Como o Brasil se mobiliza para resgatar fósseis e bens que estão no exterior? Veja o que pode voltar

Retorno do fóssil do dinossauro ‘Ubirajara jubatus’, que estava na Alemanha, mobilizou comunidade científica. Debate ganha força na Europa e País busca recuperar mais objetos de valor cultural e histórico

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Foto do author Roberta Jansen
Por Roberta Jansen
Atualização:

Depois de mais de dez anos de disputa, o Brasil espera receber até o fim deste ano um conjunto de 611 artefatos indígenas que estão irregularmente na França há quase duas décadas. A devolução dessas peças se segue à de outros dois objetos emblemáticos: o fóssil do dinossauro Ubirajara jubatus, da Alemanha, e um manto tupinambá, da Dinamarca.

A repatriação de bens culturais é uma tendência internacional abraçada recentemente pelo Brasil. Este ano, depois das campanhas bem sucedidas pelo retorno do Ubirajara e do manto, o País passou a integrar pela primeira vez o Comitê Subsidiário da Convenção de 1970 da Unesco, que é considerado um dos principais instrumentos jurídicos internacionais para a proteção de bens culturais.

Fóssil do dino Ubirajara jubatus foi devolvido neste ano pela Alemanha Foto: Heitor Rios/Museu Plácido Cidade Nuvens

“O novo governo reposiciona e prioriza as culturas de matriz africana e indígena, colocando em evidência a necessidade de repatriar objetos”, afirma o presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Leandro Grass. “Nosso trabalho é no sentido de fortalecer essa pauta, valorizando o resgate dessas culturas.”

  • Os artefatos indígenas que estão no Museu de História Natural de Lille ainda não voltaram ao País, mas a França já confirmou oficialmente a devolução do lote. O conjunto de peças havia sido emprestado ao museu francês em 2004 pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e deveria ter retornado ao País até 2009.

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A disputa envolveu não apenas os técnicos da Funai e do Museu do Índio, mas também representantes do Ministério Público Federal (MPF) e do Itamaraty. A tendência da repatriação de bens é fruto do debate sobre o impacto nefasto de séculos de imperialismo europeu nas culturas originais das Américas, da África e da Ásia.

“É um acervo único”, diz o coordenador de Patrimônio Cultural do Museu do Índio, Bruno Oliveira Aroni. “São 611 objetos de 39 povos diferentes, a maioria do Brasil Central. Pela data de produção, há indícios de que eles não sejam mais fabricados por esses povos. É um patrimônio cultural do Brasil.”

  • Entre os objetos estão troncos de madeira usados pelos Kamaiurá, do Xingu, durante a cerimônia do Kuarup – o ritual de despedida dos mortos. Adornos de cabeça usados pelos Karajá durante a “Festa da Casa Grande”, que marca a passagem da infância para a vida adulta, também fazem parte da coleção.
  • Outra peça de destaque é a máscara Cara-Grande, dos Tapirapé, usada no ritual mais tradicional do grupo por homens adultos. Ela é destruída no dia seguinte à cerimônia porque os Tapirapé acreditam que os espíritos dos antepassados ficam presos nas máscaras.

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Devolução de fósseis

O Brasil já recebeu em junho um fóssil de mais de 100 milhões de anos, que havia sido retirado ilegalmente do País nos anos 90 e que se encontrava no Museu de História Natural Karisruhe, na Alemanha.

  • Mais recentemente, numa outra fonte de negociação aberta com a França, ficou acertado o retorno de um lote de cerca de mil fósseis, todos também provenientes da região da Chapada do Araripe, na divisa entre Pernambuco, Ceará e Piaui.

“O Ubirajara divide a paleontologia em duas fases”, acredita o paleontólogo Juan Cisneros, da Universidade Federal do Piauí, um dos responsáveis pela campanha internacional pela volta do fóssil.

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“Ele abre um precedente, mostra que um fóssil traficado para o exterior consegue, sim, atrair a atenção do público em geral, o que nunca tinha acontecido antes. Por isso, as pessoas pensam que se trata de um caso único. Na verdade, é apenas um dos últimos de uma longa série.”

  • Cisneros lidera agora uma campanha pela volta de um outro fóssil, o Irritator challengeri, também retirado do País nos anos 90 por pesquisadores alemães.
  • Atualmente, se encontra no Museu de História Natural de Frankfurt. O paleontólogo já reuniu duas mil assinaturas em um abaixo assinado, pedindo a volta do fóssil. Antes disso, o País espera receber o lote de mil peças da França.

“Esses fósseis foram apreendidos em um container, no porto de Le Havre, em 2012, e seriam vendidos em um leilão online”, contou o paleontólogo Alysson Pinheiro, da Universidade Regional do Cariri, diretor do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, que também lidera as negociações pela volta dos fósseis.

“Foram dez anos de negociação, mas a decisão final foi favorável à devolução. Para se ter uma ideia, os fósseis estavam embrulhados em jornais aqui da região.”

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  • Também em junho deste ano, a Dinamarca confirmou a devolução de um manto tupinambá que está no país desde 1699, feito com penas vermelhas do pássaro Guará. O manto ainda não voltou ao País, mas a promessa é que ele chegue no início do ano que vem para fazer parte do novo acervo do Museu Nacional, no Rio.
O manto ainda não voltou ao País, mas a promessa é que ele chegue no início do ano que vem para fazer parte do novo acervo do Museu Nacional, no Rio Foto: Lennart Larsen/Museu Nacional da Dinamarca - 18/04/2000

“Há pouco tempo, conversando com Glicéria Tupinambá, que esteve à frente das negociações para a volta do manto, ela me disse que o pássaro de penas vermelhas, que estava sumido, tinha retornado ao território Tupinambá”, conta Joziléia Kaingang, secretária de Articulação e Promoção de Direitos Indígenas, do Ministério dos Povos Indígenas (MPI).

“Isso demonstra a relação de força, de uma força superior, que existe. Trouxe essa compreensão do poder do manto tupinambá, do fortalecimento da espiritualidade. Adornos plumários, objetos rituais têm essa magia, são concebidos a partir desse lugar da magia. Acho importante relatar isso para não indígenas para mostrar como os povos indígenas se relacionam de forma diferente com o sagrado.”

  • O manto é apenas um de um total de onze levados do Brasil durante os séculos XVI e XVII e espalhados por diferentes museus da Europa.

“Negociações de repatriação que hoje apresentam desfecho favorável talvez não fossem possíveis há vinte ou mesmo dez anos”, afirmou o diplomata Marco Antonio Nakata, diretor do Instituto Guimarães Rosa, responsável pela política cultural brasileira no exterior.

Movimento é internacional

No ano passado, o Metropolitan Museum of Art (o Met, de Nova York) devolveu ao Egito um sarcófago de ouro, depois que ficou comprovado que a peça tinha sido contrabandeada.

Em dezembro, a Alemanha devolveu à Nigéria a coleção de mais de 500 peças conhecida como “bronzes de Benin”, saqueados do país africano durante uma invasão britânica no século XIX, outros 24 artefatos para a Namíbia, além de restos mortais para a Nova Zelândia e o Havaí.

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Em julho deste ano, depois de um comitê governamental recomendar a devolução “incondicional” de bens culturais saqueados, a Holanda anunciou a restituição de quase 500 artefatos para suas antigas colônias na Ásia, a Indonésia e o Sri Lanka.

Há apenas algumas décadas, pedidos de repatriação não eram vistos com bons olhos por países da Europa. Basta lembrar que os grandes museus europeus estão repletos de peças oriundas dos mais diversos países e culturas – grande parte delas fruto de saques e pilhagens.

Um dos patrimônios mais antigos em disputa são os chamados Mármores do Parthenon, da Acrópoles, de Atenas. No começo do século XIX, a coleção de esculturas gregas com mais de 2,5 mil anos foi apropriada pelo embaixador britânico em Constantinopla, Thomas Bruce, conhecido como lorde Elgin, e levada para o Reino Unido.

No começo do século XIX, a coleção de esculturas gregas com mais de 2,5 mil anos foi apropriada pelo embaixador britânico em Constantinopla, Thomas Bruce, conhecido como lorde Elgin, e levada para o Reino Unido. Foto: REUTERS/Toby Melville

As peças são até hoje um dos maiores destaques da exposição permanente do Museu Britânico, embora a Grécia peça oficialmente a sua devolução desde 1832. Durante décadas, o governo britânico alegou que o país vizinho não dispunha de local apropriado para armazenar tamanho tesouro.

Em 2009, no entanto, após uma ampla reforma, o Museu da Acrópole, em Atenas, foi reinaugurado com uma nova ala especialmente projetada para as esculturas que adornavam o Parthenon. Mesmo assim, no começo deste ano, autoridades britânicas voltaram a negar um pedido do governo grego.

Correntes

Nesse debate existem basicamente duas grandes correntes. A mais antiga é a do internacionalismo cultural, segundo a qual os objetos devem estar nos locais onde seriam acessíveis ao maior número de pessoas, casos dos chamados museus universais, como o Louvre, em Paris, e o Museu Britânico, em Londres.

“A corrente internacionalista reproduz o argumento do museu universal, do museu abarrotado de artefatos e objetos adquiridos de maneira ilícita a partir da colonização”, afirmou o pesquisador Rodrigo Christofoletti, professor de Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Juiz de Fora.

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“Nem tudo precisa ser devolvido, mas há objetos fundamentais que precisam retornar por questões de reparação histórica.”

A corrente mais recente é a do nacionalismo cultural, segundo a qual os objetos devem ficar em seus locais de origem.

Com toda a discussão acadêmica sobre a decolonialidade, a segunda corrente vem ganhando espaço. Nos últimos anos, inclusive, muitos países europeus têm demonstrado uma nova postura em relação aos pedidos de devolução.

Em 2017, o presidente da França, Emmanuel Macron, deu o novo tom do debate ao afirmar durante uma visita a Burkina Faso: “Não posso aceitar que uma parte do patrimônio cultural de vários países africanos seja mantida na França. Há explicações históricas para isso, mas não há uma justificativa válida, duradoura ou incondicional”.

Encontro do presidente francês Macron com o presidente de Burkina Faso Roch Marc Christian Kabore, em 2021 Foto: REUTERS/Gonzalo Fuentes

Os mais visados

Atualmente, os bens culturais mais visados no Brasil são os fósseis de animais pré-históricos, sobretudo dinossauros e répteis voadores, geralmente contrabandeados por interesse científico. Na divisa entre Ceará, Pernambuco e Piaui, no nordeste brasileiro, se encontra uma região extremamente rica em fósseis visados por paleontólogos de várias partes do mundo, a Chapada do Araripe.

PF realizou, em 2020, operação contra tráfico de fósseis da Chapada do Araripe Foto: Polícia Federal - 22/10/2020

“É um dos maiores depósitos de fósseis do Cretáceo do mundo, com uma qualidade e quantidade excepcional e surpreendente”, afirma Alysson Pinheiro.

“Pela Constituição, os fósseis são patrimônio do povo brasileiro; ou seja, ninguém pode vender, comercializar. Mas é comum encontrarmos fósseis brasileiros sendo vendidos no mundo todo em sites de leilões. Toda vez que a gente identifica algum, a gente notifica as autoridades, para que seja aberta uma negociação.”

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Os fósseis são protegidos pelos artigos 215 e 216 da Constituição Federal, considerados bens públicos inalienáveis e, portanto, não passíveis de comercialização. Entretanto, não há fiscalização. Os paleontólogos estão tentando sistematizar as informações sobre os fósseis nacionais.

De acordo com a Interpol, somente em 2020 foram apreendidos 854 mil objetos culturais que circulavam irregularmente pelo mundo, incluindo material numismático (moedas, notas e medalhas), pinturas, esculturas, itens arqueológicos e bens bibliográficos.

Mais da metade desses itens foram identificados na Europa. Entre 2019 e 2020, a Interpol detectou também um aumento no número de escavações arqueológicas ilícitas na África, nas Américas e, principalmente, na Ásia e no Pacífico Sul.

Segundo o historiador Rodrigo Christofoletti, bens culturais são traficados por quadrilhas envolvidas com o mercado de arte, mas muitas comunidades dependem da venda de itens obtidos em escavações ilegais para sobreviver. Pior, organizações terroristas negociam esses objetos para lavar dinheiro ou mesmo para financiar atividades criminosas.

De acordo com a Unesco, o Estado Islâmico, por exemplo, começou a usar redes sociais em 2011, para comercializar objetos pilhados na Síria e no Iraque, para financiar expansão de suas atividades. Uma resolução de 2017 do Conselho de Segurança da ONU reconhece, formalmente, a associação entre terrorismo e tráfico de bens culturais.

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