Guitarrista de Amadou & Mariam fala sobre a crise no Mali

Nos últimos dez anos, o talentoso casal de cegos chegou ao estrelato internacional

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Por Roberto Nascimento
Atualização:

A preocupante situação do Mali parece não ecoar nas melodias lúcidas de uma kora, ou no blues árido de Amadou & Mariam. De fato, a transparência hipnótica dos poetas-músicos de Bamako vibra em outro universo, distante da ignorância de mutilações e mortes perpetradas pela insurgência islâmica radical que, com o apoio da Al-Qaeda, se apossou do Norte do país, nos últimos meses. Vide a canção de protesto Mali-Ko, lançada pela cantora Fatoumata Diawara, em janeiro desse ano. No clipe, 40 músicos do Oeste africano, entre eles feras como Bassekou Kouyate e Vieux Farka Toure, pregam paz, criticam os radicais e pedem tranquilidade à população. A pergunta que fica é se luminosidade da faixa seria o suficiente para surtir algum efeito. "Sem dúvida", diz Amadou, do popular duo de músicos Amadou & Mariam. "Canções como essa fazem as pessoas darem as mãos, pensarem na paz. Mas não é só isso. Conseguimos colocar o Mali em evidência para o resto do mundo. A mensagem teve uma recepção muito forte na França", completa. Amadou vem a São Paulo com sua mulher, Mariam, pela primeira vez para um show no Sesc Pompeia, na próxima quinta-feira, que fará parte da programação da Festa Internacional Francofonia, evento que celebra a língua francesa através de música, cinema e teatro. A confiança do músico na melhora do país surpreende qualquer estrangeiro que acompanhe as notícias -conflitos militares, aplicação de leis bizantinas que favorecem apedrejamentos e mutilações. "O Mali já passou por isso umas três ou quatro vezes. Desta vez a situação está mais complicada, por causa da Al-Qaeda, mas sempre encontramos uma solução", diz, com tranquilidade. "A França agiu rápido, ao contrário da coalizão de países do Oeste africano, que muito conversa e pouco faz", continua. Mesmo assim, Amadou diz que a cultura do Mali sofre muito com o radicalismo islâmico. "Músicos do Norte tiveram que fugir para Bamako, no Sul, por causa da forma com que eles estão aplicando a Shari'ah (lei islâmica). Eles não podem mais tocar. Alguns deixaram o país", completa. A diplomacia de Amadou é condizente com o status de seu grupo. Nos últimos dez anos, o talentoso casal de cegos do Mali chegou ao estrelato internacional, colocando em evidência o blues malinês, uma espécie de ancestral do gênero que surgiu no delta do Mississipi, no final do século 19. Em evidência, os dois já colaboraram com Manu Chao, David Gilmour e Damon Albarn. Destilam um híbrido de pop, funk e música cubana que dialoga com a tradição do Mali, mistura de essência "world" que é ampliada pelo casal em cada disco. Em Folila, lançado no ano passado, as colaborações vão do pop star francês Bertrand Cantat aos soulmen do indie, Tunde Adebimpe e Kyp Malone, integrantes do TV On The Radio. Há também Nick Zinner, dos Yeah Yeah Yeahs, Jake Shears, dos Scissor Sisters, e o inglês Ebony Bones. O disco foi gravado dos dois lados do atlântico. As participações poliglotas foram registradas em Nova York, enquanto músicos regionais do Mali contribuíram às mesmas faixas em um estúdio no Mali.A dupla então levou o disco a Paris, onde o montou com as gravações feitas de ambos os lados do Atlântico. "Os músicos do Mali gostam de parcerias, mas acho que nós conseguimos ampliar essa ideia. Sempre chamamos muitos artistas para colaborar em nossos álbuns. Desta vez, tivemos mais cantores e gravamos de forma diferente", contou Amadou ao Estado, em 2012, na ocasião do show que fizeram no festival Back 2 Black, em Londres. Se no disco Amadou & Mariam soam um tanto atrelados a uma receita já repetida dezenas de vezes, ao vivo, quando a questão é verve, o casal faz a diferença. Isso se deve a uma trajetória que começou há mais de 40 anos, quando Amadou fez escola na famosa orquestra Ambassaduers du Motel de Bamako, um dos grandes grupos africanos dos anos 60. As inflexões de melodias malinesas, tocadas com alma de bluesman, foram nutridas no estilo de Amadou desde então. Mariam, sua parceira e mulher, de voz não menos impressionante o conheceu nos anos 80.

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