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Opinião|O meio digital cristalizou o "amor líquido" como uma constante em nossas vidas

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O filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman, autor do conceito do "amor líquido" - Foto: M. Oliva Soto/Creative Commons

Quando lançou seu best-seller "Amor Líquido" em 2004, o filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017) não podia imaginar como as redes sociais ajudariam a cristalizar esse conceito depois de poucos anos: afinal, essas plataformas ainda eram bebês e suas influências em nossas vidas eram nulas. Isso só reforça sua genialidade e o valor de seus ensinamentos.

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Olhe a sua volta e observe a quantidade de relacionamentos criados e desfeitos com grande facilidade. É um sinal dos nossos tempos e as ferramentas digitais são essenciais nesse processo.

Para Bauman, a redução na qualidade das relações é compensada por uma quantidade enorme de parceiros. A relação social como uma responsabilidade mútua dá lugar ao que chamou de "conexão". Para ele, o grande apelo desses sistemas é a facilidade de esquecer o outro, de se "desconectar": troca-se, sem remorso, parceiros que deixam de ser "interessantes" por outros "melhores".

Essa é praticamente a definição do uso dos "aplicativos de pegação", que têm no Tinder seu maior expoente e que só foi lançado em 2012. Graças a eles, quem quiser pode ter vários parceiros sexuais em um mesmo dia. Os desavisados poderiam achar que isso é algo que só beneficia os mais jovens, mas tem muita gente mais experiente se entregando à "fluidez amorosa" com as facilidades que inundam nossos smartphones.

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Mas há outros fatores que aproximam a vida digital do amor líquido em uma relação quase simbiótica. Se Tinder e afins oferecem um "cardápio de gente" mais lúdico que um totem do McDonald's, as redes de vídeo curtos, sob liderança incontestável do TikTok, estão alterando nossa percepção do mundo, alterando a própria estrutura de nossas narrativas.

Ideias trabalhadas com introdução, desenvolvimento e conclusão dão lugar a microconteúdos sem começo, fim e até sem meio, encadeados pelo algoritmo em uma sequência infinita que retém nossa atenção. As pessoas estão se acostumando a permanecerem continuamente engajadas a vídeos tão estimulantes quanto rasos. O processo é tão eficiente, que provoca uma percepção alterada de que tudo no mundo deveria ser assim.

Mas a vida não é, muito menos relacionamentos, que exigem alguma dose de dedicação, resiliência e adaptabilidade ao outro. Como a linguagem está em nossa essência, esse movimento explica, ainda que parcialmente, a dificuldade de os adolescentes atuais namorarem.

Bauman dizia que, apenas quando nos damos conta de que nossa voz é ouvida e de que nossa presença é sentida, entendemos que somos únicos e dignos de amor. Precisamos do outro em um contato de qualidade para nos fazer perceber isso, mas, se estamos perdendo essa comunicação essencial, como sentiremos o outro? Para ele, "amar é contribuir para o mundo, cada contribuição sendo o traço vivo do eu que ama." E continua: "no amor, o eu é, pedaço por pedaço, transplantado para o mundo."

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Temos que aproveitar tudo que o digital nos oferece, até mesmo esses aplicativos, que podem ser muito úteis se empregados conscientemente. Apenas não podemos nos perder nossa própria humanidade nesse processo.

 

Opinião por Paulo Silvestre

É jornalista, consultor e palestrante de customer experience, mídia, cultura e transformação digital. É professor da Universidade Mackenzie e da PUC–SP, e articulista do Estadão. Foi executivo na AOL, Editora Abril, Estadão, Saraiva e Samsung. Mestre em Tecnologias da Inteligência e Design Digital pela PUC-SP, é LinkedIn Top Voice desde 2016.

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