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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Ulisses e Abraão - e o que aprendi lendo Erich Auerbach na USP

A leitura do capítulo inicial, de ‘Mimesis’, ‘A Cicatriz de Ulisses’, causou-me um impacto enorme que perdura

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Foto do author Leandro Karnal

Assim que cheguei à USP (1987), minha orientadora recomendou uma grande quantidade de livros. Para minha surpresa, nenhum era diretamente sobre meu tema de pesquisa. Janice Theodoro quis ampliar-me. Entre as obras indicadas, existia Mimesis, de Erich Auerbach (Perspectiva).

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O autor era um alemão dedicado à filologia. Nascido em 1892 em Berlim, doutorou-se em 1921. De enorme talento intelectual, estava na Universidade de Marburg quando o nazismo o obrigou a buscar refúgio em Istambul. Ali, na Turquia, exilado, produziu a obra que pretendia ver como a literatura ocidental havia representado a realidade. Terminou a vida na Universidade de Yale, nos EUA. Faleceu em 1957.

A leitura do capítulo inicial, A Cicatriz de Ulisses, causou-me um impacto enorme que perdura. Ele pega um detalhe do Canto 19, da Odisseia, sobre o reconhecimento de Ulisses pela ama Euricleia e o longo devaneio que a cicatriz dele provoca. Em um corte abrupto, Auerbach passa a analisar o episódio do sacrifício de Isaac, no Gênesis. Abraão inicia a marcha ordenada por Deus e leva seu filho para ser imolado.

Contrapondo os dois modelos, o autor diz que o homérico tem “descrição modeladora, iluminação uniforme, ligação sem interstícios, locução livre, predominância do primeiro plano, univocidade, limitação quanto ao desenvolvimento histórico e ao humanamente problemático”. O episódio do sacrifício de Isaac, por sua vez, tem “realce de certas partes e escurecimento de outras, falta de conexão, efeito sugestivo do tácito, multiplicidade de planos, multivocidade e necessidade de interpretação, pretensão à universalidade histórica, desenvolvimento da apresentação do devir histórico e aprofundamento do problemático”.

O crítico literário alemão Erich Auerbach Foto: Wikipedia/Reprodução

As ideias que transcrevi do livro implicaram muito tempo para serem decifradas no meu cérebro. Era um desafio intenso e uma metodologia estranha. Cresci para aprender.

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Acho provável supor que eu conhecia bem a Bíblia e Homero. Apesar disso, pela primeira vez, eu fora convidado a desconstruir aquelas narrativas, separar em partes e aproximar unidades de compreensão. Sem exagero, foi um processo de alfabetização com esse livro e centenas de outros pelos quais sou grato à USP e a Janice. Eu estava dando um salto no processo do conhecimento, bem além de apenas saber. Auerbach, judeu-alemão refugiado em Istambul, mandava uma garrafinha de sabedoria; eu a abria, do outro lado do mundo, décadas depois, e era, assim, iluminado. Mimesis despertou uma enorme esperança.

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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