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Zilio, entre a história e a tela virgem

Exposição do artista carioca, que será aberta hoje, reúne pinturas que traduzem suas reflexões sobre o legado moderno

Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

A presença de um tamanduá descendo o corrimão de uma escada, nas recentes telas do pintor carioca Carlos Zilio, é capaz de sugerir um comentário anedótico, até mesmo porque o mamífero, devorador de formigas e cupins, poderia, por equívoco, ser visto como metáfora num país de "muita saúva e pouca saúde". Antes que alguém se aventure por terreno tão pantanoso, é bom esclarecer que é só um tamanduá, animal de estimação do falecido pai do artista. Entre outros truques, o bicho costumava descer o corrimão da escada dos avós. Reminiscências como essa deram para ocupar a cabeça de Zilio, cuja vida artística tem sido um embate permanente com a história da pintura, a ponto de o tamanduá, agora, vir acompanhado de pequenos círculos vermelhos que sugerem as maçãs de Cézanne, espécie de pai da modernidade sem o qual todos os contemporâneos que se aventuram a pintar são órfãos. Em 1986, os tamanduás vinham acompanhados de caveiras, outra referência ao incontornável Cézanne, que, como se sabe, agrupou alguns crânios em naturezas-mortas antes ocupadas por maçãs. Dessa associação seria possível concluir que a pintura de Zilio, hoje com uma paleta mais reduzida, teria deixado a zona escura que caracterizou a década de 1980 - dominada pela onipresença dos neo-expressionistas e transvanguardistas - para atingir uma zona de luz. Parafraseando Wilson Coutinho, Zilio teria saído do "abismo" para o "jardim", duas metáforas inventadas pelo falecido crítico para definir os pólos que dividiriam a modernidade na pintura brasileira: o que aspiraria à felicidade do jardim (Tarsila, Volpi, Sued) e o que desceria ao abismo existencial (Goeldi, Iberê Camargo). Considerando ter sido Zilio aluno de Iberê, seria lícito esperar que ele tivesse permanecido na zona saturnina. Mas o pintor assume trabalhar com uma espécie de contradição interna, que sempre o empurra para o lado oposto daquele em que se encontra. Tem sido assim desde que Zilio, militante político nos anos 1960, trocou a arte conceitual pela pintura, abandonando o contexto experimental para abraçar há 30 anos uma técnica secular, condenada pelas vanguardas e tida como morta. No começo, após voltar do exílio francês, encantou-se com os modernistas (Volpi, Tarsila e Guignard), mas conservou o gesto incisivo, afirmativo, do mestre Iberê. A redescoberta de Cézanne nos museus franceses, claro, foi uma epifania. O crítico francês Yve-Alain Bois chegou a comparar a trajetória de Zilio à de Gerhard Richter, ambos artistas afetados por essa visão epifânica e transformadora. Richter, treinado no realismo socialista da Alemanha Oriental, mudou radicalmente ao cruzar a fronteira, experimentando todos os gêneros de pintura. Zilio, que via a arte como uma extensão da atividade política, reviu sua posição. "Vinha de uma visão de vanguarda política e plástica. Experimentei a derrota disso, o que me fez ter uma relação mais cuidadosa com a história", diz o artista, revelando: "Recusava-me a entrar num museu que não fosse de arte contemporânea." Hoje, as referências à história da arte não estão apenas na superfície da tela como nos títulos das obras - e o crítico Paulo Sérgio Duarte, que assina o texto do catálogo, lembra alguns deles que citam diretamente Cézanne, Poussin e o crítico alemão Erwin Panofsky, um dos defensores do método iconológico na análise da obra artística - que leva em conta a história pessoal do artista e seu contexto. Zilio, também crítico e autor de uma obra fundamental para o entendimento da identidade da arte brasileira (A Querela do Brasil), acha que o País não presta muita atenção ao que se passa no mundo há mais de 40 anos, desde Robert Ryman, para ser mais exato. "Você tem, hoje, uma produção como a do pintor Luc Tuymans, bastante expressiva", cita, como exemplo da vitalidade da pintura. O Brasil, enfim, teria comprado a idéia de que a pintura está morta. Ryman, para quem chegou agora, é o autor da célebre frase: "Não é uma questão do que se pinta, mas como se pinta." Há anos que o americano se recusa a dar títulos às pinturas, por considerar que essas se referem à própria pintura e aos materiais que usa. Richter, segundo Zilio, expressaria um pouco esse momento da pintura, por abordar novas possibilidades. "Talvez seja o grande pintor histórico do século 20", define Zilio, cujo lugar na história da arte brasileira está garantido desde a época em que produziu objetos político-panfletários como Lute (1967), um rosto moldado em resina com a boca fechada e a palavra "lute" presa a ela, isso em plena ditadura militar. Aquela era uma época de cores fortes, pop, até mesmo porque era preciso enfrentar as trevas desse período negro. Hoje, as pinturas de Zilio tendem ao monocromático, como as de Ryman. Mais especificamente, essa seria uma pintura que "transpira certa sensualidade e inevitáveis associações à cor da pele", segundo o crítico Paulo Sérgio Duarte. Zilio revela usar tinta industrial, esmalte sintético, com uma cor fabricada especialmente para ele. Mas, confirma o artista, é uma cor que remete "às costas das odaliscas de Ingres" e tem também algo do barroco Rubens. Não se trata de uma atitude paródica. Nem de uma reverência. Essa paleta foi sendo reduzida em função dos embates travados pelo pintor, assume o artista. Quando redescobriu a pintura, usava o verde vivo de Tarsila e o rosa pálido de Volpi em busca de nossa identidade pictórica. Hoje, a cor já não importa tanto. Como diz Robert Ryman, importa mesmo é como se pinta. Serviço Carlos Zilio. Gabinete de Arte Raquel Arnaud. Rua Artur Aze-vedo, 401, 3083-6322. 10h/19h (sáb., 12h/16h; fecha dom.). Grátis. Até 17/10. Abertura hoje, 19h

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