Livro retrata invasão nazista de Paris vista pelo barman preferido de Hemingway; leia trecho

No romance ‘O Barman do Ritz de Paris’, baseado em história real, o jornalista Philippe Collin reimagina a ocupação alemã na capital da França pela ótica de Frank Meier, um judeu de origem austríaca

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Foto do author Leonardo Neto
Por Leonardo Neto

Frank Meier, um judeu de origem austríaca, era o barman favorito dos escritores Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald e da estilista Coco Chanel na Paris dos anos 1930. Do balcão do suntuoso Hotel Ritz, Meier servia seus drinks a artistas, escritores e intelectuais que viviam a festa que era Paris.

Forças nazistas marcham sobre o Champs Elysées Foto: Deutsches Bundesarchiv (Arquivo Federal Alemão)

No entanto, em junho de 1940, tudo mudou. Os soldados nazistas invadiram e ocuparam a capital francesa. O público do Ritz era outro. Saíam Hemingway, Fitzgerald e Chanel e entram Göring e seus asseclas. Meier precisa se adaptar à nova clientela e, ao mesmo tempo, esconder as suas origens.

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A cada palavra e sorriso oferecidos por Frank, ele se sente mais sufocado. Ainda assim, o barman, que lutou pela França na Primeira Guerra, se recusa a fugir. Frank ouve e age discretamente, fornecendo documentos falsos a outros judeus e contribuindo — até mesmo de forma involuntária — para atividades conspiratórias. Afinal, quem desconfiaria de um barman?

Esta história real serve de inspiração para o romance histórico O Barman do Ritz de Paris, que marca a estreia do jornalista francês Philippe Collin na literatura. Collin apresenta o podcast Face à l’histoire, que reúne cerca de 20 milhões de ouvintes.

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O livro chega ao Brasil pela Editora Record nesta segunda, 19, com tradução de Ivone Benedetti.

Leia um trecho de ‘O Barman do Ritz de Paris’

14 de junho de 1940

Estou encurralado no ninho dos boches.

Dezoito e trinta, e os alemães ainda se fazem esperar.

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Hoje de manhã, desfilaram pela avenida Foch.

Agora estão aí, entre as paredes, nos recintos do Ritz.

Todos os hotéis parisienses foram requisitados pelo Exército alemão para instalar escritórios, e o Ritz vai receber uma centena de oficiais superiores — a nata da Wehrmacht — e tornar-se a “residência do governador militar da França”: se esse título não lembrasse a cruel humilhação que o exército francês acaba de sofrer, seria quase prestigioso.

A praça Vendôme é beneficiada por um status especial. Até segunda ordem, o Ritz pode continuar recebendo a clientela habitual. E o bar, claro, fica aberto. Para cuidar dele, ao lado de Frank Meier, só restam o seu velho irmão de guerra, Georges Scheuer, e um jovem aprendiz italiano, Luciano.

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O barman não pregou os olhos a noite inteira, atento ao descabido silêncio reinante em sua casa, em seu prédio da rua Henri-Rochefort, desde que a maioria dos vizinhos fugiu de Paris.

Uns covardes.

Insone, pensou em Jean-Jacques, seu filho. Frank nunca soube amar de verdade aquele filho único, nascido em 1921, do casamento infeliz com Maria. Um abismo os separa. Não tem notícias de seu rebento há décadas, desde que o jovem foi contratado pelo Cassino de Nice, cinco anos atrás…

Onde estará? Será que foi convocado?

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Será que eu deveria me pôr a salvo? Ir ficar com ele em Nice?

Nem pensar em entregar meu bar aos Fritz…

Esta noite, ereto em seu paletó, Frank Meier se prepara para a chegada dos novos fregueses. Acaba de ver seu próprio rosto no reflexo da coqueteleira Christofle: olheiras mais fundas que nunca, olhar gélido de apreensão. Quanto ao estômago, nem se fale: ele soprou na mão, seu hálito está fétido. A chegada dos alemães e, com eles, as reminiscências das trincheiras devoram suas entranhas.

O barman olha o relógio pela enésima vez. Vinte para as sete.

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Está tudo pronto: cítricos, folhas de menta, frutas vermelhas e açúcar mascavo para o Royal. O Perrier-Jouët está em lugar fresco e em boa quantidade. Os vencedores terão com que festejar.

Mas, até agora, nada. Ainda nada.

De onde está posicionado, atrás do balcão sólido, de madeira escura, Frank não pode ver a chegada dos fregueses, pois o corredor que leva ao bar está fora de seu ângulo de visão. Isso é mais que inconveniente nos tempos que correm. Impossível se precaver. Por isso, pôs o aprendiz de vigia no limiar da porta.

Onde estão esses malditos boches?

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O silêncio pesado antes do assalto. Georges ocupa as mãos brincando com as framboesas.

— Pare com isso, vai estragar.

— Estou nervoso, Frank.

Está todo mundo nervoso, velho!

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— Então passe a camurça no bar, está com marcas de dedos.

Guerra de mentira, mesmo.

Ah, está chegando alguém. São eles?…

Não, apenas um freguês francês que, só de ver, poderia provocar nele uma careta de desprezo, não fosse ele tão senhor de si. O impossível Sr. Bedaux.

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Por um instante, Frank pensa em lhe pedir, com polidez, mas com firmeza, que dê meia-volta. Mas Bedaux faz parte dos novos senhores, e ele vai precisar se acostumar. Por isso, fica olhando a aproximação do primeiro freguês do mundo de depois.

Espantosa personagem, esse Charles Bedaux. Tem testa alta, traços finos e a mesma idade de Frank, cinquenta anos vigorosos. Ele também desembarcou jovem na América, de bolsos vazios. Os destinos de ambos se cruzaram com frequência. Em Nova York, Meier aprendeu a servir; Bedaux, a brindar. Os dois não demoraram a tornar-se experts nos respectivos campos: Frank como barman, Bedaux nos negócios. Em menos de dez anos, Bedaux se casou com duas herdeiras americanas e transformou-se em defensor das teorias da “organização científica do trabalho” — escreveu um livro sobre o assunto, e gosta de falar dele, assim como de suas fábricas em vários lugares, de sua recente nacionalidade americana, de suaunidade de medida, a “unidade Bedaux”. Mas não tanto quanto de sua admiração pela Alemanha nazista.

Frank repara em seu sorriso de vencedor. Imperturbável, o barman toma a iniciativa:

— O de sempre, senhor? Uma taça de Pol Roger?

— Hoje não, Frank. Prepare para mim o seu Royal Highball, dose dupla. Precisamos festejar o renascimento da França, finalmente livre dos espíritos decadentes e efeminados! Como eu sempre disse: se o caos rege a natureza, é a ordem que salva o homem, e nada mais. Não é mesmo, Frank?

Se o coquetel é uma arte do rigor e da medida, gerir um bar, ao contrário, é a arte da desordem; deixar a vida extravasar, brincar com os limites, aceitar às vezes que eles sejam ultrapassados, foi isso que fez o sucesso de Frank Meier; mais até, quem sabe, do que suas famosas bebidas. E aí está também toda a sua ambiguidade. Um espírito disciplinado, magnetizado pelo inconformismo. Mas Charles Bedaux nunca entendeu isso. Com ele, nada extravasa, a não ser o cuidado para com seus próprios interesses. Arte, gente, política, tudo se resume a aposta, investimento, lucro. No fundo só há um assunto sobre o qual Frank e Bedaux concordam: a França precisa de Philippe Pétain. O magnata da indústria, porque isso será proveitoso para seus negócios; o barman, por ter servido como suboficial sob as ordens do Marechal durante a Grande Guerra.

Frank nunca vai contar a esse traidor do Charles Bedaux, mas, na frente de batalha, sob o comando do grande homem de bigode branco, o segundo sargento Meier se tornou um patriota.

O homem de negócios leva o copo aos lábios, depois o pousa no balcão. Parece querer se lançar a uma nova tirada, mas o som de vozes e risadas vêm perturbar a quietude do bar e o impedem de fazê-lo.

São eles…

Chegou a hora. Frank ajusta o colarinho, põe a mão no ombro de Georges. Ele é quem vai recebê-los. As risadas se aproximam pelo corredor. Risada de caserna. Por um instante, Frank está de volta a Verdun. Endireita os ombros, mas sente o suor gotejando nas costas. A camisa está molhada sob o paletó, ele sente frio até os ossos.

A primeira linha inimiga avança.

— Boa noite, senhores. Bem-vindos ao bar do Ritz.

Capa do livro ‘O Barman do Ritz de Paris’ Foto: Editora Record
  • Editora: Record (364 págs; R$ 69,90; R$ 39,90 o e-book)
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