Como um escritor se torna profeta

Autor, médico e dramaturgo cearense Ronaldo Correia de Brito passeia por angústias e pelas dores do País em 'A Arte de Torrar Café'

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Por André Cáceres
Atualização:

“Todas as dores se tornam suportáveis se você as puser numa história ou contar uma história sobre elas.” A máxima da escritora dinamarquesa Isak Dinesen, pseudônimo de Karen Blixen, citada em um dos 55 textos de Ronaldo Correia de Brito reunidos em A Arte de Torrar Café, é uma boa porta de entrada para esse livro caleidoscópico. Na obra, o médico, escritor e dramaturgo cearense radicado no Recife há meio século passeia por angústias pessoais e pelas dores do País – a desigualdade, a prostituição, o coronelismo, a alienação –, tornando-as suportáveis por meio de narrativas que ficam num misto entre a crônica, o conto e o relato memorialístico.

Ronaldo Correia de Brito: unindo o erudito e o popular. Foto: Jorge Clésio

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A coletânea, publicada só em 2021 pela editora Objetiva, já estava programada para sair antes de a pandemia de covid-19 estourar. Na introdução assinada pelo autor ainda em 2019, ele afirma profeticamente que “o arcabouço dessa construção de séculos” que é o Brasil “parece ruir”. Poucos dias depois, o coronavírus praticamente concretizou o que o autor temia. No entanto, essa presciência não é fruto do acaso. 

“Uma das características do escritor é a capacidade de profecia”, afirma Ronaldo em entrevista ao Estadão por telefone. “Em Dora Sem Véu, faço uma profecia da exacerbação do colonialismo, coronelismo, escravagismo, feminicídio, preconceito racial, é um livro que antecede tudo isso que se agudiza.” Ronaldo conta ainda que durante o período de quarentena vem produzindo um diário para dar conta do caos que acomete o Brasil, e vem lendo muito Kafka. “A única ficção possível atualmente é a ficção de Kafka, O Castelo, aquela coisa onde não se chega, não sabemos onde vamos chegar. É um momento de muita incerteza.”

Esse mesmo sentimento percorre os escritos do livro sobre sua juventude durante a ditadura militar, como no texto em que relata a agonia de torcer contra o Brasil na Copa de 70, ou em Pobreza, Mediocridade e Bocejos, que trata da burocracia estatal da época e de fato lembra uma ficção kafkiana: “Sempre experimentei um verdadeiro pânico quando solicitava a minha folha numa delegacia. E se eu tivesse cometido um crime de que nem me lembrava? (...) Os católicos, ao rezarem o ato de contrição, confessam ter pecado muitas vezes por pensamentos, palavras, obras e omissões. A folha corrida era o nosso auto de fé”.

Há no livro desde lembranças da infância no sertão do Saboeiro e no Crato até narrativas em memória dos pais e de amigos do autor mortos nos últimos anos, passando reflexões suscitadas pelas viagens a Florença, Buenos Aires, Juazeiro do Norte, Paris, Porto Velho, entre outros lugares pelo mundo. Em algumas passagens, o tempero de uma simples refeição evoca o modo como a cultura brasileira se toca com a de outros povos, “da Ibéria, ou de mais longe do oriente árabe e hebreu, e até de reminiscências egípcias e sumérias”.

Os textos mais reveladores, porém, são aqueles em que Ronaldo destila sua erudição para traçar paralelos inesperados entre as chagas da nossa sociedade e a história universal. Em Excelsior Cabaré, ele relaciona os códigos sociais que diferenciam no Brasil patriarcal as mulheres aptas a se casar das que estavam condenadas à vida de prostituição: “Ser virgem representava a condição para merecer respeito. O hímen violado fora do casamento facultava o acesso aos homens. Diferente da antiga Babilônia, onde as mulheres entregavam sua virgindade em louvor à deusa Ishtar, padroeira da fertilidade”.

Uma das características do escritor é a capacidade de profecia

Ronaldo Correia de Brito, escritor

Em Meninos Espartanos do Brasil, o escritor relaciona o linchamento de um menino pego roubando à Esparta do século 7.º a.C., em que os meninos nobres eram enviados aos campos, onde tinham de sobreviver por meio de roubos e matar escravos, mas eram castigados se fossem pegos. “Na cidade grega, era a nobreza quem partia para o roubo e o assassinato, a serviço do terror do Estado e do controle da população de escravos. Aqui, os jovens pobres assaltam e matam a classe privilegiada mantida sob terror e exterminam a si próprios. Quando falham, são trucidados ou mortos. (...) Os adolescentes que roubam e matam não o fazem por um modelo de educação, como em Esparta. Agem pela falta de perspectivas”, compara o autor. 

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Nesse registro, Ronaldo fala da realidade brutal dos Currais do Governo, espécie de campos de concentração no interior do Ceará que aprisionavam retirantes antes que chegassem às cidades no tempo da “modernização” de Fortaleza; denuncia a situação análoga à escravidão vivida por empregadas domésticas antes do reconhecimento de seus direitos trabalhistas; e questiona a recusa da sociedade contemporânea em aceitar o amor homossexual, registrado com naturalidade em textos antigos como a Ilíada (Aquiles e Pátroclo), a Bíblia (Davi e Jônatas) e a Epopeia de Gilgamesh (Gilgamesh e Enkidu), mas que Guimarães Rosa não foi capaz de manter até o fim em Grande Sertão: Veredas com Riobaldo e Diadorim.

Alguns dos textos falam da natureza diurna, alegre e festiva do brasileiro, ao mesmo tempo que te mostram como um homem introspectivo. Como é sua relação de admirar um povo que é seu antípoda? Isso é muito do meu caráter mesmo. Talvez porque eu seja mais um voyeur, um “sentidor”. Como é possível sentir tudo isso sem ser? Tenho uma forma atrevida de olhar, é uma coisa meio de Fausto, de entrar no outro, meio diabólica.

Você escreve duas vezes sobre a tentativa de Mário de Andrade de preservar tradições populares que ele considerava em risco de extinção em 1938. Como vê essas mesmas tradições hoje? Mário de Andrade registrou essas tradições 40 anos antes de quando eu as registrei. Passei anos trabalhando diariamente, ocupando todas as minhas noites subindo esses morros e descendo esses córregos, tomando aula e vivendo onde houvesse essas brincadeiras. Chegamos a registrar 114 manobras da dança dos Caboclinhos ainda sobreviventes. Mário disse que o Auto de Caboclinhos era a dança dramática mais completa e impressionante de todo o Brasil, porque além das manobras e passos, que são incríveis, havia um auto dramático chamado Auto do Traidor, que deixou de ser representado. Em 1977, ainda conseguimos registrar uma encenação. Mário tinha o temor de que as brincadeiras desaparecessem. Não desapareceram, mas do ponto de vista da linguagem de passos e manobras, sofreram um encolhimento, porque antes o palco era a comunidade e hoje são os palcos que as prefeituras montam. Isso foi empobrecendo. Mário se cumpre por essa transformação, mas não se cumpre porque os Caboclinhos são muito mais numerosos 83 anos depois. O que se tornaram o inimigo das brincadeiras populares foram as religiões neopentecostais. A religião católica, por mais perversa que fosse, estava tão ligada ao poder que queria os negros presos ao maracatu, que impedia a fuga para os quilombos. Havia um conluio entre católicos e senhores de engenho. Agora os neopentecostais ateiam fogo.

Nos textos, é possível notar uma certa aversão à tecnologia de modo geral. O que ganhamos e o que perdemos com a modernidade e as suas formas de comunicação instantânea? O mundo mudou muito radicalmente, a ponto de o sertão deixar de existir com esse advento. O Rio de Janeiro não tem mais zona rural, já estamos com 85% da população em cidades e 15% no campo, sendo que até a 2.ª Guerra Mundial era o contrário. Eu cito isso e não consigo ser otimista em relação a essa nova comunicação. Antes da pandemia, sempre que eu viajava, ia até o fim da aeronave e voltava algumas vezes para ver quem lia. Depois passei a considerar quem estivesse com computador ligado lendo. Quem lê hoje é quase ninguém, quase zero. Isso não era assim nos trens, nos ônibus, nas viagens, nos aviões, nos hospitais. Não sei que tipo de comunicação vai se dar. Nesse sentido, Kafka é profético. O Castelo é a profecia sobre essa impossibilidade de chegar, ser ouvido, falar, comunicar.

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É curioso como, em certos textos, de uma refeição, você é capaz de extrair tantas histórias. Como é sua relação com a comida? Não sou guloso, aquele cara que sonha e delira com comida. Mas tenho uma relação muito sensual, erotizada com a comida. Meu jeito de comer e me relacionar com a comida por onde eu ando chama a atenção. Vou entrando, descobrindo um tempero, um cheiro, aquilo gera uma história.

De que modo sua literatura derruba o muro entre cultura popular e erudita? Essa é a questão fundamental da minha literatura. A grande curiosidade que tenho por tudo e esse trânsito permanente que faço pelo mundo. Essa apropriação, como eu me aproprio de todos os temas. Para falar do frevo, pode ser que eu sinta necessidade de falar de Heráclito e de como tudo flui. Não tem nenhuma diferença para mim. A mesma importância que dou ao frevo eu dou a Heráclito. Igualmente, tenho que comparar a prostituição com a prostituição sagrada da Babilônia, porque eu tento entender a nossa, dolorosamente financeira, com a constituição no templo da deusa Ishtar. Tenho o costume de interpretar o mundo a partir das teorias mais caprichosas. Posso interpretar o mundo a partir da arte de torrar café, da receita de baião de dois. Ser da periferia é um drama, mas também é uma vantagem ter nascido num espaço cultural menor – entre aspas, porque nós somos chamados assim. Isso me torna aberto a todas as formas de conhecimento.