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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|O cordeiro de Deus

Após anos de excessos, o dia da justiça tinha chegado. Alberto morreria, ou teria um derrame

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Na família, ele era diferente. Todos se cuidavam: alimentação, exames regulares, atividades físicas. Alberto somente havia estado em um hospital ao nascer. O obstetra foi o último médico que o viu nu. Até hoje, aos 45 anos, jamais medira colesterol ou açúcar. Quando a visão fraquejou, supunham que buscaria um oftalmologista. Nada! Passou em uma banca de jornais e experimentou óculos de grau 0,75. Conseguiu ler. Comprou.

Os irmãos e a esposa eram zelosos dos legumes saudáveis. “Couve e brócolis” – preconizava a mais velha. “Frutas de cinco tipos por dia” era a receita do cunhado. “Aveia com mirtilos” – defendiam os pais.

Foto de prato de brócolis Foto: J. F. Diorio/Estadão

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Alberto? Gostava de picanha, especialmente da capa gordurosa. Vegetais? Sim, as batatas da maionese ou a mandioca da farofa. Tudo regado a cerveja e caipirinha. Só comia carne vermelha? Calúnia! Ele descobriu o valor da coxa de frango bem frita. “Carne branca!” – ironizava diante dos irmãos horrorizados.

Exercícios? Sim! Caminhar até o carro, abrir a geladeira, carregar um saco grande de pipoca com manteiga para ver, online, suas séries favoritas. Os hábitos fizeram emergir a corpulência.

Podemos piorar? Sempre! Desde os 16 anos, ele fumava dois maços diários de cigarro. Tio Júlio o apelidou “nosso kamikaze”. Como os guerreiros suicidas do Japão, ele se lançava ao ataque das comidas, como se não houvesse riscos no amanhã.

Num dia, ao final de um almoço familiar no qual ele consumira bacon em quantidades para invalidar todo o código bíblico das impurezas, Alberto “passou mal”. Correram para lá e para cá. Ouviram-se muitas pessoas: “Eu sabia, isso tinha de acontecer”. Era uma profecia autorrealizável. A crise de Alberto confirmara tudo o que os familiares temiam, ou, sejamos honestos, desejavam. A vida saudável, os quilos de folhas cruas e caminhadas precisavam de um cordeiro imolado, um “porco expiatório” talvez. O dia da justiça tinha chegado. Alberto morreria, ou teria um derrame, ou um enfarte, ou uma vida de vegetal que, ironicamente, seria o castigo por ter desprezado… os vegetais. Era estimado sim, porém deveria morrer para salvaguardar os anos de privações e sacrifícios. Alberto precisaria enfartar com dores fortes, a fim de ser o exemplo final para as próximas gerações.

Colocado na ambulância, foi para o hospital municipal. O médico mandou avaliar sangue e urina. A família aguardava o laudo do laboratório que seria enquadrado na porta da geladeira como advertência a quem desejasse, no futuro, excessos. Todos foram acompanhar, ansiosos. Em regime de urgência, os exames ficaram prontos. O paciente estava conectado a um monitor cardíaco. Os parentes olhavam a luzinha, supondo que, como nos filmes, a qualquer momento, surgiria uma linha reta com um alarme. Chegariam médicos, enfermeiros e dariam, em vão, choques poderosos. Teria chegado o fim.

O médico entrou com os resultados. Disse que Alberto tinha sobrepeso e que havia uma leve esteatose hepática. Seu fígado acusava uma camadinha gordurosa previsível para a idade. As perguntas prévias revelaram que ele tinha consumido aspirina e caipirinha com cerveja. Isso era a causa do mal-estar. A surpresa: o colesterol bom estava alto, o ruim, baixo, o pulmão, completamente limpo. Ao ouvir as siglas como HDL e LDL explicadas, houve uma indignação familiar. “Como assim? Os índices estão melhores do que os meus… Eu que sou triatleta e só como peixe grelhado com legumes orgânicos certificados!” – bradou o irmão.

Sim, Alberto era um abençoado da genética. A pequena esteatose e uma articulação desgastada no joelho, pelo sobrepeso, e... só. O médico anunciou, satisfeito, que via condições de o paciente chegar, no mínimo, a 90 anos. A vovó que nadava diariamente tinha morrido aos 84. Ele chegaria mais longe? Havia raiva e decepção no quarto. Como poderia existir um Deus justo, que preservava o pecador fumante e levava a piedosa anciã atleta?

O Cordeiro não fora imolado. Não haveria Páscoa moral e higienista. O pecado não tinha recebido sua paga. O ímpio triunfava. Feliz e com certa ironia, Alberto sacava um cigarro para comemorar. Contabilizava quantas caipirinhas consumiria ainda naquele domingo.

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A família foi abandonando o ambiente e decidiu parar no bar à frente do hospital. Todos se entregaram a coxinhas fritas com catupiry. O mais decepcionado dos cunhados pediu torresmo, outrora inexistente na sua dieta. Pela primeira vez, todas as crianças tomaram refrigerantes.

O mundo estava fora do eixo. A moral fora conspurcada pelos fatos. Ação e reação deixaram de ser leis universais. O acaso vencia, e demônios tripudiavam sobre anjos. Não haveria uma Páscoa redentora; apenas um longo tempo comum em que cada membro da família deixaria de vigiar a dieta alheia e viveria a própria vida. Alberto, afinal, tinha se tornado o Cordeiro de Deus, aquele que tira os pecados do mundo, com esperança e picanha.

* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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