Em memórias, a crítica Marjorie Perloff relembra sua fuga de Viena para Nova York

Crítica de poesia judia fugiu da Europa e conta como foi seu primeiro contato com a América em 'O Paradoxo de Viena'

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Por Aurora Bernardini
Atualização:

Grande parte do último livro de Marjorie Perloff (née Gabriele Minz), O Paradoxo de Viena trata da ambientação na Nova York dos anos 1940 de uma menina de sete anos que, com sua família da alta classe média (o avô materno fora ministro das Finanças do governo de Engelbert Dollfuss, na Áustria, em 1932), deixa Viena um dia após o Anschluss de março de 1938, a tempo de escapar do nazismo, e da transformação dessa alegre menina de tranças numa das mais conhecidas críticas literárias norte-americanas, autora de livros como A Dança do Intelecto, Gêneros Pós-modernos, Artifício Radical, entre outros.

A escritora austríaca Marjorie Perloff Foto: Acervo pessoal

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A infância idílica na Viena modernista de Wittgenstein (cuja ambiência foi também objeto de outro livro da autora, A Escada de Wittgenstein), que paradoxalmente tornar-se-á também a Viena de Hitler, termina de repente com outro paradoxo: Hilse, a mãe, que laconicamente comunica às crianças : “Agora não somos mais austríacos, Hitler tomou a Áustria”, sem nada dizer sobre o fato de eles terem que deixar o país por serem judeus, – “com certeza porque na verdade sempre fomos educados como austríacos” – rememora a autora.

Mas aqui está ela, em alguns recortes do Novo Mundo que serão objetos de comentários, chegando à casa de tijolos alugada pelos pais em Nova York (Riverdale), já assimilando a língua e sendo matriculada, com o irmão, numa escola do Bronx, ansiosa por participar em tudo da vida americana e, principalmente, por não ser diferente dos demais. Esse foi um dos motivos da mudança do seu nome de Gabriele para Margie (a colega mais popular na escola primária do Bronx), algum tempo depois, em 1944, quando já estudava no ginásio, em Fieldston e mais tarde, para o definitivo Marjorie. “Como teenager (...) eu não queria nada mais do que ser exatamente igual a Patsy Kook ou Bobby Litt, que foram assistir South Pacific duas ou três vezes e que achavam o livro Fountainhead de Ayn Rand o melhor romance de todos os tempos”.E que, nos acampamentos de férias da escola vestiam as mesmas camisetas, os mesmos shorts e tinham que realizar as mesmas tarefas, inclusive cantar as mesmas canções dos sindicalistas dos anos 1930.

De fato, um dos anseios dos membros da sociedade americana é o de não se sentir diferente dos outros, ou, segundo Walt Whitman, de acatar “o desafio sobre o qual se edificou a América: o respeito pelo homem comum”. Virando a questão pelo avesso, eis como explica isso o historiador francês Alexis de Tocqueville, em seu famoso livro A Democracia na América (1835): “Numa sociedade de tipo tradicional, hierárquica, aristocrática, o dinheiro pode ter uma importância relativa. A distinção é feita pelo tipo de ocupação, pelo desempenho de certo papel. Já numa sociedade menos aristocrática, mais igualitária, o dinheiro adquire maior importância, pelo fato de ser o único, ou quase o único instrumento de diferenciação.”

Por isso mesmo, continua Tocqueville, no mesmo livro, num trecho agora citado pela autora: “Não existe, na América, nenhuma classe em que a propensão para os prazeres intelectuais seja transmitida sem constrangimento, assim como o lazer que permite a eles se dedicar, ou que considere dignos os trabalhos do intelecto...”

Com efeito, o pai de Marjorie, intelectual vienense, é agora empregado como auditor de uma firma americana, após concluir seus estudos na Universidade de Columbia em menos de dois anos e, no começo de 1941, já recebe semanalmente a quantia de US$ 50,00, o que o inclui nos padrões americanos de “sucesso” . Eis sua descrição, em carta a um amigo, de uma fábrica, aonde havia sido enviado para uma auditoria: “Era exatamente como as fábricas americanas que se veem nos filmes. Salas comerciais que chegam ao ridículo da elegância e, nos galpões de trabalho, 300 a 400 mulheres super maquiadas em uniforme cinza com debruns azuis e chapeuzinhos coquetes. As máquinas, novíssimas, e todas as garrafinhas se movendo sobre esteiras – para encurtar – uma cena de Hollywood”.

A fórmula está inserida visceralmente no modelo americano, diz Umberto Eco em seu ensaio O Modelo Americano (de A Redescoberta da América). Essa tendência-mãe a que Eco chama de tudo-ou-nada ou de pegue-ou-largue remonta “ à grande e terrível, útil e revolucionária invenção da linha de montagem, onde não há espaço para a bricolage, ... força e fraqueza da América e força e fraqueza de nosso futuro desenvolvimento ( a serialização), que vem acompanhada pela sua antífrase: só-uma-parte-por vez, ou seja, a especialização extremada”. 

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Apesar do pai de Marjorie ter um passado de Kultur europeia atrás de si, de cuja privação sentia falta (em Viena, além de exercer sua atividade profissional de advogado, fazia parte de um círculo de estudos, fundado por um primo de Wittgenstein) não podia deixar de reconhecer as vantagens do ethos político dos Estados Unidos, tal como o descreve Walter Benn Michael em seu discutido Our America, (1995), citado por Marjorie: “É absurdo assumir que só porque se tem um remoto ancestral vindo de uma cidade da Galícia ou de um vilarejo na Ucrânia, se deva ser rotulado para sempre como judeu, sem que sejam tomadas em consideração as complexidades da formação de cada identidade, as crenças, os atos. A América, vista desse ponto de vista, é a terra da oportunidade, do ‘be what you wanna be’, como diz a canção”.

Pelo menos assim era nos felizes anos 1940, quando a utopia era possível e não havia a abolição das conquistas atribuídas à globalização, nem havia muros surgindo na fronteira com o México, nem as restrições progressivas da liberdade atribuídas ao terrorismo . 

Mas ouçamos outras vozes, a de Beniamino Placido , por exemplo, co-autor, com Umberto Eco, de A Redescoberta da América, em seu ensaio A Invenção da América: “Comecemos pelos romances” – diz ele – “a história dos romances de Steinbeck e de Caldwell que hoje nos parecem um tanto mediocrezinhos, mas que, naquela época, nos pareciam belíssimos ou, ao menos, importantíssimos... “ Um enorme caminhão vermelho tinha parado diante da venda de secos e molhados, em pleno campo.” – Assim começa As Vinhas da Ira de Steinbeck -- “ O cano de escapamento resmungava em surdina, soltando um véu quase invisível de fumaça azulada”.

Bebidas, comidas, cano de escapamento, fumaça... quem falava disso em 1941, na Europa? Mas estamos em Oklahoma, e ali, no meio de coisas concretas, sente-se o cheiro de cavalos, de pólvora, de tiros, de Oeste. Isso irá abrir o caminho para o cinema – a grande paixão das multidões – considerado na época como uma espécie de literatura popular, e para a propaganda, como diz Gian Paolo Ceserani, (autor do último ensaio de A Redescoberta da América, Uma América Marcada Target).

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Segundo Placido, esse igualitarismo, essa “massificação” que a cultura americana parecia propor à jovem Marjorie como lei indiscutível é, ao contrário, um fenômeno indiscutível de fragmentação.

Quem percebera isso, – continua explicando Placido – foi primeiramente, e por muito tempo unicamente, ninguém menos que Charles Fourier. O economista francês, contemporâneo de Tocqueville, tinha reparado que uma sociedade comercial – como sempre foi a sociedade americana – propunha como programa institucional justamente a subdivisão, a fragmentação, a atomização do corpo social. Foi esta a crítica fundamental ao nascente industrialismo que o pai de Marjorie viu na fábrica de bebidas: cada um fazendo uma parte, sem saber do todo, nem das outras partes. Fourier caracterizava esta sociedade como fundada sobre as desigualdades, sendo que sua “harmonia universal” – diz agora Ceserani – estava perfeitamente em sintonia com a filosofia do marketing, que a América nos legou. O que faz, de fato, o homem do marketing? Ele tem de propor um produto a uma sociedade em que todos os comportamentos são aproveitáveis e tem que motivar cada um dos membros da sociedade para que acolham seu produto. Basta encontrar o nicho onde colocar cada um dos consumidores e dar a ele as motivações que o convençam da justeza da de sua diferenciação. Claro que nos anos 1940-50 a sociedade americana parecia mais “massificada” que a de hoje. A multiplicidade de comportamentos, que sempre existiu, era, naquela época, como que abafada por um tecido social que se exprimia em menor número de modelos comportamentais correntes. Inserir-se num desses comportamentos, como se vê pelas memórias de Marjorie, era o anseio das jovens de sua faixa etária.

“Acontece que nossa intelligentsia” – e aí entram Theodor Adorno, Max Horkheimer , representantes do marxismo alemão mencionados por Marjorie, que criticaram extensivamente todas as facetas do capitalismo norte americano e voltaram a Frankfurt no fim da década de 1940 onde se tornaram ícones da nova alta cultura alemã --, “escolheu como profeta Marx, e não Fourier. A bizarra sociedade de Fourier propunha-se justamente a tarefa de mediar o processo de fragmentação implícito na moderna sociedade comercial. E de usar a diferenciação entre os homens como base de uma sociedade que a previsse. O que fizemos nós, em nossa sociedade baseada na igualdade? Simplesmente deixamos de entender a matriz do fenômeno e de saber como ele se manifesta até que foi tarde demais: o capitalismo e o imperialismo estavam implantados” – conclui Placido.

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De qualquer maneira, Gabriele Minz, a judia austríaca plenamente assimilada, talvez dissesse – como viria a dizer Ernst Gombrich em uma entrevista de 1999 por ela citada – “ ser judeu é uma questão de religião, e eu não pertenço a ela ou, de acordo com a cartilha nazista, uma questão da assim chamada raça, e eu não acredito em raça... mas se alguém me perguntasse hoje, naturalmente diria Sim, eu sou judeu. A resposta correta seria, eu sou o que Hitler chamou de judeu”.

Mas Marjorie Perloff, tal como se sentiu americana da noite para o dia, ao chegar menina nos Estados Unidos, continua sentindo-se americana hoje, enquanto intelectual crítica e participante. E, à medida que os laços familiares que a prendiam ao que Stefan Zweig chamou de “o mundo de ontem” tornam-se mais soltos, relembra como terminava Tocqueville seu capítulo sobre o individualismo: “O tecido do tempo muda a cada instante e apaga o traço das gerações. Você esquece os que vieram antes e não tem ideia dos que virão depois. Só os que lhe são próximos é que têm interesse, agora”.*AURORA BERNARDINI É PROFESSORA DE PÓS-GRADUAÇÃO DE LITERATURA RUSSA NA USP

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