Há um terror brasileiro que está ganhando o mundo. As Boas Maneiras, da dupla Juliana Rojas/Marco Dutra, ganhou páginas – e páginas – da prestigiada Cahiers du Cinéma. Morto Não Fala, de Dennison Ramalho, com Daniel de Oliveira como o homem que, contrariando o título, conversa com mortos, está tendo ótima aceitação em festivais internacionais.
E, nesta quinta, 9, estreia O Animal Cordial, de Gabriela Amaral Almeida. Não se iluda com o título. A sangrenta ficção da diretora é sob medida para desmentir a tese da cordialidade brasileira (e humana, em geral). O homem é um bicho tinhoso. Deem-lhe um revólver e ele sai atirando. Um facão e sai despedaçando.
Um restaurante, o dono, a atendente, um cliente solitário, um casal de metidos, o povo da cozinha – e assaltantes. Eles chegam ameaçando deflagrar uma onda de violência, mas são devorados por ela. Vira, de alguma forma, uma disputa de poder. Homens contra mulheres, uma certa ideia de masculino (Inácio, o personagem de Murilo Benício), uma certa ideia de feminino (Sara, Luciana Paes) e Djair, o chef, o cozinheiro gay, Irandhir Santos, que concentra os dois, masculino e feminino.
Prepare-se para o banho de sangue, mas a diretora faz uma observação surpreendente, curiosa até. “É um filme de amor.” Como, se todo mundo fica se matando lá dentro? “Nem todo mundo. Você veja que num terror tradicional, o povo da cozinha seria o primeiro a ser sacrificado. Poupamos, conscientemente, negros e nordestinos. E se há um conflito de gênero, de poder, é gerado pela solidão, pela falta de amor. Sara, a garçonete, é exemplar. É o eixo principal do filme. Djair e ela. Mesmo com risco de spoiler, o desfecho dos dois carrega a alma do filme. Mesmo com todo aquele morticínio, não creio que seja um filme pessimista.”
Gabriela frequentou o laboratório do Sundance em 2014. Antes disso, já se impregnara do cinema de gênero, que é o seu preferido e ela já exercitava nos curtas. Exercita no próximo longa, que estará na competição de Brasília – A Sombra do Pai, com Júlio Machado e Nina Medeiros. Uma menina evoca o espírito da mãe que morreu para tentar fazer com que o pai, um pedreiro deprimido, reaprenda a viver.
Não é um filme de morto-vivo, adverte a diretora. Há um terror brasileiro? Gabriela está tão jogada nesse caldeirão que não tem distanciamento para avaliar, “talvez no futuro seja possível fazer isso”. Mas ela sabe que, se os códigos de gênero – a construção do clima, da atmosfera que gera o medo – vem do cinema estrangeiro (Hollywood?), os personagens são brasileiros. O Brasil cabe naquele restaurante assaltado pelo terror e pelo medo.
É um pouco o que diz Rodrigo Teixeira, que produz O Animal Cordial – e produziu o terror norte-americano The Witch/A Bruxa, que tanta sensação fez em Sundance. “Em comparação a outros gêneros, sinto que a nossa produção de terror ainda precisa amadurecer. Digo isso, porque acho importante, como uma cinematografia nacional, buscarmos nossa autenticidade em relação a um gênero. É isso que nos dá destaque, e também faz despertar o interesse no público. Temos exemplos recentes, e fico animado, com filmes que têm surgido e que trabalham o gênero terror e suspense com questões que são nossas, trabalhando com as referências e as chaves próprias do gênero, mas sem obrigatoriamente mimetizar o que vem de fora.”
E Teixeira ressalta – “O terror também requer uma grande sofisticação por parte do diretor, o desafia a ter um roteiro engenhoso, sofisticado para convencer o público e tornar-se relevante. E acho que temos muitos talentos que estão aí e que conhecem o gênero a fundo e têm formação para trabalhar esses aspectos.”
O Animal Cordial nasceu de uma proposta de Rodrigo Teixeira – a de que Gabriela filmasse seu roteiro em 21 dias. Ela fez uma contraproposta pouco usual, mas perfeitamente viável, considerando que o filme se passa num só ambiente, o restaurante construído em estúdio (uma casa que foi adaptada para as necessidades da produção).
Gabriela resolveu filmar cronologicamente, Teixeira aceitou. “Ele é um produtor muito criativo e compreende as necessidades da direção”, diz Gabriela. Dessa forma, a construção e desconstrução psicológica dos personagens ficou mais consistente (e foi facilitada) para o elenco.
Murilo Benício e Irandhir Santos analisam seus personagens e as importantes questões de gênero embutidas em ‘O Animal Cordial’
No texto acima, a diretora Gabriela Amaral Almeida e o produtor Rodrigo Teixeira, de O Animal Cordial, já falaram sobre o desafio de se produzir um terror brasileiro. Os códigos de gênero podem ser estrangeiros, mas a brasilidade é essencial – nos conflitos, nos personagens.
O terror brasileiro existe desde os tempos heroicos de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, que virou referência de gênero no País. Mas o novo terror tem as suas especificidades – questões de gênero em As Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra, e O Animal Cordial; negritude e poder em O Nó do Diabo, filme em episódios com a eterna Xica da Silva, Zezé Motta, etc.
O importante é que tem havido cada vez mais interesse, do público e da crítica, por esse tipo de filme. O entusiasmo contamina o elenco do filme que estreia nesta quinta, 9. “Gabriela é doida, mas é uma doida brilhante, inteligente, genial. E nós atores também somos doidos. Então casou. O Inácio é essa coisa que todo mundo tenta decifrar – o cozinheiro, o ex-policial. Mas nesse surto que o leva a matar acho que ele foge aos rótulos. A cena do espelho é decisiva. Quando quebra o espelho, estilhaça a própria integridade, a personalidade”, diz Murilo Benício, falando sobre seu personagem.
E Irandhir Santos. “Conhecia a Gabriela dos curtas, e achava que era muito interessante. Quando ela me propôs o papel, aceitei. Nunca tinha feito cinema de gênero, de terror. Gostei da experiência e faço de novo, se ela me chamar. Gabriela é muito aberta. Quando cheguei, o cozinheiro tinha outro nome. Propus Djair e ela topou. Djair era um personagem da minha infância. Era o gay da cidade, que cozinhava para as grandes famílias. Quando alguém dizia ‘Lá vem Djair’, era um rebuliço. Havia um clima de chacota, mas também de medo. Um dia, Djair desapareceu. Voltou tempos depois com o cabelo comprido. Tinha feito um aplique, que era coisa cara, rara, na época. Djair passava com aquele cabelão. Propus a Gabriela o nome e a cabeleira, ela aceitou. Djair era um forte, num mundo adverso. O Djair de O Animal Cordial, também.”
Essa é a grande questão embutida em O Animal Cordial, que a própria diretora define como “um filme de amor”. Tudo o que aquelas pessoas fazem naquele restaurante – a carnificina – é por causa da solidão extrema, e dolorosa. Gabriela também vê a cena do espelho – a que Murilo Benício se refere acima – como visceral.
“É o momento da implosão do macho, em que ele expõe a sua fragilidade. Inácio é produto de uma cultura de sucesso e poder. Mas ele não está à altura das exigência que essa condição exige. É fraco, e se expõe como tal.” Sara, interpretada por Luciana Paes, é outra figura pivotal. Sara começa invejando tudo aquilo que é supérfluo na personagem de Camila Morgado, quando chega para jantar com o marido. As joias, a bolsa. Sara se alia a Inácio durante a explosão de violência, mas ele não vai conseguir permanecer com esse macho opressor.
A cena de sexo é um marco no cinema brasileiro (e mundial). No cinema pornô, inclusive, mesmo não sendo explícita. Inácio fica por baixo. Sara, por cima, é um corpo em pura vibração, como se ela estivesse sendo percorrida por descargas elétricas. “A cena está escrita desse jeito no roteiro, e foi muito coreografada. Todos aqueles movimentos foram estudados”, explica a diretora. “É a mulher em posição de poder, sugando do homem sua força, energia. Inclusive, muita coisa que vem depois tem origem no significado simbólico dessa cena que tem tudo a ver com a moderna questão de gênero.”
Mesmo com risco de spoiler – cuidado! –, Gabriela define seu filme de amor (e terror) como otimista. “Para mim, era importante afirmar alguma coisa. O ruim é que qualquer coisa que eu diga quanto ao final pode quebrar a surpresa, mas é importante que as pessoas, quando virem, pensem no significado libertário de certos gestos. Muita coisa que sugere um fim na verdade aponta para um começo.”
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