Zadie Smith não entende por que alguém se interessaria por suas estantes de livros.
“Acho que o problema é que os livros e a decoração de interiores são usados como uma espécie de capital social e político, com o objetivo de expressar algo sobre você. Mas simplesmente não tenho tempo para isso”, disse a autora de Dentes Brancos e NW, entre outros romances. “Sei que, quando vou aos escritórios de certos escritores, tudo é lindo e perfeito. Esse tipo de energia eu só posso colocar na escrita”.
Zadie Smith, inglesa de 48 anos, seu marido, o poeta e romancista Nick Laird, e seus filhos se mudaram para o norte de Londres em 2020, mas grande parte de sua biblioteca ainda não foi desencaixotada. “Cada caixa que você abre é... ah, bem, aqui temos um monte de livros para bebês. Mas não tenho mais bebês”. Em geral, além dos livros de arte, das graphic novels e de outros volumes que ainda estão guardados, ela não tem muita piedade com os livros que circulam pela casa, que chegam às dezenas pelo correio. “O chato é que alguns dos meus novos favoritos, eu os leio e depois me desfaço deles. Houve muitas estreias boas recentemente, mas elas vêm e vão.”
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O espaço de trabalho
Smith descreve seu escritório, onde estão muitos de seus livros, como uma “distorção do tempo”. As paredes estão decoradas com pequenos retratos que ela comprou de um artista de rua quando tinha 22 anos, achando que os retratados lembravam vagamente vários de seus vizinhos e familiares. Ao lado deles está um pôster do Eminem, de quando ela escreveu sobre o rapper para a revista Vibe, em 2002. (Nossa visita ocorreu durante o último suspiro do Brat summer, e Smith se mostrou irritada com a hiperpopularidade de Charli XCX: “Agora nunca mais conseguiremos vê-la ao vivo. É a única ambição que me resta na vida – ser convidada para uma festa da Charli XCX”). O que aconteceu com aquele belo exemplar de Decoded, livro de memórias de Jay-Z, de quando ela estava escrevendo sobre ele? Ela não faz ideia.
No que Smith descreveu como uma nova fase, ela começou a manter cópias de seus trabalhos anteriores: “Normalmente, eu me desfaço deles. Mas estou tentando ser menos fóbica sobre sua existência”. Em geral, ela limpa seus materiais de pesquisa depois de terminar um projeto, deixando-os na calçada para nunca mais precisar vê-los. Ainda restam alguns livros vitorianos e sobre as Índias Ocidentais por aí, da época em que ela estava trabalhando em seu romance histórico A fraude, publicado no ano passado e agora em edição de bolso. Ela tinha mais de quarenta romances esgotados do outrora célebre e agora totalmente obscuro William Harrison Ainsworth – resta apenas um.
Felizmente, nada fica na rua por muito tempo. “Quando botamos qualquer coisa na calçada, desaparece em minutos. Não importa o que seja. Sofá. Geladeira. Qualquer coisa”, disse Smith. “Como o bairro é muito misturado, você pode botar livros em qualquer idioma, e as pessoas levam. É bem conveniente.”
Já é possível ver vestígios do próximo romance se acumulando nas prateleiras e se empilhando na escrivaninha: livros de e sobre Simone Weil. “Ela está no ar agora. É uma personagem muito extrema. A garota que quer ser pobre e radical, mas cujos pais sempre a ajudam em momentos de dificuldade”, disse Smith. “Ela também é uma grande filósofa. É um monte de coisas ao mesmo tempo”. Esses livros têm alguma chance de sobreviver à próxima limpeza. “Os livros de filosofia tendem a ficar”, disse ela, indicando obras de Peter Singer e Frantz Fanon, “porque são sempre úteis.”
Outros livros são testemunhos de empreendimentos perpetuamente inacabados ou totalmente abandonados: muitos livros de Gertrude Stein; livros sobre atores negros e Fred Astaire, de quando ela estava escrevendo uma série de televisão sobre a velha Hollywood “mas depois Ryan não-sei-o-quê fez o programa”. Os livros de arte, em particular, são “registros da vergonha de coisas para as quais eu deveria ter escrito uma introdução. Na maioria das vezes, quando penso em escrevê-las, quando finalmente ponho a caneta no papel, Hilton [Als] já escreveu o que quer que fosse”. Há vários dicionários de italiano e romances em italiano, presentes de amigos que tentam incentivá-la no que ela chama de sua interminável tentativa de aprender o idioma. “Eu sei falar italiano, mas gostaria que ser, sabe, como a Jhumpa”. (A aclamada escritora Jhumpa Lahiri anunciou sua intenção de escrever apenas em italiano em 2015; seus dois livros mais recentes foram publicados primeiro na Itália e depois traduzidos para o inglês).
Livros da família
Os livros mais antigos em posse de Smith, ela suspeita, são os romances de Salman Rushdie que vieram do apartamento de sua mãe. (“Nos anos 80, todo mundo comprava Rushdie. Ela era mais fã de Alice Walker”).
“O que mais temos aqui?”, ponderou Smith, descendo as escadas até o local onde está guardada a coleção que ela e Laird compartilham. “Muitos livros relacionados à diáspora, [a do Nick] e a minha. E poesia – é a única parte organizada, porque toda a poesia fica no escritório dele”.
Outros livros que definitivamente não eram dela? “Nick tem um conjunto antigo e horrível – para mim – de Somerset Maugham. A família dele não era de leitores, não tinha livro nenhum, mas tinham essa coleção completa de Somerset Maugham. O pouco que li não me encantou, e parece que são muitos volumes. Mas é uma coisa sentimental”.
A sala de estar é ocupada pelas leituras dos dias de universidade dela e de Laird. “Proust. Um pouco de Shakespeare. Uns Nabokov antigos, pelos quais eu me interessava mais antes de ter filhos e outras coisas assumirem o controle. Então, quando nos juntamos, todos os nossos livros da faculdade ficaram em dobro”, disse ela.
Naquela época, Smith procurava livros baratos nos sebos de Cambridge e escrevia seu nome e a data dentro deles. “Era uma situação diferente – eu nunca tinha dinheiro para comprar um livro de capa dura. Era uma grande emoção comprar um livro de capa dura. É difícil ter o mesmo sentimento que eu tinha antes. Agora sinto que eles vão me enterrar viva.”
Ela diz que não se importa muito com livros antigos, com algumas exceções: um exemplar aos pedaços de The Black Book, compilado por Toni Morrison na década de 1970, de sua mãe; uma primeira edição de Pnin, de Nabokov, que ela ganhou como prêmio, mas que acha que deixou na casa de um amigo.
Talvez Smith já tenha tido o gene de “colecionador”, mas não sabe o que aconteceu com ele. “Provavelmente é uma pena, mas não sei – sinto que o registro dos livros que você lê está nos livros que você escreve, se você escrever.” / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU