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Safári urbano

Tantos meses depois, botar o pé na rua ganha contornos de aventura

Por Humberto Werneck
Atualização:

A menos que algo de ruim me aguarde ali adiante, entre a finalização destas linhas e a sua publicação no jornal, me considero em condições de afirmar que estou vivo. E não sou eu quem diz, é o Instituto Nacional do Seguro Social, o insuspeito INSS, que há anos vem fazendo a gentileza mensal de depositar em minha conta uns reais que, se estão longe de cobrir todas as despesas, ajudam a obturar uns tantos débitos. Caraminguás esses, seja dito, cada vez mais esbeltos, já que seu poder de compra não cessa de emagrecer. Mas nem por isso falo mal de dinheiro, esse meu amor não correspondido, desde que pingue em meus despovoados bolsos. A questão, no últimos dias, era esta: o risco de que o filete monetário a mim canalizado pelo INSS viesse a secar, qual bioma gerido pelo ministro Salles, por falta de comprovação de que, bem ou mal, me encontro vivo. Não faria sentido, de fato, seguir pagando aposentadoria a quem já estivesse na situação em que se comemora o Dia de Finados a caráter. Estava eu posto em sossego quando o banco me preveniu para a possibilidade de o INSS vir a fechar sua torneira, o que fatalmente iria acontecer, a menos que eu comparecesse sem tardança a uma agência, não necessariamente aquela em que tenho conta, para lá provar que continuo vivo. Não dá para ser – perguntei por telefone – pela internet, que é hoje para muitos a única via para contato seguro com o mundo exterior? Por pouco não acrescentei que em tempos de pandemia até mesmo sexo (isso me contaram) se faz pela internet, com a vantagem de que o vírus que se venha a contrair não será mais que um desses de computador.  Não, vetou a moça, tem que ser pessoalmente – e, compreensiva, ofereceu a alternativa de fazer prova de vida num caixa eletrônico, premendo o dedo indicador naquela conchinha capaz de ler impressões digitais. Foi a minha vez de dizer não, e explicar que, por algum motivo, comigo a coisa não funciona, como se a esta altura as minhas digitais, esmerilhadas nas refregas do dia a dia, estivessem agora ilegíveis. O jeito foi me munir de máscara e álcool em gel e tocar para o banco. Depois de bater com o nariz na porta em duas agências do meu banco, ambas fechadas, finalmente encontrei uma que aceitava clientes. Tive o cuidado suplementar de lá chegar no horário geriátrico, que vai das 9 às 10 da manhã, e nas cadeiras da área de espera revivi, depois de muito tempo, a sensação de não ser o decano no lugar. Olhando em torno, pude constatar também que, ao menos provisoriamente, se foi o tempo em que mascarado em banco era assaltante.  No caixa, cobraram-me o número do benefício, que não me ocorrera levar, e já me encaminhava para a porta giratória quando tudo se arranjou. O que não fazem almas generosas por alguém que esteja na terceira (e última) idade! Para que a agonia não venha a se repetir, estou disposto a tatuar no antebraço o número pelo qual sou velho conhecido no INSS. E então, oficialmente vivo, saí para o mundo, o que desde março não fazia.  * Tendo renunciado ao volante há dois anos, decisão da qual jamais me arrependi – ao contrário, foi gulosamente que assumi insuspeitada vocação de pedestre (mas apenas no primeiro sentido da palavra, por favor) –, fiz naquela manhã de sol uma caminhada de mais de hora, por uma região de São Paulo com a qual tenho, ou julgava ter, total intimidade.  Pela primeira vez desde o início da pandemia, me vi andando em espaços que não eram a área externa do predinho onde moro, na qual, conforme já contei, na esperança de vir a morrer em gozo de perfeita saúde, venho cumprindo a meta de 5 km diários em 60 minutos, num ritmo de alucinado hamster girando na gaiola. Sucedâneo para quem, coitadismo à parte, se acha condenado à sua exclusiva companhia. Se ao menos sofresse de dupla personalidade, para de vez em quando variar de parceria...  Caminhando por lugares que dava até então por exaustivamente conhecidos, bateu em mim a lembrança daquela “vista cansada” à qual o Otto Lara Resende dedicou agudíssima crônica com esse título – a desatenção que nos leva a não ver o que no entanto está bem debaixo de nossos olhos. Nenhuma grande descoberta, nada de transcendental, mas nem por isso irrelevante. Como nunca me havia ocorrido, por exemplo, que nos muitos endereços da avenida Pacaembu, aqui ao lado, não dorme um único ser humano, pelo menos no trecho que vai do estádio ao túnel? A não ser, quem sabe, vigias noturnos nas numerosas lojas de, ironia, colchões, ou nas pet shops, que por sinal se multiplicam como a mais farta das ninhadas. Estar trancafiado há tanto tempo pode conferir contornos de aventura a ações triviais como atravessar uma rua, entrar numa loja, fazer escala num café. Para não falar na sensação que é cruzar com seres de carne osso, a maioria, ufa, usando máscaras, mas também uma inquietante quantidade de rostos à mostra, sectários do Capitão Cloroquina ou meramente incautos – alguns dos quais, me pareceu, passada a pandemia, teriam motivos extra-sanitários para ocultar as fuças. Já reparou que tem gente que fica melhor de máscara? É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE ‘O DESATINO DA RAPAZIADA’

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