Mário de Andrade: livro revela quando escritor trocou água por pinga

Em ‘Correspondência Anotada’, estão cerca de 300 cartas trocadas com Rodrigo M. F. De Andrade, que mostram histórias pitorescas das viagens de pesquisa para descobrir e valorizar o patrimônio cultural do Brasil

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Por Ubiratan Brasil
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Um de seus versos mais conhecidos (“Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta”) serve como definidor dos múltiplos talentos de Mário de Andrade (1893-1945) - prosador, escreveu romances e contos fiel ao espírito modernista; crítico, apontou caminhos para outros artistas de áreas diversas; pesquisador, viajou pelo Brasil buscando traços folclóricos e musicais de todas as regiões, desconhecidos dos grandes centros.

Mário foi também um destacado poeta e principalmente um incansável missivista, trocando uma farta correspondência com artistas de várias áreas. Muitas dessas cartas já foram publicadas em livros, mas, mesmo com essa profusão de títulos, é essencial o lançamento agora de Correspondência Anotada (Todavia), com a conversa epistolar entre o autor de Macunaíma e Rodrigo Melo Franco de Andrade (1898-1969), editor, escritor e articulador, o primeiro e mais longevo presidente do Iphan, diretor da chamada “fase heroica” do instituto.

Cândido Portinari (E), Antônio Bento, Mario de Andrade e Rodrigo M. F. de Andrade, em exposição de Candido Portinari no Palace Hotel, Rio de Janeiro, 1936. Imagem do livro 'Mario de Andrade - Rodrigo M. F. de Andrade - Correspondência Anotada'. Foto: Arquivo Central do Iphan

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A troca de ideias entre eles atingiu alto nível porque Mário, quando dirigiu o Departamento de Cultura de São Paulo (1935 a 1938), foi autor do Anteprojeto do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, órgão do qual se tornaria o mais ilustre funcionário (inicialmente no cargo de superintendente da Regional de São Paulo e depois como seu pesquisador). “Foi esse trabalho que o aproximou de Rodrigo e, juntos, realizaram uma pesquisa profunda sobre a questão do patrimônio”, observa a editora, pesquisadora e professora Maria Graciema de Andrade, neta de Rodrigo e organizadora do livro. “Pela correspondência, é possível notar que foi um trabalho de formiguinha ao longo dos anos e nem é possível dimensionar o esforço de cada um.”

São cercas de 300 cartas trocadas entre 1928 e 1945, ano da morte de Mário. “Nesse período, eles viajaram para lugares com situação precária, o que rendeu casos engraçados, relatados na correspondência”, diz Maria.

Mário de Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade cultivaram uma amizade fraterna e duradoura. “Rodrigo exerceu o papel de irmão na vida de Mário, pois o ajudou a garantir uma estrutura financeira para realizar seu trabalho. Ele sabia o quão importante Mário era para a cultura brasileira”, comenta Maria de Andrade.

Para organizar Correspondência Anotada, a pesquisadora se apoiou em arquivos públicos e também no livro Cartas de Trabalho, organizado pela museóloga Lélia Coelho Frota e publicado em 1985. Ali estão reunidas as cartas trocadas entre Mário e Rodrigo entre 1936 e 1945.

Carta enviada por Rodrigo Melo Franco de Andrade a Mário de Andrade, que está no livro Correspondência Anotada Foto: IEB-USP

O que difere aquele volume do que é publicado agora é o ineditismo de algumas cartas. O motivo é que Mário determinou um sigilo na correspondência recebida de muitos amigos e que não poderia ser tornada pública antes dos 50 anos da morte dele, ocorrida em 1945.

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Escrita em 1928, a primeira carta é assinada por Rodrigo que, como editor-chefe de O Jornal, encomenda a Mário um artigo sobre Aleijadinho para uma edição especial sobre Minas Gerais. “Sob o olhar atual, dois pontos se destacam”, comenta Maria. “Rodrigo convidou só autores modernistas para colaborar nesse projeto, o que reforça a importância daquele movimento artístico. E o outro detalhe é o destaque à obra de Aleijadinho como principal representante da arte mineira.”

Como um todo, a obra epistolar é fundamental para se descobrir os meandros da construção do patrimônio artístico e cultural brasileiro, especialmente quando eles revelam as dificuldades no trabalho de pesquisa. E há fatos engraçados - em novembro de 1937, Mário relatou a viagem que fez a Bertioga, onde foi inspecionar um forte (leia abaixo). “Estou todo envolvido em talco pra ver se me seco de três dias e meio da maior umidade, vivi n’água”, escreveu ele que, além da chuva intermitente, passou uma noite com sede. “Na Bertioga, não havia água mineral, só perfumarias, guaranás e coisas que me embebedam.” Logo em seguida, ele relata a alegria proporcionada por uma aguardente.

Capa do livro Mário de Andrade - Rodrigo M. F. de Andrade - Correspondência Anotada, organização de Maria de Andrade. Obra tem 528 páginas e custa em média R$ 104,90 (R$ 69,90 a versão em e-book) Foto: Editora Todavia

Maria considera essencial a carta que Rodrigo escreveu em 2 de maio de 1936, convidando o escritor para integrar um livro em homenagem ao poeta Manuel Bandeira (1886-1968). “Foi ali que Rodrigo comunicou que assumiria o cargo de diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Sphan, que se tornaria Iphan com a troca de Serviço para Instituto”, conta. “A partir dali, os dois amigos dividem o trabalho que realizariam para a preservação do patrimônio artístico nacional. Sem dúvida, um marco.”

Leia trecho de uma carta

Rodrigo,

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Na quinta-feira de noite, me aconteceu esse mal terrível que é botar um chapéu em cima da cama, vai daí, tudo me tem corrido tão mal estes dias, que estou positivamente desesperado, com medo até de mover braço (...) Estou chegandinho da Bertioga, e estou todo envolvido em talco pra ver se me seco de três dias e meio da maior umidade, vivi n’água (...)

As duas pensões não tinham mais quartos, com veranistas. Afinal, fomos dormir numa casa de taipa dum tabaréu que nem iluminação de vela tinha, mordemos um presunto e uma pescada amarela de escabeche que levávamos, e passamos uma noite com sede, porque na Bertioga não havia água mineral, só perfumaria, guaranás e coisas que me embebedam. Noite de água, manhã de água, inda fomos assim mesmo ver o forte da Bertioga que está com uma das paredes rachadas ameaçando ruir a vigia que dá pro mar alto. Meu maior interesse era ver, do outro lado do canal, a tal de construção de pedra formidável que o Luís Saia pretendia ter descoberto (...)

Tratamos um tabaréu mais suas canoas, e lá fomos ver a tal de ruína, de mapa do Luís Saia de punho. De repente o tabaréu deu uma deixa e dei um murro na testa bêbada, era por força o convento de S. João, não podia ser outra coisa, de que o relatório diz apenas fronteiro a Bertioga e séc. XVII. É uma construção verdadeiramente espantosa, seu Rodrigo, tudo ruína é verdade, ruína quase informe, mas são cem metros quadrados de morro trabalhado em pedra, tudo construções de pedra, e provavelmente mesmo, as aparelhadas, vindas de Portugal (...) Parece, por informações que recebi, que ainda se conseguirá descobrir o orago da igreja, todinha de pedra e ruída, apenas com o arco da capela-mor íntegro. A cruz de pedra, da frontaria dessa igreja, sete pedras, está no museu do Ipiranga. E se trata, ao que parece, duma das construções mais ingentes que tivemos. E tudo é ruína disforme... Fui beber pinga. Não sei mais, os sentimentos estavam muito nublados e úmidos, não sei bem se bebi por causa do tempo ou por causa da ruína. Eram 15 horas, lancha partiu.

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(Carta Mário de Andrade, de 1º/11/1937)