Tamara Klink mostra biblioteca da família: diários, livros favoritos e reflexões sobre estar sozinha
Velejadora é mais uma entrevistada da série 'Coleção de Livros', do Estadão
Tamara Klink enfrentava o rigoroso inverno da Groenlândia, com temperaturas de até 40 graus negativos, quando se apaixonou por uma obra bem brasileira: “Durante a viagem, eu finalmente encarei Grande Sertão: Veredas. E virou meu livro preferido. Todo mundo deveria ler”. Sem nenhum humano por perto, os livros se tornaram companhia fundamental durante sua viagem no gelo.
Em 2024, a velejadora cruzou o Círculo Polar Ártico, indo da França à Groenlândia, ancorou seu barco a um fiorde e se instalou durante oito meses no local. Assim, ela se tornou a primeira mulher a passar o período de invernagem sozinha no Ártico. Três anos antes, ela já tinha cruzado o Oceano Atlântico - também em solitário, uma travessia que originou seu livro mais recente: Nós, publicado pela Companhia das Letras.
De volta à casa da família, na zona sul de São Paulo, Tamara reencontrou a biblioteca que a fez se apaixonar pelo mar. “Meu pai [o velejador e escritor Amyr Klink] falava com tanto gosto que dava vontade de ler. Foi esse amor que me influenciou a ler os livros em francês e as obras de viagem.” Ao Estadão, ela mostrou um pouco do que leu no Ártico e alguns de seus diários de viagem, que escreve desde criança.
Companhias no gelo
Durante a invernagem, Tamara estima ter lido entre 60 e 70 livros. “Mas uns eram fininhos. Os da Annie Ernaux eu li todos. Pegava e lia em um dia.” A velejadora, que completou 28 anos no mês passado, levou alguns livros físicos dentro do barco e, quando eles se esgotaram, teve que se contentar com a leitura na tela de seu smartphone.
“Quando fazia um pouco mais de calor, algo entre 10 e 5 graus negativos, eu conseguia sentar em alguma pedra e ler no celular por um ou dois minutos. Que era o tempo que dava para ficar parada. Para mudar a página eu usava o nariz, porque com a luva era impossível”, explica. A leitura de Grande Sertão, por exemplo, foi feita assim. “Infelizmente eu só tinha um PDF mixuruca, mas mesmo assim eu amei demais.”
Entre as obras que também acompanharam Tamara estavam Assim Falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche, e Knulp: Três histórias da vida de um andarilho, de Hermann Hesse, livro que ela afirma ler todos os anos.
Apesar de estar sozinha na maior ilha do mundo, a velejadora afirma muitas vezes ter sentido uma espécie de ‘presença’ causada pelos personagens dos livros. “Às vezes, eu esquecia que estava só. Parecia ter alguém comigo.”
No tempo que eu lia, era como se eu convivesse com essas pessoas. E quando eu saía para caminhar, eu continuava pensando em Diadorim ou Knulp, como se eles estivessem ali. Ao acabar um livro, era muito triste. Como a despedida de alguém que eu sabia que não ia voltar.
Tamara Klink, velejadora
Escute as feras, de Nastassja Martin, é outra obra que se tornou marcante na vida da navegadora desde que ela decidiu se lançar sozinha ao mar. “Por coincidência, eu recebi de presente de muitas amigas.” No livro, a antropóloga francesa narra como o ataque de um urso quase tirou sua vida. Mas não só isso, acredita Tamara: “É muito interessante como ela alerta sobre as chances de ficar louca.”
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Clássicos da navegação
A biblioteca dos Klink não esconde o objeto de fascínio da família. São milhares de publicações sobre viagem e navegação. Sejam elas histórias reais, como o naufrágio do barco Endurance e a heroica sobrevivência da tripulação do britânico Ernest Shackleton. Ou narrativas ficcionais, como o clássico Moby Dick, de Herman Melville.
Foi uma obra de Sally Poncet, Le Grand Hiver (O Grande Inverno, em tradução livre), que motivou o pai, Amyr Klink, a invernar, revela a filha. A obra, lançada em 1982, e que não ganhou edição em português, descreve a ida de Sally e do marido, o explorador Jérôme Poncet, à Antártida.
“Naquele momento, o continente antártico era visto como um lugar inacessível, impossível para a vida humana. Quem ia até lá eram especialmente cientistas. Era muito raro uma pessoa ir por prazer”, explica Tamara. “Foi um livro inspirador para o meu pai e também para mim.”
As obras de Amyr, que também se tornou um escritor de navegação, como Paratii: entre dois pólos, foram outras referências para a filha durante as empreitadas marítimas. “Era muito legal poder ver coisas que meu pai tinha descrito, fenômenos que ele viu com os próprios olhos e que eu estava vendo no momento em que eu lia.”
Os diários de bordo
Tamara e as irmãs, Laura e Marina, foram incentivadas desde cedo pelos pais a registrarem as viagens da família. Os diários renderam a primeira publicação das três, Férias na Antártica, livro infantil que até hoje é adotado por escolas primárias.
“De vez em quando eu abria o diário das minhas irmãs, mas meio sem querer, porque eles são todos iguais. E também porque, quando a gente era criança, nem sempre lembrava o que tinha acontecido, e aí pegávamos uma das outras pra roubar, sabe? ‘Roubar’ o trecho, a memória”, relembra Tamara.
Os diários da última viagem ao Ártico já estão separados para dar origem à próxima obra da autora. Mas o processo de transposição das memórias para as páginas de um livro é doloroso, segundo Tamara.
“Por mais que todo mundo diga que goste do livro, para mim é muito triste. Porque sempre vai ser uma ficção. Por mais que eu tente ser o mais fiel à realidade, eu sei que é ficção porque as coisas não vieram em palavras.”