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Uruguaia Cristina Peri Rossi, autora de ‘Espaços Íntimos’, trata do desprezo sofrido por escritoras

Aos 76 anos, autora é apontada como uma das principais autoras latinas desde o boom registrado pela literatura do continente nos anos 1960 e 1970

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Por Ubiratan Brasil
Atualização:

A escritora Cristina Peri Rossi nasceu em Montevidéu, mas vive na Espanha desde 1972. Não por opção – foi exilada pelo truculento governo militar uruguaio da época. A distância, como era de se esperar, lhe deu subsídios para escrever sobre solidão, exílio e conflitos humanos, que trazem o retrato de uma época. Cristina também tornou-se ferrenha defensora dos direitos das mulheres, convicção que se nota presente nos contos de Espaços Íntimos, que marca sua estreia no mercado brasileiro, graças à Gradiva Editorial.

A escritora Cristina Perri Rossi Foto: LIL CASTAGNET

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Aos 76 anos, Cristina é apontada como uma das principais autoras latinas desde o boom registrado pela literatura do continente nos anos 1960 e 1970. “É a escritora que corre mais riscos e, ao mesmo tempo, a mais exposta, como um trapezista na rede”, elogiou a também autora Elena Poniatowska. Afinal, foi a primeira a falar da luta armada e dos horrores da ditadura quando ainda vivia no Uruguai.

Também tratou de outros temas então delicados, como homossexualidade e erotismo. É com tal franqueza sensível que narra vidas anônimas, como as que marcam Espaços Íntimos. “Num mundo onde a repetição mecânica dos gestos nos faz ter uma vida anódina e sem sentido, a denúncia de Peri Rossi é a de que a pobreza das nossas existências ocorre pela falta do desejo, pela morte do desejo”, observa a professora de Literatura Latina Lélia Almeida, na introdução do livro. Sobre o assunto, Cristina respondeu por e-mail às seguintes questões. 

A senhora acredita que autores latinos que vivem no exterior escrevem de uma forma diferente do que os que moram no continente? Não há nada mais pessoal do que a obra de um autor, de modo que é impossível generalizar. Julio Cortázar escreveu sua novela mais argentina, O Jogo da Amarelinha, em Paris, mas Jorge L. Borges (o mais inglês dos escritores latino-americanos) viveu e escreveu em Buenos Aires. Em qualquer caso, a menos que viva em uma torre de marfim, de alguma forma deve influenciar o fato de viver ou não na América Latina, mas terá que se estudar, em cada caso, qual foi a influência. Como fui proibida no Uruguai durante a ditadura militar, a primeira coisa que ganhei ao exilar-me foi a liberdade. Outros ficaram, ganharam segurança, mas perderam a voz.

Acredita que os romancistas têm uma obrigação moral com seus personagens e seus leitores? Acredito plenamente na responsabilidade moral do jornalista, da operária, da parlamentar, do médico, da mãe e do pai. Também do escritor. A forma que essa responsabilidade moral assume é uma questão de cada um. Também é uma questão de cada um cada vez que ele a trai.

Haveria um certo desprezo por parte dos homens pela literatura criada pelas mulheres? Por quê? Sim, há algum desprezo em alguns escritores e jornalistas, e é parte da cultura patriarcal: a mulher é inferior ao homem, portanto, se você escrever, sua obra será inferior. Embora seja completamente esquizofrênico, aos homens responsáveis pelas maiores violências da humanidade lhes é atribuída a razão e às mulheres, o sentimento, a emoção. Se assim fosse, toda a arte seria feminina, uma vez que a emoção e a arte são seus espaços privilegiados. Ou será que todos os artistas eram gays? Antonio Machado disse: “A inteligência nunca escreveu um verso”. Os nazistas eram profundamente racionais: nunca tremiam antes de matar uma judia ou um socialista. A razão gera monstros, se a emoção e o sentimento forem eliminados. A literatura precisa de ambas as coisas, emoção e razão. Agora, uma vez que os editores descobriram (tardiamente) que as mulheres leem muito mais do que os homens, eles estão mais dispostos a editar escritoras.

Talvez por isso a senhora tenha demorado mais de 20 anos para convencer uma editora espanhola a publicar Clarice Lispector? Sim, por isso, mas também porque há um grande abismo entre o Brasil e a Espanha, exceto na contratação de jogadores de futebol. Clarice Lispector foi traduzida para o espanhol muito mais cedo na Argentina do que na Espanha. Mas então a ditadura militar veio ao Cone Sul e as boas editoras desapareceram.

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Fale, por favor, sobre sua proximidade com a cultura brasileira – afinal, também traduziu Graciliano Ramos. O que mais a fascina na cultura do Brasil? Como Stefan Zweig, diria que o Brasil é o país do futuro, não o único, assim como o são Canadá, Austrália ou Argentina, mas não escolheria nenhum traço cultural específico, exceto a mistura étnica, e essa característica não é cultural. Mas, se eu não tiver opção a não ser escolher uma, como você me pergunta, a poesia é minha favorita e, portanto, a música, porque a poesia é o significado, mas também música e a sonoridade. Existem grandes poetas e cantores brasileiros, dos antigos, Maysa, Elis Regina, Maria Bethânia, Simone.

Que tipo de relação existe entre os escritores e as pessoas que eles criam nas páginas? Como exerci o jornalismo de opinião toda a minha vida e em vários meios de comunicação (existem várias compilações dos meus artigos em diferentes livros), gosto muito da página e tenho muitos leitores. Faz parte da minha missão social e ética.

Provocar simpatia e compreensão pela dor humana é mais fácil pela literatura? Penso que sim, amplia o espectro de compreensão e compaixão, tão necessários para a paz, a convivência e a justiça. Mas eu não sou ingênua: ninguém pode ser ingênuo desde a 2.ª Guerra Mundial. A culta Áustria, a cultíssima Alemanha, geraram o monstro do nazismo e causaram uma das maiores catástrofes do mundo. Nem a poesia, nem a música, nem a arte salvaram a humanidade dessa catástrofe. E o século 20 culminou com a Guerra dos Bálcãs. É por isso que confio muito mais na América Latina. Somos menos belicosos, temos mais espaço físico para coexistir e arrastamos menos rancores do passado.

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Quão importante é a perspectiva do narrador? Existe uma conexão entre a perspectiva e a verdade? Uma coisa é a verdade e a outra é a manipulação, distorção, aparência. Goebbels disse que uma mentira repetida mil vezes se transforma em uma verdade. Os políticos muitas vezes exploram esse aprendizado para criar uma realidade falsa. Mas nós, em nossas vidas individuais, fazemos isso com muita frequência. Poucas pessoas querem saber ou admitir se a verdade afeta seu orgulho, seu ego. O prazer de saber (mesmo à custo da dor) é bastante excepcional.

A senhora vive em Barcelona. Como acompanhou a recente crise na Catalunha? Teria alguma posição sobre a independência? A Catalunha é parte do reino da Espanha que possui uma das constituições mais federalistas do mundo, com 17 autonomias. A independência só traria pobreza, isolamento, exclusão da Europa e xenofobia. A constituição prevê uma via legal para se obter a independência que os catalães nacionalistas ainda não tentaram, certamente porque sabem que não ganharão. 

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