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Miragem e mundo real se cruzam

Curador do Masp, crítico e professor da USP, Teixeira Coelho faz de O Homem Que Vive sua experiência narrativa mais radical, aproximando o nouveau roman francês de uma verve ensaística

Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

A uma certa altura do romance O Homem Que Vive, do curador do Masp, ensaísta, professor da USP e escritor Teixeira Coelho, o casal Buel e Valéria refugia-se no interior da Tate Modern, em Londres, justamente quando o artista dinamarquês Olafur Elliason apresenta na sala da Turbina o gigantesco sol de seu Projeto Tempo, em 2003. É gritante o contraste entre o frio inusitado que atravessa o romance e a quente paisagem bicromática da Tate, a ponto de Valéria tirar o casaco e ficar de camiseta cavada olhando a grande bola amarelada de Elliason. Também um homem de contrastes, Elliason, dois anos depois, faria o contrário num mosteiro da ilha de San Lazzaro, em Veneza, construindo um cubo negro com uma única e minúscula fonte de luz. Em ambos os casos, Elliason deixa no espectador as marcas de uma incômoda sensação de deslocamento, que o livro de Teixeira Coelho provoca desde o prólogo.

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Nele, um especialista em arte, globetrotter que vive em museus, chega a São Paulo no inverno de sua desesperança. Detalhe: neva sobre a metrópole. No táxi que emerge na Avenida Paulista coberta de neve está Buel, que vaga pelo mundo atrás de uma mulher - seu anjo, como diz. Como o Ulisses de Homero ou seu correspondente joyciano, Buel vive num espaço metafórico, idealizado. As representações alegóricas da neve de Teixeira Coelho e do sol de Olafur Elliason na Tate não estão, no entanto, fora de lugar. Elas são a chave para entender que a impaciência do protagonista e também narrador é fruto de sua obsessão visual. Ele quer ver alguma coisa e depois esquecê-la, como anotou Harold Bloom, citado pelo autor no capítulo em que fala de anjos caídos na Tate. Bloom, que também estudou os anjos, disse, em outras palavras, ser impossível alguém ver a si mesmo ou aos outros com esse tipo de impaciência tipicamente moderna.

Mais adiante, no epílogo, Teixeira cita o escritor suíço de língua alemã Robert Walser (1878-1956), observando que a alma de alguém pode, afinal, residir em algum outro lugar, longe da morada de seu corpo. Buel e Valéria talvez sejam projeções recíprocas que justificam a epígrafe retirada de um poema do livro Atemwende (1967), de Paul Celan - "Você é minha realidade; eu, sua miragem." Isso explica, em parte, a natureza angelical da mulher idealizada por Buel, quase uma projeção dos anjos de Swedenborg, capazes de, como observou Borges, prescindir das palavras para se comunicar - daí as citações visuais no livro, que vão do mencionado Elliasson a Kiefer, passando por Sigmar Polke, Enzo Cucchi e James Whistler, aquele que falou que a arte simplesmente "acontece". Como uma epifania.

Teixeira Coelho concorda com o axioma de Whistler. Para ele, curador do principal acervo de pinturas da América Latina, a arte é mesmo uma epifania. Sem ser jansenista, Coelho diria que ela é "uma graça que cai onde quer". O resto é esperança. Filho assumido do nouveau roman francês e formado pela nouvelle vague - especialmente Godard -, o escritor, autor de incontornáveis ensaios sobre política cultural, busca uma nova forma de contar uma velha história. E por que, então, escolheu a ficção? "É o jeito de tocar na sensibilidade reprimida", responde ele, concluindo que o relato ficcional chega mais rápido ao leitor, "quase como uma revelação, uma epifania joyciana".

Como o símbolo que Whistler usava para identificar suas pinturas - uma borboleta estilizada com um ferrão na cauda -, Teixeira Coelho combina dois aspectos de sua personalidade pública: a discrição e delicadeza como curador e o lado combativo como defensor de políticas culturais democráticas. Esse compromisso ideológico se traduz em livros como História Natural da Ditadura, a rememoração dos regimes autoritários do século 20 por um narrador que associa o estado de exceção a um estado de suspensão da existência - e não é sem razão que o argelino Albert Camus é evocado por um narrador com "vergonha de narrar" a história. Se a felicidade parece estar sempre no passado, como observa o autor no começo do livro, as imagens podem consolar, mas não as palavras. "A palavra escrita é um ferro que marca a alma", diz, concluindo que a memória, como no clássico O Ano Passado em Marienbad de Resnais, condena. Pessimismo? "Há, de fato, no livro, um certo apagamento da vida presente, como se só vivêssemos retrospectivamente, uma coisa que ataca a quem vê muito", observa. Ele, inclusive, habituado - como um especialista em artes visuais - a ver a vida por meio de outros olhos.

Tradutor de Alejo Carpentier (Concerto Barroco) e coautor de outros livros de ficção com o crítico e professor de cinema Jean-Claude Bernardet (Os Histéricos e Céus Derretidos), Teixeira Coelho escreveu seu primeiro livro de ensaios em 1969, Arte Contemporânea: Condições de Ação Social (Nova Crítica). Sua estreia na ficção foi em 1984 com Fliperama Sem Creme (Brasiliense), sobre o universo punk no cenário paulistano. "Era um romance de leitura rápida, enviado sob pseudônimo para o editor Caio Graco, da editora Brasiliense, que só publicou o livro mediante a condição de revelar o nome do verdadeiro autor."

Esse trânsito entre ficção e ensaio resultou no romance híbrido que é O Homem Que Vive. Como no nouveau roman, os saltos narrativos marcam a linguagem de Teixeira Coelho, que assume essa queda pela ficção ensaística. Além de Michel Butor e Robbe-Grillet, expoentes do nouveau roman, ele gosta muito do germanista italiano Claudio Magris, particularmente de sua obra-prima, Danúbio (1986), viagem sentimental em que o scholar segue (nos anos 1980) o segundo maior rio da Europa, associando paixões e encontros registrados em seu diário pessoal ao conceito histórico de Mitteleuropa, tendo como linha condutora a sinuosidade dessa paisagem fluvial.

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Seguindo a linha de História Natural da Ditadura, ele poderia "raspar as experiências negativas", fantasmagóricas, do passado e escrever um livro de teoria política, mas preferiu contar esse drama do ponto de vista de um narrador que nem sabe se é o protagonista da própria história. Há, claro, pistas que levam à experiência do autor, como a fixação no ano de 1973 - não por acaso o mesmo do golpe do Chile. Teixeira Coelho, como muitos, sentiu certo encantamento pela militância política, mas logo seguiu outro caminho. Sorte do leitor.

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