficou.

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Para mim a letra toda transmite um calor e uma intimidade tocantes, evocando essa planta frágil e antiga, uma presença de delicadeza em meio ao ruído e brutalidade psicológica reinantes na história, algo a ser protegido e observado com carinho.

Na segunda novela do livro, "Tóquio", você descreve um mundo devastado pelos humanos, com raros recursos naturais, pandemias, indivíduos que parecem viver solitários e isolados, inteligências artificiais assustadoramente avançadas, entre outros elementos pós-apocalípticos. Isso é uma visão sua para o futuro? Como não desanimar a geração jovem?

É uma visão de futuro baseada no conhecimento que temos no presente, e como tal não creio que é uma visão particularmente apocalíptica. Nesse futuro, a divisão entre privilegiados e desvalidos se agrava ainda mais, mas a vida se reorganiza e segue apesar de tudo.

As tecnologias continuam oferecendo soluções e também novos problemas, como é o caso do luto e do cuidado em torno dessas cópias disfuncionais de pessoas, que se tornam algo verdadeiramente pós-humano, "nem lá nem cá". Na verdade, eu duvido muito que um dia consigamos digitalizar o conteúdo integral de um cérebro. Mesmo que seja possível, duvido que servirá para muita coisa.

A novela procura sugerir, entre outras coisas, que os ideias que regem certo tipo de pesquisa e investimento tecnológico podem estar muito equivocados. Devíamos estar mais preocupados com a mortandade de polinizadores ou com alternativas à extração de carbono do que em fantasias "transumanistas". Mas, como diz Don DeLillo, parece que, quando a assunto é tecnologia, tudo que se acredita que pode ser feito será feito, sem pensar nas consequências.

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Em "Tóquio", empresas bilionárias criam tecnologias capazes de guardar uma cópia humana de entes finados, como uma forma de "viver eternamente". Na sua opinião, existe hoje um conflito ético presente nas grandes empresas de Big data, tendo em vista escândalos da venda de dados de usuários de redes sociais para políticos, ou disseminação em massa de fake news? Deveria existir um limite no avanço das tecnologias?

Em "Tóquio", as cópias que a ciência consegue fazer resultam, na verdade, em artefatos que não se pode afirmar que são pessoas. Não está claro se há nelas a mesma identidade da pessoa anterior, ou mesmo se há alguma identidade. Os produtos das tecnologias nem sempre trazem o resultado esperado, e isso abre espaço a perigos quase impossíveis de prever.

Não sou contra a tecnologia, claro, seria idiota, mas sou a favor de haver protocolos para retardar, encerrar ou redirecionar certas tendências e rumos das tecnologias, com debate público e participação cidadã.

A coleta de dados sem dúvida é um desses problemas. Não podemos aceitar que o governo entregue nossos dados biométricos às polícias de outros países, que empresas nos forcem a conceder biometria facial em troca de serviços que são essenciais, como atividade bancária.

Recentemente, li um artigo falando de como a nova Constituição chilena deverá incluir direitos à identidade individual, diante do avanço de tecnologias de leitura da atividade cerebral. Então sim, eu acho que deve haver limites e legislações defendendo interesses individuais e coletivos de certos efeitos do avanço tecnológico.

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Nos últimos dois contos do livro, "Tóquio" e "Bugônia", é possível perceber que apesar das narrativas se situarem em cenários ficcionais futurísticos distantes e bem diferentes da realidade como conhecemos hoje, as relações e sentimentos humanos dos personagens continuam semelhantes das que temos no presente. Você acredita que o jeito como nos relacionamos com os outros e como sentimentos vai mudar no futuro?

Não sei dizer. Mas sei que não podemos prescindir de corpos, dos nossos próprios e, em alguma medida, dos outros. Quando algum tipo de proximidade física entre corpos não for mais possível ou necessária, teremos entrado em terreno especulativo, não seremos mais pessoas como nos entendemos pessoas agora.

Franco Berardi escreveu coisas ótimas sobre isso. A tecnologia nos aproximou abstratamente e nos afastou fisicamente. Claro que isso tem consequências, algumas boas, outras ruins.

A pandemia acrescentou mais uma camada de distanciamento entre corpos, dessa vez por necessidade de sobrevivência, de cuidado de si e do outro. Acho que já temos a nostalgia de uma certa intimidade perdida, a falta da sensação de estar perto de alguém específico ou de muitos corpos desconhecidos, pelos prazeres e perturbações prometidos por esses contatos. O que vem pela frente talvez seja um misto de reencontro sôfrego com essa dimensão da vida e de aprofundamento das formas remotas de se relacionar.

Em "Tóquio" e "Bugônia", você descreve futuros com um abismo de desigualdade social imenso. Na sua opinião, a tendência do mundo é ser cada vez mais classista e individualista?

Essa é a tendência. Se quisermos mudar isso, esforços monstruosos de imaginação, educação e atividade política serão necessários. Existe a chance também de sermos forçados a práticas mais solidárias pelos desafios ecológicos e civilizatórios do século que avança.

É mais fácil imaginar cenários horripilantes de sobrevivência do mais forte, mas vai saber. Tento passar adiante, do meu limitado ponto de vista, ideias que autorizam alguma esperança de desenlaces melhores que esse.

De maneira sucinta, como você descreveria os prováveis pré-candidatos das próximas eleições presidenciais: Jair Bolsonaro (sem partido) e Lula (PT)?

Prefiro dizer como não os descreveria: como opostos equivalentes.

Em todas as narrativas do O deus das avencas e em algumas de suas obras anteriores, há menções a sustentabilidade, agricultura e meio ambiente. Tendo em vista o último relatório do Painel intergovernamental sobre mudanças climáticas, da ONU, você acredita que um caminho para um mundo melhor seja através da resolução das questões ambientais?

Sim, mas é preciso lembrar que questões ambientais e questões sociais estão entrelaçadas a partir do momento em que o homem se torna um agente de desequilíbrio e destruição ecológica em escala global. Por exemplo, a ampliação de direitos reprodutivos e oportunidades de estudo e trabalho para as mulheres regula também a natalidade e aponta a sociedade como um todo para um futuro em que a ameaça do crescimento populacional é reduzida.

Há modalidades de agropecuária ecológica que não implicariam no extermínio de muitos ecossistemas, e até permitiriam que aumentássemos muito as reservas naturais. Existem muitos caminhos.

Seus últimos livros, Meia noite e vinte e O deus das avencas trazem reflexões sombrias de nossos tempos e de futuros incertos e um tanto assustadores. Em sua avaliação ainda há esperança para humanidade? Como devemos encarar a complexidade e profundidade dos problemas atuais? 

Tem sido difícil nutrir muita esperança. Mas ela ainda é possível, claro. Não vou fazer de conta que sei mais do que realmente sei. Futuros melhores seguramente envolvem dar mais poder e autonomia a saberes diferentes daqueles que ocupam o poder agora. Uma verdadeira diversidade é parte da solução. Outra parte é derrubar a economia enquanto paradigma único e excludente a respeito do que é possível e não é possível fazer.

Valor monetário é uma ferramenta que serve para certas coisas, mas não pode ditar como a sociedade é conduzida como um todo. E nem tudo é quantificável. Como encarar? Podemos fazer isso votando, doando riqueza e atenção, mudando hábitos, expandindo a imaginação, elaborando nosso pânico e esperança nas narrativas, na arte.

Como descreveria o inconsciente coletivo brasileiro?

Pelo que vi nas últimas pesquisas, o inconsciente coletivo do brasileiro é Fora Bolsonaro.

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