Biblioteca de Secchin: da primeira autora negra a escrever um romance à personagem que comprou noivo

Aos 70 anos, o poeta e ensaísta carioca Antonio Carlos Secchin formou um dos acervos de literatura do século XIX e XX mais surpreendentes do Brasil. A reportagem teve acesso à biblioteca de mais de 20 mil livros montada pelo integrante da Academia Brasileira de Letras

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Por Leonencio Nossa
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É a história de uma biblioteca que narra vidas intensas. Nas estantes organizadas rigorosamente por autores e datas, os livros têm memórias únicas. O Guarani, de 1857, é um dos poucos que restaram da primeira edição do romance do cearense José de Alencar. Não menos raro, Úrsula, de dois anos depois, é assinado apenas por “Uma maranhense”. Maria Firmina dos Reis, primeira romancista negra do País, era a autora – mulher pagava caro se revelasse o talento de escrever.

Aos 70 anos, o poeta e ensaísta carioca Antonio Carlos Secchin formou um dos acervos de literatura do século XIX e XX mais surpreendentes do Brasil. A reportagem teve acesso à biblioteca de mais de 20 mil livros, montada pelo integrante da Academia Brasileira de Letras, no Rio. São livros, que jamais costumam ir a leilão, e têm valores elevados.

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Romancistas e poetas não costumam se dedicar à organização de uma biblioteca que vá além de livros de trabalho e pesquisa. O austríaco Stefan Zweig, o italiano Umberto Eco e o argentino Alberto Manguel são alguns dos escritores que fugiram à regra e personalizaram a tradição de colecionar obras raras. Secchin é outro deles.

“Só há uma coisa mais rara do que a primeira edição de certos livros. É a primeira edição de um livro que Antonio Carlos Secchin não tenha. Na verdade, que ele ainda não tenha --- porque, um dia, vai encontrá-la”, disse o escritor Ruy Castro ao Estadão. No último dia 3, o autor de Estrela Solitária e O anjo pornográfico – e outro apaixonado tesouros literários – assumiu uma cadeira na Academia com discurso de recepção feito por Secchin.

No acervo do acadêmico mesmo autores de sucesso revelam identidades desconhecidas. Chamado de “urso” pelos amigos, o cronista capixaba Rubem Braga, por exemplo, conhecido por ser fechado e discreto, fez uma dedicatória insólita no livro Ai de ti, Copacabana, de 1960. “A Lourdes de Oliveira, a violenta admiração – e um muito obrigado – do Rubem Braga”. Detalhe: a moça não abriu as páginas da obra.

Há livros com dedicatórias que podem ter causado repulsa a quem os recebeu. Murilo Araújo escreveu no livro Poemas completos, de 1960: “A Petrarca Maranhão – ao amigo querido e ao pardal da trova – com a velha estima do Murilo Araújo”. O pardal é o passarinho mais comum nas ruas brasileiras. Por sua vez, o poeta alagoano Jorge de Lima, fez uma dedicatória no livro Poemas, publicado em Maceió, em 1927, bem sincera no Natal daquele ano. “Benjamin Lima você é ingrato mas eu gosto de você.”

Mágoas não faltam na biblioteca de Secchin. Num exemplar do livro Museu de tudo, de 1975, o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto escreveu: “A Carlos Drummond de Andrade, seu sempre discípulo (embora mau), João Cabral de Melo Neto”. O mineiro deu o troco e repassou o livro para um amigo. Fez questão de deixar isso registrado na História. “Ao Gilberto, com um abraço do Drummond.”

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Poeta e crítico influente da cena brasileira, Secchin desenvolveu uma vida literária quase dupla. O zelo extremo com as palavras, marca da produção poética e dos ensaios do professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, define também o comportamento do bibliófilo.

No acervo de Secchin não há apenas as primeiras edições autografadas do cânone nacional, do romantismo, do século XIX, aos dias atuais, como os livros de Joaquim Manuel de Macedo, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Graciliano Ramos. Obras de nomes desconhecidos – e que, a qualquer hora, podem ser descobertos como autores revolucionários –, estão bem posicionados nas estantes. Autores negros, mulheres, periféricos, injustiçados. Se o cânone mudar e os gostos dos críticos e dos leitores forem alterados, a biblioteca estará adaptada ao novo tempo.

Já no século XX, a jornalista e escritora Maria Cecília Bandeira de Melo Vasconcelos adotava o pseudônimo Madame Chrysantème para assinar seus livros de capas com desenhos eróticos. Vícios modernos foi publicado nos anos 1920 em São Paulo. Não tinha como não ser um sucesso.

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Ao longo da trajetória intelectual, Secchin abriu mão de parte do tempo da poesia, da criação e da produção de ensaios para tirar da poeira e do esquecimento dos sebos obras de “colegas” rejeitados em sua época. Levou em conta diagramações, capas ousadas de capistas geniais. O trabalho de um bibliófilo pode ser o mais solidário das atividades do mundo dos livros. Pesquisadores e estudiosos sempre o procuram para ter acesso a uma obra republicá-la.

O tempo é de livros virtuais e formas diversas de comunicação. É também época de fechamento de livrarias, pouco caso de governos com bibliotecas públicas e, como observou Umberto Eco, do domínio de legiões de idiotas na internet. Nesse contexto, a montagem de um acervo de obras raras é a mais concreta declaração de amor ao livro, à leitura e à arte de contar histórias por caracteres e letras. “Nem sempre tem pessoas para apreciar devidamente coleções como esta, que tem uma razão de ser de uma vida.”

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No livro de contos, uma personagem desafia Secchin

Ao longo da história da literatura produzida no Rio, romancistas e contistas descreveram personagens fortes. Uma delas deixou leitores em dúvida se tinha traído o marido. Outra, uma senhora da alta sociedade carioca, decidiu comprar um noivo. Tipos femininos marcam obras como de Machado de Assis e José de Alencar.

Em Ana à esquerda, livro de prosa de Antonio Carlos Secchin, publicado pela Martelo Casa Editorial, o leitor encontra referências a clássicos, a desconstrução de perfis de figuras de histórias infantis e a criação de personagens pelo autor que mostram o desafio do atual momento literário. Uma delas é J, protagonista de um dos contos, que não é controlada nem mesmo pelo seu criador.

Na narrativa, o autor cria um companheiro para ela. A personagem, porém, exige que o rapaz seja apagado. Não quer ninguém na história dela. Para agradá-la, o autor lhe dá um terreno, tornando-a uma mulher rica. Logo surgem ladrões para roubar o terreno. Eles amarram a personagem, deixando marcas em seu corpo. Mais adiante, eles contam ao leitor que não eram ladrões coisa nenhuma. Teriam ido apenas conversar com J para explicar que o terreno era deles. J, porém, os recebeu com uma faca. Aparentemente, ela influenciou a narrativa do autor. A história era dela, o corpo também. Nenhuma narrativa masculina podia asfixiá-la.

Na sequência, a mesma arma é apontada para quem escreve a história. “Vira essa faca para lá”, diz o autor. J personaliza um tempo em que as personagens decidem por conta própria. Numa época de possibilidades infinitas de leitura de uma história, à esquerda ou à direita, a tradição literária segue seu caminho, agora num mundo de exigências por respeito e igualdade – sem amarras para a criação.

Além da prosa Ana à esquerda, Secchin lança Papéis de Prosa e Papéis de Poesia, pela Editora da Unesp. Nos livros, ele apresenta ensaios sobre obras fundamentais da literatura brasileira, com um olhar sempre atento para o leitor que não pertence a círculos acadêmicos.

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