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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|A poesia do mundo

O que distingue um poeta de alguém que faz versos é complexo. O fogo interno faz toda a diferença

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Atualização:

O talento mais raro do mundo é o poético. Eu brinco que o destino concede a um ser o talento de versos, em cada país, em cada geração e, por vezes, pula-se uma. Qualquer pessoa alfabetizada pode escrever rimas e frases poéticas. É claro! Um aluno que tenha feito poucos anos de piano pode dedilhar melodias inéditas a partir de escalas. Posso correr alguns metros sem ser atleta. Já recoloquei botões em camisas durante uma viagem, mas isso não me torna um hábil costureiro. Poesia é um desafio maior...

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A primeira coisa que publiquei na vida foram poesias. Era uma brochura coletiva da escola, na época em que eu estava no segundo ano do Ensino Médio (o antigo Segundo Grau). Ainda tenho um exemplar e desejo diariamente que ninguém mais o tenha. Os textos que fiz, aos 15 anos, com intenção poética, eram proféticos: registraram a absoluta incapacidade de tanger a lira dos versos.

Alguém mais azedo dirá: “Você, ao escrever prosa, é também um mau escritor”. Eu me defendo: “Se você acha minha prosa ruim, precisaria ler minha poesia. Diante da minha veia poética, as minhas crônicas são brilhantes por pura perspectiva”.

Dizem que Machado era melhor autor de contos e romances do que poeta. Gosto muito de alguns sonetos do autor, contudo confesso: amo os contos dele. A poesia é o laboratório da língua e a redefinição das palavras em arranjos originais. Ela combina forma com conteúdo e causa um impacto estético duplo. Isso eu encontro de forma intensa em Castro Alves, em Fernando Pessoa, em Rimbaud, em Florbela Espanca e em Carlos Drummond de Andrade. E, mesmo nesses mestres da arte poética, existem oscilações quanto à qualidade.

A arte de compor versos rimados ou brancos é uma tarefa complexa. Há ritmo, inteligência, complexidade no simples e até grandiloquência.

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Poesia combina forma com conteúdo e causa impacto estético duplo e isso eu encontro de forma intensa em Carlos Drummond de Andrade  Foto: Sergio Moraes / Reuters – 23/3/2020


Na obra de Gonçalves Dias, o ritmo chega a ser alucinante. Um poema de Victor Hugo parece uma catedral pronta e imensa: irretocável. Manuel Bandeira moderniza tudo e recria o linear com genialidade. Amo T. S. Eliot e entendo quem o deteste. Certos sonetos de Shakespeare obrigam-me a releituras repetidas para captar os andaimes invisíveis do bardo.

Noto uma tradição. O advogado consagrado ou o médico de carreira exemplar, em algum momento, decide que é hora de lançar um livro de poesias. Vejam: grandes autores foram médicos e advogados. De cabeça, penso em Guimarães Rosa; em Lygia Fagundes Telles. Nosso arcadismo colonial e nosso romantismo têm muitas relações com as letras jurídicas de Coimbra e com o Largo de São Francisco em São Paulo. Porém, o nobre causídico e o dedicado esculápio, após 30 anos escrevendo textos jurídicos ou lendo revistas científicas, veem chegada a hora de lançar seus excertos do Parnaso... Alguns deveriam repensar o projeto.

Para não se imaginar que este cronista está atacado de um espírito ranzinza em excesso, a única chance de um Álvares de Azevedo ou um Augusto dos Anjos é a existência de muitos maus poetas. Precisamos de massa crítica, de pretensões sociais amplas para que, a cada cem tentativas, uma dê certo. Milhares de pessoas claudicam com os dedos ao piano (como eu faço em casa) a fim de que, esporadicamente, surja um Tom Jobim ou um Nelson Freire. Talvez o princípio valha para toda forma de produção. Milhões de pessoas cozinhando; poucos chefs geniais.

Eu diria a todos e todas que, como no meu caso, não foram acompanhados da musa poética no nascimento, tentem ser criativos nas declarações familiares de amor; que introduzam no limite do esforço falas bem engendradas e românticas. Usem as metáforas possíveis, exponham citações, aprendam a sair do óbvio. Com graça e elegância, a vida fica melhor se forem erguidos brindes intensos e boa poesia. A noite de amor cresce quando se destaca o brilho dos olhos da amada – como janelas de luz que redimem a existência. Treinem! Suas vidas podem ser trespassadas pela inspiração dos grandes mestres. Nós, sem verve poética, temos o privilégio de aprender e aproveitar. Uma palavra mais rara, um eco de vogais em rima e certa graça com leveza podem tornar o almoço dominical mais interessante. Há liberdade em cozinhar sem ser um profissional do fogão; somos livres para correr sem aspirar à medalha de ouro olímpica.

O último argumento é contraditório. Um verdadeiro poeta ignora opinião de cronistas de jornal e insiste. Um autor que sente o fogo criativo dos versos vai seguir, mesmo com as advertências densas de todas as Cassandras literárias. Por vezes, como Sousândrade, pode escrever versos para o século seguinte. O que de fato distingue um poeta de alguém que faz versos é sutil e complexo. Apesar disso, posso afirmar que o verdadeiro poeta ou músico precisa criar, pensar sua obra, estando um pouco alheio ao mundo. A musa é interna, e a massa pode concordar ou não. O artista prossegue. Os outros? Deleitam-se com a vaidade de um livro poético publicado para distribuir a clientes no fim do ano. O tempo é o juiz das qualidades criativas. O fogo interno faz toda a diferença. Um poeta nunca perde a esperança.

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Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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