Como Rugendas e Von Martius retrataram diferentes visões do Brasil

Artistas viajantes alemães vieram ao País com olhares distintos, como mostram uma exposição que abre hoje e um livro recém-lançado

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Por Antonio Gonçalves Filho
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Uma exposição sobre Rugendas (1802-1858), que será aberta hoje, na Caixa Cultural SP, e o recente lançamento de um livro sobre o médico e botânico Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), de Pablo Diener e Maria de Fátima Costa, reavivam uma antiga discussão sobre como os pintores viajantes retrataram o Brasil no século 19 e implantaram no imaginário europeu a ideia de um pitoresco paraíso – ou do inferno, considerando as imagens de violência contra os escravos negros registradas por Rugendas.

Aves às margens do rio São Francisco são comparadas pelo cientista a uma visão do paraíso perdido Foto: CARL FRIEDRICH PHILIPP VON MARTIUS

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O título da mostra da Caixa, Rugendas, Um Cronista Viajante, que reúne meia centena de obras do artista alemão, resume a maneira como o pintor e desenhista, apesar de mostrar o Brasil de forma idealizada, a exemplo de Martius, não se rendeu exclusivamente ao pitoresco, como sugere o título de seu principal livro, Voyage Pittoresque dans le Brésil (Viagem Pitoresca Através do Brasil, Paris, 1827/1835).

Rugendas, um artista visual antes de tudo, assumiu o papel de cronista do Novo Mundo – ele ambicionava ser o “grande ilustrador da América –, um documentarista que, fiel ao modelo estético europeu e à sua visão subjetiva, tentou retratar a seu modo a vida dos brasileiros. No entanto, passou longe de Debret nesse tópico – o francês fez, de fato, uma crônica mais vigorosa da sociedade colonial brasileira, define Pablo Diener, também autor com Maria de Fátima Costa de um livro sobre Rugendas.

Como observa a curadora da exposição, Angela Âncora da Luz, a obra de Rugendas “está impregnada de um espírito romântico com formação clássica”. Ele, por exemplo, representa um índio seguindo esse cânone clássico, conclui a curadora, o que exige do espectador um esforço de distinção entre seu projeto estético e científico. Desenhista da Expedição Langsdorff – organizada pelo barão com o objetivo de fazer um inventário do Brasil – Rugendas personificou o artista-viajante encarregado de traduzir com precisão a natureza do País e dos brasileiros. Mas, em 1824, desentendeu-se com o organizador da expedição, patrocinada pelo governo russo, e decidiu continuar a viagem por conta própria.

'Castigo público na Praça de Santana', 1835, gravura de Johann Moritz Rugendas Foto: Johann Moritz Rugendas

Já o naturalista Martius, que chegou antes, em 1817, com a expedição do cientista e zoólogo Johann Baptist Von Spix (1781-1826), não era tão impetuoso ou autônomo. Na realidade, tinha plena consciência de ser dependente e estar a serviço da Academia de Ciências da Baviera para pesquisar e formar coleções botânicas, zoológicas e mineralógicas. Eurocêntrico, preconceituoso, defensor da monarquia, considerava o colonizador português superior às “raças inferiores’ que escravizou. O europeu espelhava, segundo Martius, “a civilização cristã” em terras remotas como o Brasil, atribuindo à Providência a mistura étnica entre caucasianos, indígenas e afrodescendentes (religioso, ele, contudo, duvidava que os índios fossem obra do Criador, chegando a afirmar que não passavam de “restos” da civilização).

Rugendas, bastante crítico em relação ao colonizador e à nobreza, não chegou a tanto. Via os índios como seres que foram brutalmente expurgados do processo civilizatório ao serem submetidos à escravidão e relegados à condição de “restos’. Os autores do livro dedicado a Martius, Pablo Diener e Maria de Fátima Costa, também observam que os negros foram igualmente tratados como cidadãos de segunda categoria pelo naturalista. “Martius, de fato, jamais estudou nem o mundo africano em si mesmo, nem a população afro-americana”, confirma Pablo Diener, em entrevista exclusiva ao Aliás, comentando as diferenças entre Martius e Rugendas.

Gravura deCarl Friedrich Philipp von Martius Foto: IMS

“Martius foi artista por necessidade, era rigoroso em termos de observação do colonialismo brasileiro, defendendo a incorporação dos índios à sociedade, enquanto Rugendas, artista por vocação, tem uma postura mais próxima de Humboldt (cientista polivalente que viajou pela América do Sul entre 1799 e 1804), uma consciência social marcada por sua formação burguesa com forte desconfiança da nobreza, o que explica também seu atrito com o barão Langsdorff”, compara Pablo Diener.

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O que encantava Martius no Brasil era mesmo a natureza – em particular as folhas das palmeiras. Não por acaso, o livro dedicado a ele por Diener e Maria de Fátima Costa destaca seu papel como botânico que, com a ajuda do amigo Goethe, teve seu tratado sobre as palmeiras divulgado pelo escritor – assim como seus textos sobre a fisionomia das plantas brasileiras. Muitos consideram Flora Brasiliensis a obra de maior importância assinada por Martius, por documentar a maioria das espécies de plantas brasileiras, e não Viagem ao Brasil, descrição dos costumes de várias tribos e das línguas faladas por elas.

O fato é que tanto Goethe influenciou o pensamento de Martius como este marcou a produção literária do escritor em seu último período. As “afinidades panteístas” entre Goethe e Martius foram temas de um estudo do professor de Teoria Literária e doutor em Germanística Marcus V. Mazzari, em que enfoca aspectos das viagens brasileiras do naturalista e o intercâmbio entre ele e o autor de As Afinidades Eletivas. Mazzari vê, inclusive, “vestígios das concepções” de Martius na segunda parte do Fausto de Goethe. Deus e natureza, segundo Goethe, leitor de Espinosa, seriam sinônimos. Martius veio ao Brasil para constatar essa simbiose – e o professor cita particularmente uma passagem de Martius em que o cientista descreve suas impressões sobre a natureza amazônica e o sentimento de uma “fusão cósmica e felicidade que o acometem”, uma espécie de teofania em plena selva.

Na exposição de Rugendas, aberta até 31 de março, a relação do artista viajante alemão com a natureza não é menos importante. A curadoria dividiu a mostra em três núcleos: Olhar a Terra, com paisagens do Rio, São Paulo, Espírito Santo, Mato Grosso e Minas Gerais; Olhar o Homem, que reúne cenas da vida cotidiana, tipos e etnias; e Plantas da Terra, seus estudos da flora e da fauna brasileira. Todas essas imagens foram extraídas do álbum Viagem Pitoresca Através do Brasil, anteriormente citado.

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O livro, aliás, foi criticado por Martius, ainda em 1827, numa carta dirigida ao príncipe Maximiliano de Wied-Neuweid, logo depois de ver os primeiros cadernos do artista-viajante, segundo pesquisa dos autores do livro Rugendas e o Brasil. Assim se manifestou Martius: “O senhor Rugendas se ajeita compilando um texto enganoso, escrito a partir de seus antecessores, sem dar nomes”. Evoque-se que o escritor Victor-Aimé Huiber era amigo de Rugendas e há quem defenda sua interferência na elaboração do livro. E também as imagens receberam críticas. Martius, sobre o primeiro caderno de desenhos de Rugendas que viu, comenta: “Parece-me que há aí mais bom gosto que verdade. Assim, por exemplo, na selva aparecem pássaros africanos, e na região de montanhas há araucárias junto com palmeiras”.

Para Martius, tais liberdades eram injustificáveis na obra de um ilustrador de uma expedição científica. Cabe observar que essas distorções não dizem respeito apenas às representações da flora e da fauna. Martius, que estudou os índios, classificou a representação dos nativos de desastrosa, citando em especial os desenhos dos botocudos feitos por Rugendas. A questão a veracidade tem a ver com a finalização dessas litogravuras na França – houve muita interferência dos artistas gráficos que cuidaram dos desenhos originais. O fato é que, cada um a seu modo, Rugendas e Martius deixaram um legado importante. Foi com eles que aprendemos a conhecer melhor o Brasil.

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