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O velho Bailey a seu alcance

Não conheço ninguém que não goste de uma boa história de crime. Ou de drama passado em tribunal. Ou de fofoca.

Por Ivan Lessa
Atualização:

Não conheço ninguém que não goste de uma boa história de crime. Ou de drama passado em tribunal. Ou de fofoca. Todos nós somos mórbidos, todos nós não valemos nada. Importa-nos mais um horror familiar no interior da Áustria do que os horrores habituais armados pela política internacional. Viva John Grisham e seus dramas jurídicos. Viva Thomas Harris e seu imortal Hannibal Lecter. Vamos ser francos: a vida não é isso que conosco se passa. Viver se passa no cinema, na televisão, nos maus livros e nas páginas policiais da imprensa. Boas notícias para quem lê em inglês (brasileiro que não sabe inglês terá sua cidadania cassada a partir de 2010) e tem o mais vagabundo dos computadores. Está entrando na linha - é online, pô, vocês estão cansados de saber disso - o Old Bailey. Quem é o Old, o velho Bailey? Vocês estão cansados de conhecer. De vista, ali nas primeiras filas dos cinemas. É o principal tribunal criminal da Inglaterra, situado bem aqui no centro de Londres, pertinho da BBC Brasil, e que lida com crimes de primeira grandeza. Embora os de segunda e terceira grandeza também mereçam sua atenção. Pausa arcaica. Bailey, em inglês antigão, era como se chamava o muro fortificado que cercava a City de Londres. Chamemo-lo de "Velho Muro", portanto. Normalmente, em se tratando de lance cinematográfico, a primeira tomada é da estátua da Justiça, lá no alto do velho edifício: venda nos olhos, espada numa das mãos, balança na outra. Corta para a sequência no tribunal, com toda aquela gente bem-falante de toga negra e peruca branca (sem esquecer da figurinha difícil do juiz, lá no alto de sua autoridade, fazendo-se de excêntrico dentro de suas vestes rubras e podres de chique e a quem só devemos chamar de My Lord, ou My Lady, conforme o caso). Daí é cortar, dando um exemplo, para Charles Laughton, com seu monóculo, apoquentando a pobre da Marlene Dietrich no banco dos réus, conforme o Testemunha de acusação, do Billy Wilder. Lembraram agora? Pois é. O "Velho Muro" existe para valer e tem história que não acaba mais. Um pouco da história Um pouco. Muito pouco. Foi construído em 1674, com a corte exposta às intempéries, afim de evitar a propagação daquela criminosa jamais processada, a Peste - a danada da Peste. Tribunal aberto, pois. O que levou, em 1734, a pensarem duas vezes, conforme é de praxe jurídica, e fechar tudo. Resultado? Dura lex sed lex: 60 pessoas morreram de tifo. Nenhuma delas acusada de nada. Foram-se, no entanto, o Lord Mayor da City (cargo sobre o honorário, assim feito nosso Rei Momo) e dois juízes. Não é só a justiça que é cega. O tifo também. Em 1834, construiram mais uma corte de justiça criminal. Foi logo batizada de Central Criminal Court. Vai em inglês mesmo, que é para tornar mais interessante os criminosos e os inocentes (todo mundo sempre alega inocência) que por lá passaram e continuam passando. Chega de história. Vocês já pegaram o espírito da coisa. Atualidade informatizada O que há é que agora você aí, que acha sacal acompanhar o caso de Ronaldo Fenômeno e aquelas criaturas que com ele foram ter no motel, pode se divertir muito mais dando uma boa digitada no seguinte endereço: http://www.oldbaileyonline.org Daí, como que por magia, como tudo que é informatizado, terá pleno acesso ao arquivo digitalizado de tudo quanto é processo que pelo "Velho Muro" passou. Com um senão, apenas, pois de senões, também, é feita a vida: a papelada, palavra por palavra dos autos, vão apenas de 1674 a 1913. São 100 milhões de palavras, são 200 mil casos separados. Um rico manancial para historiadores, sociólogos, advogados e, o que é mais importante, para nós aqui, que somos doidos por uma boa transgressão, de preferência com muito sangue jorrando. Pessoalmente, e nada mais pessoal que crime, eu, devido à minha longa estada aqui na Inglaterra, talvez seja parcial aos crimes com veneno, com envenenadores. Parece-me mais dentro do tradicional espírito local, conforme argumentou George Orwell, em ensaio célebre. Quem quiser enganar, e se fazer passar por estudioso dos usos e costumes jurídicos ingleses, tome nota: entre mil outras coisas, a palavra "pijama", ou pyjamas, em inglês, foi dita, ouvida e registrada, pela primeira vez na augusta instituição, em 1895. Crimes, pois, ide de crimes à inglesa, amigos, que os crimes aí estão e conosco ficarão até o fim dos dias. Crimes bons, medíocres ou baratos. Mas crimes. Pena que os crimes também, conforme a tese de Orwell, já tinham entrado em decadência na época do tal ensaio (1946), e da decadência não se recuperaram. Nada e ninguém escapa da decadência. Tem um troço Troço que tem é o seguinte: se o distinto, aí ou aqui, quiser a transcrição completa, digamos, desse caso recente de chantagem sofrido por um membro (ou "membra") da Família Real, esquece. O notório Dr. Crippen, se defendendo, em 1910, de ter matado a mulher, está lá direitinho, na íntegra, mentira por mentira médica. Quanto à tal chantagem, só escrevendo para o "Velho Muro" pedindo permissão para escarafunchar a história e, na mais implausível das hipóteses, caso venha a obter a aquiescência jurídica, vai ter que gastar uns cobres. Nada de exorbitante, se considerarmos a quantas anda o preço da gasolina. Mas vai ter que morrer com "algum". Parece que não aceitam cartão de crédito. Assim não vale, "Velho Muro": se o passado está escancarado dando sopa, o presente poderia ao menos dar uma colher de chá. Certo? BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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