É certo que a República vai torta;/Ninguém nega a duríssima verdade./Da pátria o seio a corrupção invade./E a lei, de há muito tempo, é letra morta./Mas felizmente a vida nos conforta/ De esperança uma dubia claridade./Porque, (ninguém se iluda), ‘isto’ que assim/ A pobre pátria fere, ultraja e explora, /Jamais foi o sonho de Benjamin./Os motivos do mal não são mistério:/ --É que a gentinha que governa agora./ É o rebotalho que sobrou do Império.
Assim o humorista Bastos Tigre se referia, em versos satíricos de 1905, ao advento da República no Brasil. Mas ele não estava sozinho. Antes e depois dele, um infindável galeria de pândegos contumazes consagrou uma narrativa humorística da República Brasileira que inflacionou o riso ao limite do incontrolável, incentivando, pelas via tortuosas de uma espécie de razão cínica, nossa cultura política a jamais levar a sério o regime republicano.
Tal atitude jocosa e depreciativa, que se tornou ampla e generalizada no senso comum do brasileiro - já que até os governantes dela fazem uso, viralizando seus gracejos diários no mundo digital -, ainda perdura, com aquele riso de deboche nervoso, nem sempre liberador, tornando-se parte significativa do estranho e atual desprezo geral pelo mundo político. Contudo, talvez tenha chegada a hora de desinflacionar este humor derrisório em relação à história da república em nosso país e, para tanto, nada como a recente publicação do Dicionário da República; 51 textos críticos. Com verbetes temáticos escritos pelo melhores especialistas no assunto - em raríssima reunião de cientistas políticos, historiadores, antropólogos, juristas, jornalistas, filósofos e sociólogos - o dicionário combina lições magistrais com simplicidade didática e sólida fundamentação científica.
Conceitos, tradições, legislação, instituições, retórica, personagens, melodias, literatura, discursos e práticas: o essencial da República fica garantido e tudo bem organizado numa fluente disposição de verbetes colocados à livre-escolha dos leitores brasileiros, fazendo com que eles finalmente possam conviver, por momentos, com os verbetes de uma república autentica... senão real, pelo menos em estado de dicionário. Fáceis de nomear, difíceis de combater, as principais ameaças ao universo republicano, em todos os tempos – a corrupção e o patrimonialismo – também recebem destaque e esclarecedora abordagem histórica.
Mas os textos criticos vão muito além dos tópicos fundamentais, expondo temas e personagens omitidos ou esquecidos nos vórtices da memória coletiva. Cada especialista procurou reelaborar os legados doutrinários republicanos, desde a gênese a partir da Grécia e de Roma, passando pelas diversas tradições inglesas, francesas, italianas e norte-americanas – incluindo uma surpreendente tradição haitiana, que forjou-se a partir da colônia de São Domingos, a qual, em 1791, tornou-se o epicentro de uma revolta de meio milhão de escravizados. República? Sim, uma tradição que de tão apagada na História, praticamente desapareceu, pois gente como Dutty Boukman (corruptela de Book Man),Toussaint Louverture e muitos dos líderes haitianos, filtraram o pensamento republicano pela experiencia religiosa do vodu (um blend complicado de ação política) desafiando ou explorando ao limite, os vícios de origem do eurocentrismo - sobretudo o paradoxo da tradição francesa que criou, na mesma época, tanto a Declaração dos Direitos do Homem quanto a guilhotina.
No caso brasileiro, movimentos semelhantes de autêntico republicanismo que contrariavam a viciada periodização monumental que fez tudo datar de 1889, também merecem tratamento detalhado. Lá estão a Cabanagem, a Sabinada, as Conjurações Bahiana, Carioca e Mineira, as sedições de Olinda e Vila Rica e a Revolução Pernambucana de 1817. Apesar de seus equívocos, das diferenças e da repressão sufocante, todas elas são analisadas em verbetes próprios, como parte de uma longa e sofrida linhagem de brasileiros em busca de autenticidade republicana e de realização da ética do bem comum. “Como podeis jurar uma carta constitucional que não foi dada pela soberania da nação, que vos degrada da sociedade de um povo livre e brioso para um valongo de escravos e curral de bestas de carga? ‘’ - exclamava em discurso de 1888, Silva Jardim - o mais corajoso catalisador daquela mesma linhagem – o qual, anos depois da proclamação seria rapidamente defenestrado pela política republicana e morto, aos 30 anos, ao precipitar-se no abismo de um Vesúvio, na Itália.
Como já se disse tantas vezes, a memória coletiva é um mecanismo de esquecimento programado e, mais ainda, com as imagens. A força da iconografia é tão intensa que, não raro, a lembrança de um evento histórico é deflagrada pela imagem de uma simples pintura, retrato ou até rabiscos de caricaturas. Este novo Dicionário da República traz um alentado verbete sobre iconografia e um elegante caderno de imagens: do índio romantizado e europeizado criado pelo Império ao Tiradentes recuperado pelos republicanos de 1889, há uma espécie de vazio iconográfico, no qual aparecem inúmeras tentativas de cópia das figuras femininas da república Francesa (as sensuais Mariannes de pés descalços, braços desnudos e barrete frígio) que não pegam. Sobrevive mesmo é Tiradentes, que ganha a barba de um Cristo nascido nos trópicos - uma daquelas tantas imagens canônicas, com as quais nos acostumamos tanto que sequer imaginaríamos outra possibilidade. A imagem de Tiradentes sem barba, veiculada em alguns raríssimos quadros que tentam quebrar um pouco da imagem do mártir - ou, em filmes como Os Inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade, de 1972 – já é desmistificadora, pois sugere ainda aquela figura de Jesus Cristo totalmente imberbe, decididamente anti-canônica, a qual às vezes aparece na arte bizantina – esta última também omitida (quando não destruída) pela cultura ocidental. Lilia Schwarcz, que escreve o verbete sobre o tema, adapta a oportuda afirmação de Derrida que forma a nossa combalida memória visual: “Quem nós vemos e quem nós optamos por não ver”.
A escolha dos temas não somente garante os tópicos fundamentais para uma compreensão do universo da res publica, como introduz verbetes temáticos inovadores, tais como “Gênero no Brasil Republicano”, “Republicanismo na canção popular brasileira” ou “República na era da Globalização. Entre todos, talvez o mais desafiador, seja “República Digital”, escrito por Ronaldo Lemos, que mostra, entre outras coisas, que a Internet brasileira virou um terreno politicamente sitiado, onde a persuasão da opinião pública se profissionalizou, cada vez mais dependente da tecnologia. Muitos dos atuais “republicanos digitais” conseguem converter seu capital de influência na Internet em capital político; e a esfera pública passa a depender quase que totalmente de formas de comunicação que escapam tanto ao nosso controle quanto à nossa própria compreensão.
A tendência é mundial, mas o que primeiro salta aos olhos é que a civilidade, o diálogo e a amizade (“Sentido Republicano da Amizade”, verbete assinado pelo filósofo Pedro Duarte é exemplar) foram para o espaço e redes sociais como o Twiter transformaram-se no Velho Oeste. Frases curtas e trocadilhos divertidos servem de anistia para a violência verbal e reforçam aquela tradição de deboche derrisório em relação à República. Com sua força de efemeridade, manipulação, superficialidade e presentificação, a mídia digital mudou radicalmente a natureza das conversas públicas e livros como este Dicionário da República possibilitam aquele necessário lenitivo ao esquecimento. Esquecimento, que é bom ressaltar, na maioria das vezes ocorre voluntariamente. O que faz lembrar daquela fulminante reação de Elias Canetti, ao escrever que “na história, quem é realmente covarde é apenas quem teme as próprias lembranças.”
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