Não haverá mais utopias no espaço sideral. Ou pelo menos não há na nova versão do futuro imaginada pelo diretor norte-americano J.J. Abrams para a célebre novela de ficção científica Jornada nas Estrelas (Star Trek). Com lançamento mundial previsto para 8 de maio, a franquia manteve seus personagens e ícones já clássicos do universo pop, como a espaçonave USS Enterprise, mas mudou em relação a seu conteúdo, criando um paradoxo: ao recontar a juventude do capitão James T. Kirk e de seu oficial de comando, Spock, a nova versão abandona suas ideologias. Em lugar do Homem redimido, há dilemas da vida real em seus protagonistas. O desafio de renovar a série, um cult para seus milhões de fãs incondicionais, os trekkies, foi empreendida por dois dos produtores mais badalados da TV e do cinema norte-americano atuais. Abrams e Damon Lindelof, criadores da série Lost, decidiram submeter suas visões de futuro ao grande público. Se não é sombria, a receita também não é marcada pelo romantismo da versão clássica. A solução, encontrada por não fãs - nenhum dos membros do elenco e da produção se diz um trekkie - é destinada a agradar aos seguidores de sempre, sem abrir mão de novos admiradores. Criada nos anos 60 pelo roteirista e produtor de TV Gene Roddenberry, a franquia de ficção científica dos estúdios Paramount agregou legiões de fiéis ao longo de 40 anos. Nada menos de seis séries televisivas e de dez filmes para o cinema foram produzidos no período, sem contar romances, jogos de videogame e toda sorte de gadgets que exploram a marca Star Trek. Seu sucesso de público, por vezes traduzido em boa recepção de crítica, foi apostar na projeção de um futuro "pós-apocalíptico" para a humanidade, no século 23. Até lá, o Homem não apenas teria dominado a tecnologia, como a que permitiria a viagem espacial na velocidade da luz, mas - o mais importante - teria dominado a si mesmo. Roddenberry idealizou um universo utópico, no qual a Terra integraria uma Federação dos Planetas. O ser humano, então, teria superado seus próprios vícios e fraquezas, erradicando as doenças, a miséria, o racismo, a intolerância, a guerra, e seduzindo-se pelo altruísmo. Embora não negue essas informações, nada disso está presente no filme de Abrams. Os jovens descritos em Star Trek não demonstram a fé no outro, mas sim a preocupação com si mesmos. "Você pode encontrar várias metáforas ao longo da história, como o terror, o medo, o risco de destruição do planeta", ressalvou o diretor, respondendo ao Estado em uma das entrevistas concedidas pelo elenco do filme em Paris na quarta-feira. "Mas nosso foco é outro: dois personagens em busca das melhores versões de si mesmos, dois jovens perdidos, um rebelde, outro dividido." O rebelde é James T. Kirk. Interpretado por Chris Pine, um ator de TV com breves passagens por séries como E.R. e Six Feet Under, o novo capitão tem a missão de substituir no imaginário do público o celebrizado por William Shatner. No longa, Kirk ainda é um aspirante a oficial, um jovem intempestivo e desorientado pela morte heroica do pai, ocorrida após 12 minutos como comandante de uma espaçonave. O dividido é Spock, encenado por Zachary Quinto, o Sylar de outra série de ficção, Heroes. Ele, aliás, rouba a cena da nova versão como filho de uma terráquea e de um "vulcaniano" (nascido no planeta Vulcain) que, exortado a sepultar suas emoções em favor da razão absoluta, vive um conflito de personalidade. Semelhante no físico, no gestual e no temperamento a seu predecessor, Leonard Nimoy - com o qual contracena, em uma boa sacada do roteiro, que também joga com viagens no tempo -, Quinto empresta magnetismo, se é que é possível, a seu personagem. Ele eclipsa de tal forma Kirk que nem mesmo a mocinha do filme, a encantadora Uhura (Zoe Saldana), sucumbe aos ares de James Dean do capitão, preferindo as orelhas pontudas e a sobrancelha esquisita de Spock. Entretanto, a fórmula do "novo" - Star Trek já havia tentado outro recomeço, em 1987, com The Next Generation - não é nova. Explorar a juventude dos heróis, ou suas fases de pré-afirmação como tais, foi o que, entre tantos outros roteiristas, fez George Lucas ao relançar a série Star Wars no fim dos anos 90. O filme de Abrams tem bons e maus momentos: a preservação dos personagens centrais da série, a rivalidade inicial entre Kirk e Spock, o humor eficiente e o abandono das ideologias são predicados. A superficialidade da história, talvez efeito colateral do fim das utopias, a atuação (literalmente) inexpressiva de Eric Bana como o vilão sem sal Nero e o ar Guerra nas Estrelas do roteiro são defeitos capazes de desagradar a todos - trekkies ou não.
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