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A palavra do ano de 2016

A que melhor representa uma dúzia de meses de tombos, do ser político brasileiro à autoestima geral, não poderia ser outra: queda

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Com tanto baixo astral, a palavra do ano só poderia ser “queda”. Caiu uma presidente, caíram ministros de quem a derrubou, caiu o PIB, caiu o nível de emprego, caíram máscaras; caiu para a segunda divisão um dos grandes do futebol brasileiro, o Internacional, e, na maior tragédia aérea do nosso esporte, caiu o avião que transportava jornalistas e o time da Chapecoense para a partida mais importante da sua história. Quedas sobre quedas: que ano! Não à toa os brasileiros chegam ao seu fim caindo pelas tabelas.

A queda é “o ato ou efeito de cair” (Houaiss), do latim “cadere” e implica quase sempre sentido negativo. O último verso do Inferno de Dante, e que tanto encantou Jorge Luis Borges, diz: “E caddi come corpo morto cade” (“E caí como corpo morto cai”). Verso que, provavelmente, inspirou o título em português da obra-prima de Hitchcock, Vertigo: Um Corpo que Cai. Fala-se na “Queda” assim, com maiúscula, para designar a expulsão do Paraíso, quando Adão e Eva desafiaram o Criador ao provar do fruto proibido. Adão foi condenado a ganhar a vida com o suor do rosto e Eva a parir em meio à dor. Esse é o nosso mito fundador, pelo menos da parte ocidental cristã da humanidade. A Queda, o Paraíso Perdido, o Éden que em vão tentamos recuperar no mundo imperfeito dos homens.

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De certa forma, o Brasil repete a mitologia e a nega. O imaginário europeu consagrou o País como uma espécie de paraíso na Terra. “Em se plantando tudo dá”, garantiu o primeiro cronista, Pero Vaz de Caminha, encantado com a fertilidade do solo e com a beleza sem pudor dos habitantes originais. A fama se firmou ao longo dos séculos. Aquele era um país pobre, cheio de problemas, mas também povoado por gente feliz e acolhedora, praias maravilhosas, florestas a perder de vista, rios imensos de água pura. Livre do frio e de calores extremos, sem terremotos, sem vulcões, sem grandes conflitos. Um país de povo criativo, músicos geniais, e que celebram a festa coletiva do Carnaval como nenhum outro. Alguns estrangeiros ainda pensam assim. Nós não pensamos mais. Já fazia algum tempo, aliás. Mas 2016 foi o ano da queda definitiva do mito do Homo Brasilis.

Quem se acostumou à ideia ingênua do “Homem Cordial”, leitura superficial de Raízes do Brasil, o livro de Sérgio Buarque de Holanda, com certeza sofreu um choque ao presenciar a carnificina ostentatória nas redes sociais, as brigas de trânsito, os enfrentamentos renhidos em manifestações de rua. A nação dividiu-se. Odiou-se. Já estava dividida, mas em 2016 o racha aprofundou-se. Caiu de vez a ideia de que conseguimos administrar nossos conflitos com jeitinho e jogo de cintura, que seríamos o povo da conciliação. O vale-tudo generalizou-se e hoje é tão perigoso sair à rua com a camisa de uma agremiação política como é passear com a camiseta do seu clube em redutos adversários.

A tolerância em relação ao outro fazia parte da nossa autoimagem, enganosa talvez, mas muito agradável de sentir e vender no exterior.

Essa ilusão caiu, junto com outras. Somos tão intolerantes com o diferente como outros povos. Talvez até piores, pois, por tradição acomodatícia, disfarçamos essa intolerância, inclusive a racial. Aqui queimamos os documentos da escravidão para não poluir a nossa História, mas olhamos de esguelha atitudes compensatórias em benefício dos carentes ou injustiçados.

A virtude possível dessa queda das ilusões seria a de colocar tudo à luz do dia, soltar os fantasmas, abrir a caixa de Pandora, vermos a nós mesmos sem os espelhos deformantes da auto-ilusão. Por exemplo, quem assistiu à sessão de 17/4 da Câmara dos Deputados na abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff, não tem qualquer direito de alimentar fantasias a respeito do ser político brasileiro. São aquilo que são. E foram eleitos por nós. A sessão, vale lembrar, foi comandada pelo notório (já na época) Eduardo Cunha, que por fim caiu e hoje está preso. Tudo isso é um imenso e constrangedor espelho que se oferece a nós.

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Mas convém não supervalorizar o fim das ilusões como forma de aprendizado. Não à toa, a palavra queda designa também decadência. Um clássico como “The Decline and Fall of the Roman Empire”, de Edward Gibbons, é traduzido entre nós como Declínio e Queda do Império Romano (ótima versão de José Paulo Paes). Assim, os tombos sucessivos de 2016 podem não indicar que atingimos olhar adulto e realista sobre nós mesmos, mas que entramos em processo irreversível de decadência. Uma espécie de envelhecimento prematuro, em que iríamos da infância à senilidade sem passar pela idade adulta.

É o que sinto quando ouço falar da “jovem democracia brasileira”, púbere e decrépita ao mesmo tempo. Porque se alguma coisa os tropeços de 2016 nos ensinam é que quem fala o tempo todo em democracia em geral mostra pouquíssimo espírito democrático. Nossa história republicana é uma sucessão de golpes e quarteladas. Quando se fala em “jovem democracia” é porque essa ideia jamais pôde ser plantada e enraizar-se de fato em corações e mentes brasileiros, por força de interrupções várias, viradas de mesa e expedientes espertos para deturpar a soberania da vontade popular e colocá-la a serviço de interesses outros. Neste ano, os saudosos da ditadura militar mostraram a cara e se exibiram em praça pública. Podem não representar maioria, mas são sintoma de que ideias democráticas não fazem parte do DNA nacional. Aqui, a democracia é uma espécie de “ideia fora do lugar”, para usar a expressão de Roberto Schwarz.

Na hipótese favorável, este ano de tombos pode ser uma janela de oportunidade para o brasileiro cair em si e recomeçar. Não do zero, que isso é impossível, mas de algum ponto concreto e palpável que lhe permita vislumbrar a imensa tarefa de construir uma democracia de fato e não uma mera formalidade jurídica.

LUIZ ZANIN ORICCHIO, JORNALISTA E CRÍTICO DE CINEMA. AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE CINEMA DE NOVO - UM BALANÇO CRÍTICO DA RETOMADA (ESTAÇÃO LIBERDADE)