Ronald Biggs: o dia em que o ladrão inglês foi recebido num navio da marinha real britânica no Rio

Jornal da Tarde contou em 1977 como o criminoso inglês entrou na embarcação convidado por marinheiros que o consideravam um herói

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Por Edmundo Leite
Atualização:
Reportagem sobre a visita de Ronald Biggs a um navio da marinha britânica. Foto: Acervo Estadão

Durante os mais de trinta anos em que viveu no Rio de Janeiro, o foragido ladrão inglês Ronald Biggs protagonizou histórias que o colocaram como um dos mais folclóricos personagens cariocas. Por ter um filho brasileiro, Biggs não podia ser extraditado para a Inglaterra, onde era condenado a 30 anos de prisão pelo célebre assalto ao trem pagador em 1963.

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Bon vivant, fanfarrão e bem humorado, Biggs era considerado uma afronta à polícia britânica mesmo que não falasse nada, apenas por estar solto e impune num paraíso tropical.

Mas o inglês também gostava de contar suas histórias zombeteiras para quem quisesse ouvir, como essa que o Jornal da Tarde publicou, sem registro de autoria, na edição de 21 de abril de 1977, sobre a sua visita a um navio da marinha real britânica a convite de marinheiros conterrâneos admiradores de suas façanhas.

Leia a íntegra.

Jornal da Tarde - 21/4/1977

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E Bem ali, à frente de todos, Ronald Biggs, o grande herói.

(Os marinheiros ingleses exultavam)

Ronald Biggs conta como foi sua visita, impune, a um navio da Armada Real Britânica ancorado no Rio

Nos alojamentos da fragata inglesa “Antílope”, ancorada no porto do Rio de Janeiro, o ambiente estava se tornando insuportável, na noite de sexta-feira: de um lado um reduzido grupo prometia que se a notícia do que acabavam de tomar conhecimento fosse verdadeira, “iriam prender aquele homem”. Contra eles, a maioria dos homens do barco, liderado pelo jovem marinheiro Slingerwood afirmava que “para fazer qualquer coisa contra ele”, teria, que passar por cima de seus corpos.

A violenta discussão, no entanto, não ultrapassou esses limites. No outro navio da frota britânica que visitava o Brasil o “Danae”, causador de tantas discussões nem sabia o que estava acontecendo. Lá, recebido com toda a hospitalidade e cumprimentado pelo oficial em comando àquela hora, ele fazia uma visita aos alojamentos dos marinheiros, onde ficou por quase uma hora.

Esse inglês tranqüilo, falando um excelente português - apesar de poucos anos no Brasil — morador da distante mas aconchegante praia de Sepetiba — na zona rural do Rio — é um criminoso, talvez um dos mais cobiçados pela justiça e polícia inglesa. É Ronald Biggs, o único dos 13 assaltantes do trem postal inglês — quando foram roubados 2,6 milhões de libras — que depois de capturado e condenado a 30 anos de prisão, conseguiu escapar.

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— Fizeram uma tempestade em copo d’água, diz Biggs. Eles não poderiam fazer nada comigo porque teriam muitas explicações para dar depois. E nem tentaram fazer nada. Fui muito bem recebido no navio e os marinheiros diziam sempre ter muita admiração em me conhecer.

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Mesmo constrangido com a repercussão que teve a sua visita ao navio inglês, Ronald Biggs não se furta a repetir a história para todos os seus muitos amigos que o procuram na casa de Sepetiba. Para ele, parece ser um verdadeiro prazer mostrar que, mais uma vez, não conseguiu ser “agarrado pela polícia inglesa”.

— Na última sexta-feira eu estava na praça Mauá, andando um pouco depois que tinha ido à polícia assinar os papéis, como faço sempre, duas vezes em cada semana (Ronald Biggs é obrigado a comparecer duas vezes por semana às dependências da Polícia Federal, na praça Mauá, no centro do Rio, quando comprova que ainda está no país, assinando o que ele mesmo chama de”minha liberdade condicional”).

Ao reconhecer o uniforme de dois marinheiros ingleses que tentavam inutilmente se entender com o vendedor de uma banca de jornais, Ronald Biggs não resistiu à tentacão:

— Percebi que eles estavam em dificuldades de se entender com o jornaleiro e fui perguntar se precisavam de ajuda. E eles ficaram satisfeitos e espantados. Perguntaram se eu realmente sabia falar inglês e quando eu disse que era inglês, eles se espantaram mais ainda.

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Os marinheiros, no entanto, não sabiam que iriam se assustar muito mais, quando aquele inglês de fala tranquila se apresentasse:

— Quando eu disse que me chamava Ronald Biggs, eles não acreditaram. Mas, como vissem que eu não estava mentindo, disseram: se você é Ronald Biggs mesmo, nos dê a sua mão que nós queremos cumprimentá-lo.

Dessa efusiva recepção até a ida a bordo do navio a coisa foi bem rápida. Como os dois rapazes estavam carregados de embrulhos, convidaram-no a ir até lá, enquanto se preparavam para sair novamente:

— Perguntei a um deles se não haveria nenhum problema em ir a bordo e ele me respondeu que tomariam conta de mim. Quando chegamos no navio, estavam realizando a cerimônia da retirada da bandeira do mastro principal. Assisti a tudo perfilado junto com os meus anfitriões. Um oficial percebeu que seus dois marinheiros tinham um convidado, me desejou boas-vindas e mandou que eu me colocasse a vontade dentro do navio.

Somente quando chegaram a seus alojamentos é que os marinheiros anunciaram aos colegas a sua visita: “Esse aqui”, diseram eles, “é o nosso Ronald Biggs”. A reação dos outros homens a bordo foi imediata. Num pequeno grupo formado em sua volta, Biggs teve que dar centenas de respostas para satisfazer a curiosidade e admiração de todos.

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— Ficamos mais de quarenta minutos dentro do barco. Quando os rapazes acabaram de se aprontar, saimos tranqüilamente.

Reportagem sobre a visita de Ronald Biggs a um navio da marinha britânica. Foto: Acervo Estadão

Dali, Ronald Biggs levou seus novos companheiros para um bar do centro da cidade, a espera de que o “Cordão da Bola Preta” (tradicional clube carnavalesco do Rio), iniciasse o seu funcionamento.

— Foi enquanto esperávamos que eu conheci o Slingerwood, um marinheiro da frota inglesa. Ele chegou no bar com o livro que conta algumas de minhas façanhas e tem fotos minhas. Não acreditava que eu fosse realmente Ronald Biggs. Olhou, comparou com as fotos do livro e me cumprimentou.

Para Ronald Biggs parece ter sido um dos momentos emocionantes de sua vida atribulada. Segundo ele, depois que teve certeza de tratar-se realmente de Ronald Biggs, o marinheiro Slingerwood disse: “Não preciso fazer mais nada na minha vida. Posso morrer daqui a instantes porque tive o prazer de conhecer o maior herói que tive em toda a minha vida.”

— Vocês sabem o que é um admirador fanático, um fã ardoroso. Era a realização da vida daquele rapaz, me conhecer. Ele possui álbuns de recortes com tudo o que sai nos jornais e revistas a meu respeito.

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A essas demonstrações de afeto, Ronald Biggs já está acostumado. Ele recebe dezenas de cartas de todos os lugares do mundo, de pessoas pedindo autógrafos, dando conselhos, oferecendo ajuda e pretendendo vir ao Brasil para visitá-lo:

— Recebo quase que diariamente cartas de pessoas que querem meu autógrafo, dizendo sempre que são meus admiradores. Essas cartas vêm principalmente da Inglaterra e da Austrália. Muitas dessas pessoas escrevem oferecendo ajuda material e moral. Dão muitos conselhos e sugerem algumas maneiras de eu ganhar algum dinheiro aqui no Brasil.

É também por essas manifestações de afeto e carinho que Ronald Biggs pretende voltar “algum dia, na hora certa” à Inglaterra. Para ele, existe a certeza de que terá muito apoio e ajuda, o que evitará que ele cumpra o total de sua pena de 30 anos de cadeia.

— Já tentei voltar à Inglaterra voluntariamente. Entrei em contato com o responsável pelo material de polícia e justiça do jornal “Daily Express” para promover a minha volta a Londres. É evidente que eu gostaria de ter também uma compensação financeira pela coragem de voltar a me entregar.

Na ocasião, em 1973, Ronald Biggs tinha acertado tudo. Para ele, o grande erro foi não ter assinado um contrato e ter confiado na palavra do jornalista inglês:

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— Eu sou um velho ex-ladrão, mas o que eu falo, cumpro até o fim. Essa pessoa não fez isso e ainda me entregou para a Scotland Yard. Nessa mesma semana chegaram dois policiais de lá para me levar de volta.

Ronald Biggs sentiu-se revoltado e desistiu de voltar à Inglaterra.”Tinha desejo de regressar e me entregar, mas de livre vontade”:

— Foi aí que resolvi lutar para permanecer em liberdade. A Raimunda, minha mulher, estava grávida e as pessoas me alertaram que se eu fosse pai de uma criança brasileira, não podpria ser levado preso para fora do país.

Mas, o desejo de voltar para a Inglaterra não cessou. Para Ronald Biggs, ainda “vai chegar a hora certa” de poder retornar à pátria:

— Tenho certeza-de que as pessoas lá na Inglaterra acreditam que Ronald Biggs se transformou em um outro homem. Estou totalmente recuperado, regenerado.

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Para provar que isso é verdade, basta vocês verem que esse período em que estou fugindo — e são 12 anos que estou fora das prisões inglesas — é o maior tempo de toda minha vida em que mantive meu comportamento honesto, muito honesto.

Agora, Ronald Biggs tem ainda mais certeza da boa recepção que terá na Inglaterra. Para ele, a boa vontade e a alegria com que foi recebido nos navios da Armada Real Britânica é mais uma prova de que terá todas as chances de ver sua pena reduzida.

— Dos 18 que participaram do assalto ao trem postal, somente treze foram capturados. Dez desses homens já cumpriram a totalidade de suas penas e estão livres. Dois estão presos na Inglaterra, devendo ter sua liberdade condicional decretada ainda esse ano ou no princípio do ano que vem. Por que eu deverei voltar à Inglaterra e me entregar de espontânea vontade e ficar preso durante trinta anos?

É por isso que Ronald Biggs exibe orgulhosamente o pequeno anel de ouro com um pedra vermelha, que está usando desde a noite de sexta-feira, no dedo indicador:

— Esse anel é uma prova. Foi-me dado pelo marinheiro Slingerwood na noite de sexta-feira dizendo que era uma homenagem dele, em nome de todos os marinheiros da esquadra inglesa.

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Em Londres, ontem, os membros do parlamento britânico continuavam dispostos a interpelar formalmente o ministro da Defesa, Fred Mulley, a respeito da visita, impune, que Biggs fez a um navio da Armada Real.

>> Jornal da Tarde

O assaltante inglês Ronald Biggs passeia em Copacabana em 1974, ano em que foi descoberto. Foto: Carlos Chiccarino/Estadão

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